São Paulo, Domingo, 26 de Setembro de 1999
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Ensaios traçam a história das crianças no Brasil
Lembranças do sofrimento

MÔNICA RODRIGUES DA COSTA
Editora da Folhinha

"História das Crianças no Brasil" é uma edição de 445 páginas, de capa dura, com cerca de cem ilustrações, entre fotos, pinturas, desenhos. O livro retrata basicamente sofrimento e violação dos direitos humanos. Seu lançamento é oportuno. Trata-se de um instrumento útil para examinar o presente à luz da história do tratamento dado à criança no Brasil, de descaso e maltratos.
A situação da Febem em São Paulo é exemplo do tamanho da dívida social que as novas gerações recebem como herança. Será que a população brasileira nunca se mobilizará para dar fim à educação medíocre da escola pública?
Dividido em ensaios que suscitam curiosidade e têm linguagem acessível, "História das Crianças no Brasil" é do formato dos livros da coleção "História da Vida Privada no Brasil" (Companhia das Letras), mas não vem com índice remissivo. Esses livros seguem o modelo da "História da Vida Privada no Mundo Ocidental", organizada na França por Philippe Ariès e Georges Duby.
"História das Crianças no Brasil", da editora Contexto, foi escrito por professores historiadores, doutores de história, entre eles Teresa Corrêa de Araújo, socióloga do Centro de Estudos e Pesquisa Josué de Castro e pesquisadora do Dieese, Renato Pinto Venancio, professor do departamento de história da Universidade Federal de Ouro Preto, Manolo Florentino, professor do departamento de história da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
A organizadora da obra, Mary Del Priore, reconhece na apresentação que a qualidade da infância melhora devido ao progressivo interesse da economia pelas crianças. Isso ajuda a criar uma nova ética. Cresce, por exemplo, o empenho de eliminar a mortalidade infantil e propiciar educação para todos.
Para Priore, professora do departamento de história da USP, pesquisadora do CNPq e autora do trabalho "O Cotidiano da Criança Livre no Brasil entre a Colônia e o Império", o livro ajuda a questionar os parâmetros da educação brasileira.
Os ensaios obedecem a uma sequência cronológica -desde as épocas em que vinham crianças nas embarcações portuguesas do século 16 e em que as crianças, nativas ou não, eram educadas pelos jesuítas, até o tempo da Colônia e do Império e os dias de hoje, em que meninos e meninas perdem a saúde com a fumaça perniciosa dos canaviais.
Ensaios contam que garotos brancos órfãos e judeus se tornavam grumetes e vinham em embarcações povoar o Brasil. Eram os primeiros a ser jogados ao mar quando elas ameaçavam naufragar. Crianças judias eram raptadas para servirem a bordo.
Os ensaios revelam a tradição de violência e descaso com crianças, o que ocorre e ocorreu não só no Brasil, mas na cultura européia de 500 anos atrás.
Os negros escravos mostravam inteligência adaptativa quando achavam vantajoso batizar seus filhos, como forma de inserção social. Por parte da Igreja, o batismo tinha a missão de controle social, que na época era precário. "A Igreja, entretanto, continuou a pregar a santificação das uniões, impedindo que se vivesse fora das regras por ela estabelecidas e diminuindo assim o número de filhos ilegítimos."
O livro mostra como o preconceito contra os negros tem fundo econômico. Era motivo de "irritação" o fato de "crianças nascidas da união de brancos com mulheres "de cor" se tornarem herdeiros de seus pais". "As críticas mais contundentes se dirigem, portanto, a esse aspecto da questão, vista como prejudicial ao homem branco, uma vez que mulatos se tornaram proprietários de alguns bens que eles julgavam lhes ser devidos."
Crianças negras participavam das festas, integrando os conjuntos musicais da Colônia. "Donos de cativos recebiam pagamento pelos escravos "muleques" que participavam de bandas ou de grupos profissionais ou semiprofissionais e recebiam uma boa recompensa."
O livro mostra a evolução do afeto pela criança no país. Depois de 1808, viajantes relatavam suas impressões. Para alguns, a criança brasileira "é pior que um mosquito hostil", de tantos os mimos que os pais lhe faziam.
As crianças imperiais tinham vida de luxo. Em 1829, o guarda-roupa da princesa dona Januária, filha d. Pedro 1º, tinha 306 peças. A corte tinha, em 1845, 12 lojas de brinquedos. As filhas de d. Pedro, com 9 e 10 anos, escreviam aos pais: "Mamãe, faça o favor de me trazer quatro bonecas pequeninas de porcelana. Mamãe, faça o favor de comprar as bonecas nuas para eu vestir a meu gosto".
Mimos eram misturados a castigos físicos: "O castigo físico em crianças não era nenhuma novidade no cotidiano colonial. Introduzido, no século 16, pelos padres jesuítas, para horror dos indígenas, que desconheciam o ato de bater em crianças, a correção era vista como uma forma de amor".
Segundo os jesuítas, as crianças indígenas eram mais difíceis de serem ensinadas. Os padres achavam que, após se afastar da escola, elas se voltariam para os ensinamentos dos índios, especialmente porque muitos eram nômades. No século 19, a escola ensinava instrução, e a família dava os ensinamentos morais. A escola ganha terreno. O número de professores particulares frequentando as casas das famílias diminui.
A criança brasileira sofreu a tradição de ser educada pelo trabalho, considerado enobrecedor. Em ensaio sobre a história atual, "Pequenos Trabalhadores do Brasil", Irma Rizzini procura explicar a razão de as crianças trabalharem: "O Brasil tem uma longa história de exploração da mão-de-obra infantil. As crianças pobres sempre trabalharam. Para quem? Para seus donos, no caso das crianças escravas da Colônia ou do Império; para os capitalistas do início da industrialização, como ocorreu com as criança órfãs abandonadas ou desvalidas a partir do final do século 19. Levantamentos de 1894 dizem que a indústria têxtil foi a que mais recorreu ao trabalho de menores e mulheres no processo de industrialização do país."
O volume é útil como fonte de pesquisa para os níveis fundamental e médio. O professor deve ficar atento a erros de português, especialmente de vírgulas.



A OBRA

História das Crianças no Brasil - Org. Mary del Priore. Contexto (r. Acopiara, 199, CEP 05083-110, SP, tel. 0/xx/11/832-5838). 448 págs. R$ 54,00.

Debate:
Haverá um debate sobre o livro com o sociólogo Edson Passetti, Oded Grajew, presidente da Fundação Abrinq, e Mary del Priore, amanhã, às 19h30, no auditório da Folha (al. Barão de Limeira, 425). Inscrições pelo tel. 0/xx/11/224-3473), entre 14h e 17h. O lançamento acontece na Livraria Cultura (av. Paulista, 2073, SP), na terça, a partir das 18h30.




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