São Paulo, domingo, 26 de julho de 1998

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DEBATE
O consenso brasileiro



País não precisa importar críticas do vice-presidente do Bird ao Consenso de Washington
CRISTOVAM BUARQUE
especial para a Folha


A importação dos sonhos
A história do Brasil é a história de uma constante substituição de importação de produtos, com uma constante importação de modelos econômicos. O Brasil importou os sonhos de seu futuro: montou uma poderosa economia, mas deixou suas crianças na rua, sem escolas. O país já produz os bens da modernidade, mas seu conceito de modernidade foi importado. O caminho foi o protecionismo industrial, o desprezo aos investimentos sociais, um Estado intervencionista e descomprometido com os interesses da maioria da população. O custo foi uma inflação insuportável, uma dívida descontrolada, uma indústria ineficiente, um Estado controlado pelas corporações, uma sociedade dividida e desagregada.
Na última década, para resolver os desajustes econômicos, o Brasil voltou a importar idéias e modelos. Substituiu a estatização pela privatização, os investimentos em infra-estrutura pelos cortes nos gastos, o protecionismo pela abertura. Conseguiu controlar a inflação, mas agravou os problemas sociais; fez a indústria competitiva, mas gerou desemprego; e iniciou a construção de um desenvolvimento separado, com apartação.
Esta opção já mostra o seu lado perverso e começa a ser contestada, como faz o vice-presidente do Banco Mundial (Bird), Joseph Stiglitz, sobre o Consenso de Washington, no Mais! de 12/07/98. Começa, assim, um novo ciclo de propostas importadas. Nos anos 60 trouxeram o desenvolvimentismo protegido, nos 80, o neoliberalismo global, e agora trazem uma terceira via.

Um choque de ética
Alguns continuarão defendendo a estatização, o Estado perdulário, uma economia autárquica. Outros manterão os sonhos do socialismo. Mas o pós-neoliberalismo não será o pré-neoliberalismo. Já não há propostas revolucionárias, nem nostalgia de modelos. O Brasil não necessita de uma terceira via importada, mas de uma outra via, formulada para resolver nossos problemas, com nossos recursos, levando em conta que estamos em um mundo interligado internacionalmente. Nem sabemos como será exatamente o futuro.
De imediato, precisamos dar um choque de ética no capitalismo brasileiro: a) garantir a toda criança um lugar na escola e a toda escola a qualidade dos melhores padrões do mundo; b) não permitir que nenhum brasileiro morra antes do tempo ou sofra por falta de atendimento médico; c) manter em cada região um nível elevado de emprego; d) assegurar que ninguém passará fome; e) fazer com que a Justiça e a segurança não discriminem uns brasileiros de outros; f) oferecer a cada família um endereço limpo pelo esgoto, água potável, coleta de lixo. Este choque de ética só será possível se o Brasil fizer um grande concerto.

O concerto do Brasil
Com seus sonhos importados, cada vez que entrava em crise, por causa de seus desequilíbrios, o Brasil procurava consertar a economia. Adiava a crise econômica, mas dividia a sociedade em corporações e não definia internamente as características da modernidade que serviria ao povo. O Brasil não precisa de conserto, mas de concerto; menos corporativismo e mais nação, menos economistas e mais estadistas; menos aumento no valor do PIB e mais valores éticos -a democracia, o fim da apartação, o equilíbrio ecológico, a descentralização, uma globalização sem exclusão. O conserto está em corrigir os erros da taxa de juros e da taxa de câmbio; o concerto está em eliminar as vergonhosas taxas de evasão e de repetência escolar, reduzir a mortalidade infantil, garantir terra para quem produz, emprego para quem quer trabalhar, oferecer um sistema decente de saúde para cada brasileiro. O primeiro gesto de um concerto do Brasil está em fazer uma revolução nas prioridades das políticas públicas.

Revolução nas prioridades
Nada disso custa caro. A economia brasileira, a inteligência brasileira, a natureza brasileira, a democracia brasileira já permitem que os objetivos de um choque ético sejam realizados. Basta uma mudança nas prioridades.
Redescobrir a nação: o Brasil está dividido em corporações, sem uma visão de conjunto e prisioneiro de reivindicações específicas de cada um de seus grupos sociais. Não haverá solução para o conjunto da nação, se ela não for redescoberta na totalidade de sua população, na identificação de interesses e objetivos comuns.
Custo da omissão: a redescoberta da nação faz com que se leve em conta o custo-do-não-fazer os investimentos sociais. A história já mostrou que o custo de não fazer escolas é muito maior do que o de fazê-las. E permite levar em conta os benefícios totais dos investimentos. Gastar com educação reduz gastos com saúde, com segurança, aumenta o emprego, eleva a produtividade, a cidadania, a decência e consolida a democracia.
Estabilidade monetária: a inflação é um instrumento de desigualdade, desvia a agenda nacional para os assuntos financeiros, impede a reorientação do esforço em direção à solução dos problemas sociais. Por isso, os gastos públicos devem ficar nos limites dos recursos financeiros disponíveis. Tendo respaldo político, os governos podem aumentar a receita ou reorientar o destino dos recursos disponíveis; se não tiverem respaldo político, devem prolongar a realização de seus projetos e jamais cair na irresponsabilidade fiscal.
Solução simples: em lugar das soluções caras, centralizadas, estatais, é preciso criar soluções simples, descentralizadas, inovadoras, com a mobilização da energia social dos indivíduos e entidades da sociedade civil.
Dinâmica pela base: em lugar da tradição de dinamizar a economia pelo topo, o crescimento econômico deve ser orientado pela base da pirâmide social. Se a indústria automobilística distribui benefícios até ao flanelinha que vive de limpar pára-brisas nas esquinas das grandes cidades, pagar às famílias pobres para que seus filhos estudem permitiria uma dinâmica ascendente com benefícios econômicos até o topo. E de uma maneira mais decente e eficiente no longo prazo.

Governar a governabilidade
O Brasil tem todos os ingredientes do avanço técnico e da modernidade, junto com todos os sintomas da crise social. É o melhor retrato da crise de globalização com exclusão, que divide a humanidade em duas partes. É, em português, apartação -que se escreve apartheid social. O Brasil é o país que tem urgência e necessidade nacional de resolver os problemas da modernidade e tem os recursos necessários para isso. A Europa não tem a urgência, a África não tem os recursos. Não virá deles a solução para o mundo.
Mais do que qualquer outro país, é aqui que pode surgir um novo sonho; as soluções para os nossos problemas, que são problemas mundiais. Em lugar de importar idéias inadequadas à nossa realidade, exportar soluções para a realidade mundial. Em julho de 97, um encontro com o apoio do governo do Distrito Federal e da Unesco formulou um documento chamado "Consenso de Brasília - Governando a Governabilidade". Pode ser uma resposta às propostas que já começam a vir do exterior.


Cristovam Buarque é governador do Distrito Federal pelo PT, autor, entre outros, de "A Revolução nas Prioridades" (Paz e Terra).



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