|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Ensaios traçam a história das crianças no Brasil
Lembranças do sofrimento
MÔNICA RODRIGUES DA COSTA
Editora da Folhinha
"História das Crianças no Brasil" é uma edição de 445 páginas,
de capa dura, com cerca de cem
ilustrações, entre fotos, pinturas,
desenhos. O livro retrata basicamente sofrimento e violação dos
direitos humanos. Seu lançamento é oportuno. Trata-se de um instrumento útil para examinar o
presente à luz da história do tratamento dado à criança no Brasil,
de descaso e maltratos.
A situação da Febem em São
Paulo é exemplo do tamanho da
dívida social que as novas gerações recebem como herança. Será
que a população brasileira nunca
se mobilizará para dar fim à educação medíocre da escola pública?
Dividido em ensaios que suscitam curiosidade e têm linguagem
acessível, "História das Crianças
no Brasil" é do formato dos livros
da coleção "História da Vida Privada no Brasil" (Companhia das
Letras), mas não vem com índice
remissivo. Esses livros seguem o
modelo da "História da Vida Privada no Mundo Ocidental", organizada na França por Philippe
Ariès e Georges Duby.
"História das Crianças no Brasil", da editora Contexto, foi escrito por professores historiadores,
doutores de história, entre eles
Teresa Corrêa de Araújo, socióloga do Centro de Estudos e Pesquisa Josué de Castro e pesquisadora
do Dieese, Renato Pinto Venancio, professor do departamento
de história da Universidade Federal de Ouro Preto, Manolo Florentino, professor do departamento
de história da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
A organizadora da obra, Mary
Del Priore, reconhece na apresentação que a qualidade da infância
melhora devido ao progressivo
interesse da economia pelas
crianças. Isso ajuda a criar uma
nova ética. Cresce, por exemplo, o
empenho de eliminar a mortalidade infantil e propiciar educação
para todos.
Para Priore, professora do departamento de história da USP,
pesquisadora do CNPq e autora
do trabalho "O Cotidiano da
Criança Livre no Brasil entre a
Colônia e o Império", o livro ajuda a questionar os parâmetros da
educação brasileira.
Os ensaios obedecem a uma sequência cronológica -desde as
épocas em que vinham crianças
nas embarcações portuguesas do
século 16 e em que as crianças, nativas ou não, eram educadas pelos
jesuítas, até o tempo da Colônia e
do Império e os dias de hoje, em
que meninos e meninas perdem a
saúde com a fumaça perniciosa
dos canaviais.
Ensaios contam que garotos
brancos órfãos e judeus se tornavam grumetes e vinham em embarcações povoar o Brasil. Eram
os primeiros a ser jogados ao mar
quando elas ameaçavam naufragar. Crianças judias eram raptadas para servirem a bordo.
Os ensaios revelam a tradição
de violência e descaso com crianças, o que ocorre e ocorreu não só
no Brasil, mas na cultura européia
de 500 anos atrás.
Os negros escravos mostravam
inteligência adaptativa quando
achavam vantajoso batizar seus
filhos, como forma de inserção
social. Por parte da Igreja, o batismo tinha a missão de controle social, que na época era precário. "A
Igreja, entretanto, continuou a
pregar a santificação das uniões,
impedindo que se vivesse fora das
regras por ela estabelecidas e diminuindo assim o número de filhos ilegítimos."
O livro mostra como o preconceito contra os negros tem fundo
econômico. Era motivo de "irritação" o fato de "crianças nascidas
da união de brancos com mulheres "de cor" se tornarem herdeiros
de seus pais". "As críticas mais
contundentes se dirigem, portanto, a esse aspecto da questão, vista
como prejudicial ao homem
branco, uma vez que mulatos se
tornaram proprietários de alguns
bens que eles julgavam lhes ser
devidos."
Crianças negras participavam
das festas, integrando os conjuntos musicais da Colônia. "Donos
de cativos recebiam pagamento
pelos escravos "muleques" que
participavam de bandas ou de
grupos profissionais ou semiprofissionais e recebiam uma boa recompensa."
O livro mostra a evolução do
afeto pela criança no país. Depois
de 1808, viajantes relatavam suas
impressões. Para alguns, a criança
brasileira "é pior que um mosquito hostil", de tantos os mimos que
os pais lhe faziam.
As crianças imperiais tinham
vida de luxo. Em 1829, o guarda-roupa da princesa dona Januária,
filha d. Pedro 1º, tinha 306 peças.
A corte tinha, em 1845, 12 lojas de
brinquedos. As filhas de d. Pedro,
com 9 e 10 anos, escreviam aos
pais: "Mamãe, faça o favor de me
trazer quatro bonecas pequeninas
de porcelana. Mamãe, faça o favor
de comprar as bonecas nuas para
eu vestir a meu gosto".
Mimos eram misturados a castigos físicos: "O castigo físico em
crianças não era nenhuma novidade no cotidiano colonial. Introduzido, no século 16, pelos padres
jesuítas, para horror dos indígenas, que desconheciam o ato de
bater em crianças, a correção era
vista como uma forma de amor".
Segundo os jesuítas, as crianças
indígenas eram mais difíceis de
serem ensinadas. Os padres achavam que, após se afastar da escola,
elas se voltariam para os ensinamentos dos índios, especialmente
porque muitos eram nômades.
No século 19, a escola ensinava
instrução, e a família dava os ensinamentos morais. A escola ganha
terreno. O número de professores
particulares frequentando as casas das famílias diminui.
A criança brasileira sofreu a tradição de ser educada pelo trabalho, considerado enobrecedor.
Em ensaio sobre a história atual,
"Pequenos Trabalhadores do
Brasil", Irma Rizzini procura explicar a razão de as crianças trabalharem: "O Brasil tem uma longa
história de exploração da mão-de-obra infantil. As crianças pobres sempre trabalharam. Para
quem? Para seus donos, no caso
das crianças escravas da Colônia
ou do Império; para os capitalistas do início da industrialização,
como ocorreu com as criança órfãs abandonadas ou desvalidas a
partir do final do século 19. Levantamentos de 1894 dizem que a
indústria têxtil foi a que mais recorreu ao trabalho de menores e
mulheres no processo de industrialização do país."
O volume é útil como fonte de
pesquisa para os níveis fundamental e médio. O professor deve
ficar atento a erros de português,
especialmente de vírgulas.
A OBRA
História das Crianças no Brasil - Org. Mary del Priore.
Contexto (r. Acopiara, 199, CEP
05083-110, SP, tel. 0/xx/11/832-5838). 448 págs. R$ 54,00.
Debate:
Haverá um debate sobre o livro
com o sociólogo Edson Passetti,
Oded Grajew, presidente da Fundação Abrinq, e Mary del Priore,
amanhã, às 19h30, no auditório da
Folha (al. Barão de Limeira, 425).
Inscrições pelo tel. 0/xx/11/224-3473), entre 14h e 17h. O lançamento acontece na Livraria Cultura (av. Paulista, 2073, SP), na terça,
a partir das 18h30.
Texto Anterior: Gilberto Vascocellos: O filósofo tesudo de Frankfurt Próximo Texto: Tréplica - Abel Barros Baptista: Dois belos casos Índice
|