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BRASIL 500 D.C.
A tirania do dinheiro e da informação está na base do atual desarranjo do capitalismo global
A normalidade da crise
MILTON SANTOS
especial para a Folha
A história do capitalismo pode
ser dividida em períodos, pedaços
de tempo marcados por uma certa coerência entre as suas variáveis significativas, que evoluem
diferentemente, mas dentro de
um sistema. Um período sucede a
outro, mas não podemos esquecer que os períodos são, também,
antecedidos e sucedidos por crises, isto é, momentos em que a ordem estabelecida entre as variáveis, mediante uma organização,
é comprometida. Torna-se impossível harmonizá-las quando
uma dessas variáveis ganha expressão maior e introduz um
princípio de desordem.
Essa foi a evolução comum a toda a história do capitalismo, até
recentemente. O período atual escapa a essa característica porque
ele é, ao mesmo tempo, um período e uma crise, isto é, a presente
fração do tempo histórico constitui uma verdadeira superposição
entre período e crise, revelando
características de ambas essas situações.
Como período e como crise, a
época atual mostra-se, aliás, como coisa nova. Como período, as
suas variáveis características instalam-se em toda a parte e tudo
influenciam, direta ou indiretamente. Daí a denominação de
globalização. Como crise, as mesmas variáveis construtoras do sistema estão continuamente chocando-se e exigindo novas definições e novos arranjos. Trata-se,
porém, de uma crise persistente
dentro de um período com características duradouras, mesmo se
novos contornos aparecem.
Este período e esta crise são diferentes daqueles do passado,
porque os dados motores e os respectivos suportes, que constituem
fatores de mudança, não se instalam gradativamente como antes,
nem tampouco são o privilégio de
alguns continentes e países, como
outrora. Tais fatores dão-se concomitantemente e se realizam
com muita força em toda parte.
Defrontamo-nos, agora, com
uma subdivisão extrema do tempo empírico, cuja documentação
tornou-se possível por meio das
técnicas contemporâneas. O
computador é o instrumento de
medida e, ao mesmo tempo, o
controlador do uso do tempo. Essa multiplicação do tempo é, na
verdade, potencial, porque, de fato, cada ator - pessoa, empresa,
instituição, lugar- utiliza diferentemente tais possibilidades e
realiza diferentemente a velocidade do mundo. Por outro lado, e
graças sobretudo aos progressos
das técnicas da informática, os fatores hegemônicos de mudança
contagiam os demais, ainda que a
presteza e o alcance desse contágio sejam diferentes segundo as
empresas, os grupos sociais, as
pessoas, os lugares. Por meio do
dinheiro, o contágio das lógicas
redutoras, típicas do processo de
globalização, leva a toda parte um
nexo contábil que avassala tudo.
Os fatores de mudança acima
enumerados são, pela mão dos
atores hegemônicos, incontroláveis, cegos, egoisticamente contraditórios.
O processo da crise é permanente, o que temos são crises sucessivas. Na verdade, trata-se de
uma crise global, cuja evidência
tanto se faz por meio de fenômenos globais como de manifestações particulares, neste ou naquele país, neste ou naquele momento, mas para produzir o novo estágio de crise. Nada é duradouro.
Então, neste período histórico, a
crise é estrutural. Por isso, quando se buscam soluções, o resultado é a geração de mais crise. O que
é considerado como solução parte
do exclusivo interesse dos atores
hegemônicos, tendendo a participar de sua própria natureza e de
suas próprias características.
Tirania do dinheiro e tirania da
informação são os pilares da produção da história atual do capitalismo globalizado. Sem o controle
dos espíritos seria impossível a regulação pelas finanças. Daí o papel avassalador do sistema financeiro e a permissividade do comportamento dos atores hegemônicos, que agem sem contrapartida, levando ao aprofundamento
da situação, isto é, da crise.
A associação entre a tirania do
dinheiro e a tirania da informação
conduz, desse modo, à aceleração
dos processos hegemônicos, legitimados pelo "pensamento único", enquanto os demais processos acabam por ser deglutidos ou
se adaptam passiva ou ativamente, tornando-se hegemonizados.
Em outras palavras, os processos
não hegemônicos tendem ou a
desaparecer fisicamente, ou a permanecer, mas de forma subordinada, exceto em algumas áreas da
vida social e em certas frações do
território onde podem manter-se
relativamente autônomos, isto é,
capazes de uma reprodução própria. Mas tal situação é sempre
precária, seja porque os resultados localmente obtidos são menores, seja porque os respectivos
agentes são permanentemente
ameaçados pela concorrência das
atividades mais poderosas.
No período histórico atual, o estrutural (dito dinâmico) é, também, crítico. Isso se deve, entre
outras razões, ao fato de que a era
presente se caracteriza pelo uso
extremado de técnicas e de normas. O uso extremado das técnicas e a proeminência do pensamento técnico conduzem à necessidade obsessiva de normas. Essa
pletora normativa é indispensável
à eficácia da ação. Como, porém,
as atividades hegemônicas tendem a uma centralização, consecutiva à concentração da economia, aumenta a flexibilidade dos
comportamentos, acarretando
um mal-estar no corpo social.
A isso se acrescente o fato de
que, graças ao casamento entre as
técnicas normativas e a normalização técnica e política da ação
correspondente, a própria política acaba por instalar-se em todos
os interstícios do corpo social, seja como necessidade para o exercício das ações dominantes, seja
como reação a essas mesmas
ações. Mas não é propriamente de
política que se trata, mas de simples acúmulo de normatizações
particularistas, conduzidas por
atores privados que ignoram o interesse social ou que o tratam de
modo residual. É outra a razão
por que a situação normal é de
crise, ainda que os famosos equilíbrios macroeconômicos se instalem.
O mesmo sistema ideológico
que justifica o processo de globalização, ajudando a considerá-lo
como o único caminho histórico,
acaba, também, por impor uma
certa visão da crise e a aceitação
dos remédios sugeridos. Em virtude disso, todos os países, lugares e pessoas passam a se comportar, isto é, a organizar sua ação,
como se tal "crise" fosse a mesma
para todos e como se a receita para afastá-la devesse ser geralmente a mesma. Mas a única crise que
se deseja afastar é a crise financeira, não qualquer outra. Aí está, na
verdade, uma causa para maior
aprofundamento da crise real
-econômica, social, política,
moral- que caracteriza o nosso
tempo.
Milton Santos é geógrafo, professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo,
autor de, entre outros livros, "A Natureza do
Espaço" (Hucitec).
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