São Paulo, Domingo, 26 de Setembro de 1999
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AUTORES
Fortalecimento da direita agrava a situação do país
Dois lados do Brasil

ALAIN TOURAINE
especial para a Folha

Sociedades ao mesmo tempo transformadas e integradas pela força arrebatadora da economia aberta -isso não existe. Praticamente não há mais ideólogos que ainda procuram "vender" esse discurso -que não convence. O que vemos são dois tipos de sociedade muito diferentes: as sociedades dualizadas e as sociedades fragmentadas. Ou seja, sociedades que são fortemente polarizadas, nas quais a oposição principal se dá entre ricos e pobres, e sociedades em que as diferenças sociais, culturais, étnicas, religiosas etc. -muito frequentemente também ligadas a desigualdades- deixam pouco espaço para uma integração que se dê por meio de um modelo homogeneizador formado em torno de um Estado central.
Se admitimos que a dualização é forte sobretudo nos países onde o problema da modernização é dominante, já que essa modernização sempre exige uma concentração de investimentos e, portanto, um aumento das desigualdades, podemos afirmar que também é verdade que, nas sociedades mais ricas, encontramos sobretudo a fragmentação, o que também se aplica às sociedades mais pobres, nas quais a unidade nacional é fraca diante da força das etnias, como é o caso de muitos países africanos.
Enquanto isso, é nas situações intermediárias, aquelas que descrevemos como economias emergentes ou de países parcialmente desenvolvidos, que encontramos o maior número de sociedades dualizadas. Esse foi o caso dos países da Europa ocidental no século 19. Na América Latina, existem sociedades fragmentadas; são as mais pobres do continente -Bolívia, Nicarágua ou Equador, por exemplo, e também a Colômbia, que se encontra em forte queda. Mas o modelo dominante no continente ainda é o dualista.
Esse modelo já tinha sido descrito 40 anos atrás pelos economistas do Cepal. Durante o período das ditaduras militares, foi esquecido, porque, na época, os conceitos políticos eram vistos como mais importantes do que os econômicos, e, mesmo após a formação de novas democracias, as visões globais -otimistas ou, mais frequentemente, pessimistas- saíram vencendo, especialmente no México, que passou por duas crises gerais, em 1982 e em 1994-95. A mesma coisa se deu na Argentina, também ela atingida por uma crise nacional total que provocou a queda do presidente Alfonsin. O próprio Brasil acaba de passar por uma crise financeira e monetária, no início do ano, que ameaçou sua economia.
Mas podemos lançar a hipótese de que, após um período de crises econômicas acentuadas, a América Latina, e especialmente o Brasil, estão retornando ao modelo clássico da dualização, ainda tão forte em muitos países europeus. A melhor demonstração disso é a oposição entre dois tipos de resposta à crise recente. Se considerarmos os indicadores econômicos gerais, poderemos afirmar que, até a nova queda recente do real (que tem causas mais sociais do que nacionais), a recuperação do país era notável e superou as previsões, já que a principal consequência negativa da desvalorização do real foi o enfraquecimento do Mercosul. Mas a opinião pública brasileira, em sua maioria, teve outra reação.
O sentimento de insegurança, que tinha se amainado devido à estabilidade da moeda e a elevação do nível de vida das camadas populares, voltou à tona, acompanhado do sentimento dos brasileiros de terem sido traídos por um presidente a quem a reforma monetária bem-sucedida havia garantido alto índice de popularidade. E vimos surgir, a partir do MST -de início, muito centrado em determinadas reivindicações relativas à terra-, uma corrente mais geral de insatisfação e, sobretudo, a consciência de pertencerem à parte sacrificada da população. Os mais descontentes são sobretudo aqueles que integram o mundo agrícola: fazendeiros, trabalhadores assalariados e sem-terra. Paralelamente, São Paulo e sua região foram atingidos pelo desemprego industrial elevado.
Poderíamos afirmar simplesmente que, após um parêntese feliz -o da estabilidade monetária, que mais mascarou do que resolveu os problemas-, o Brasil se vê novamente diante de seus problemas de sempre. Esse raciocínio seria falso, já que ocorreram duas transformações. O Estado se reformulou e reconstituiu seus quadros de gestão. A insubmissão dos governadores não durou muito tempo -e deixou Itamar isolado. A comunidade financeira internacional manifestou sua confiança no presidente FHC de maneira contundente.
Em segundo lugar, se a segunda crise do real difere da primeira, é porque o Brasil, tendo superado os graves perigos que ameaçavam o país, está sendo obrigado agora a colocar em primeiro plano, para o bem de seu próprio futuro nacional, os problemas sociais internos, que devem voltar a ter precedência sobre os efeitos da crise da economia internacional.
E o que torna a situação atual mais difícil do que aquela que existia antes da crise do início de 1999 é que a direita se fortaleceu mais do que a esquerda nos últimos anos, na medida em que seus interesses econômicos próprios foram reforçados pela abertura da economia mundial. A esquerda, pelo contrário, se encontra dividida, e, dentro dela, também o PT está dividido, com o surgimento de correntes em torno de Lula ou de Tarso Genro, em especial, enquanto o PSDB, cujos laços com o presidente não são muito estreitos, não consegue reunir a centro-esquerda à sua volta.
Sem atribuir importância demais a certas violências verbais, é preciso reconhecer que, se a força do presidente se manifestou depois do início da crise, na medida em que ele era a única figura bem-posicionada para conduzir o navio nacional que penetrava em águas internacionais revoltas, agora que os problemas internos reassumiram a dianteira, ele parece estar mais isolado, submetido a fortes pressões da direita, a crescentes reivindicações sociais, à disputa entre chefes políticos, de tal maneira que, no momento atual, não dispõe do apoio político do qual precisa.
Mais do que nunca, me parece que se impõe a idéia que já defendi aqui -ou seja, que o Brasil precisa de um governo de centro-esquerda que priorize o combate às desigualdades e à exclusão social-, para evitar graves comoções sociais. Cabe a todos os responsáveis políticos tomar consciência disso e reorganizar a vida política do país em torno da nova prioridade que deve ser atribuída aos problemas sociais.


Alain Touraine é sociólogo, diretor da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais (Paris). Está lançando no Brasil "Como Sair do Liberalismo?" (Editora da Universidade do Sagrado Coração).
Tradução de Clara Allain.


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