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São Paulo, domingo, 26 de outubro de 2003

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Tribunal de divórcios, 3 de novembro [de 1909]

A curiosidade me levou ao tribunal de divórcios quando li sobre um pastor de credo tão carola que trazia a religião à sua vida mais íntima. A coisa parecia séria: ele forçava sua inimiga a rezar com ele.
Entretanto admito que, no começo, parecia que eu estava assistindo a uma sessão de tortura. O homem ficou de pé à nossa frente e foi forçado a descrever suas relações com a mulher. Era a natureza humana prestando contas à natureza humana. Nós estávamos ali para julgar. Felizmente, era óbvio que o sujeito se apoiava em uma espécie de formalismo (1); de modo que suas declarações não foram tão íntimas e portanto dolorosas quanto podiam ter sido. Arrogou para si a posição de marido ideal, a quem cabe ensinar, perdoar e ajudar a metade mais fraca.
Ele pronunciou a verdade literal e a reforçou com juramentos. Cuidara de nunca pecar: ao mesmo tempo, não era nada maleável. Sua mulher se entediava; a despeito de seus próprios escrúpulos, ele fizera questão de mandá-la ao teatro; andava muito ocupado com seus deveres paroquiais, pregando o tempo todo, exaurido. Ela caíra nas mãos da srta. Lewis, que lhe revelara como ela era mal compreendida. "Essa palavra terrível, mal compreendida", disse o reitor (2) com algum prazer, ao constatar como seus apuros eram convencionais. A srta. Lewis estava sentada perto de mim. Tinha um rosto ousado, vulgar, marcado pela tensão de afrontar o mundo. Era um rosto envelhecido e sem alegria; mas talvez não tivesse nem 40 anos.
A intenção dela consistira apenas em absorver por inteiro a sra. Whittingstall; não havia visado o dinheiro. Destruíra o casamento deles com o golpe mais baixo. A sra. W. era uma mulher miúda e histérica, dada a mimar a própria saúde, irritadiça por temperamento; ainda assim, uma senhora de classe e (talvez) não inteiramente à vontade com sua amiga grandalhona e vulgar; mas a srta. Lewis era determinada. O sr. Whittingstall estava certo, como sempre; a sra. W. desesperava-se que ninguém visse a crueldade que isso implicava. Era um pesadelo para ela. A sra. Lewis, uma ou duas amigas e uma enfermeira eram as únicas pessoas que viam: todo o mundo masculino estava contra ela.
Ninguém duvidaria do homem que se lembrava de todas as datas; era escrupuloso o bastante para confessar seu próprio temperamento esquentado e contudo tentara controlá-lo à força de oração e silêncio; que dizia de saída como "adorava" sua mulher, mas cuja condição de pastor da Igreja da Inglaterra estava acima disso; que visivelmente havia sofrido e agira corretamente, até onde se podia ver.
Ele merecia crédito; mas sua fala também esclarecia o outro lado. Era um homem sem piedade ou imaginação; um formalista e, talvez, um egoísta. Além do mais, a religião o absorvia. A religião tinha muito a ver com o caso, pensei eu. E ele se preocupava com o que os paroquianos pensariam dele.
Ela certamente era a menos convencional dos dois; ainda que a mais injusta. Ele obviamente se consolava com a defesa de seu próprio caráter e com a consciência de que agira corretamente e falara a verdade. É de suspeitar que ela vá chapinhar por algum tempo; haverá desilusão quando a srta. Lewis desertá-la por outra mulher; e então ela retornará, será recebida com a devida caridade cristã; e receberá alguma penitência para o resto da vida.
Duas coisas me impressionaram: uma foi o modo como ele disse: "O senhor pode mesmo me perguntar, sir Edward, se ao longo de uma vida em comum de 14 anos eu alguma vez cuidei de minha mulher quando ela chorava?". Isso deixava entrever uma vida em comum de verdade, essa espécie de relação enfadonha e genuína; os seres humanos tão reais, confortando um ao outro, depois de terem puído todo o disfarce, e ambos tão vergados. Os dois sofrendo.
A outra coisa foi o relato que ele fez de uma discussão acalorada com a mulher em que ele ergueu um crucifixo para "solenizar a cena"; ela chamou aquilo de sacrilégio, ao que ele empunhou um candelabro de cerâmica e brincou com ele, "como se brinca com uma caneta ou um lápis". O candelabro era dela, de modo que ele teve que largá-lo quando ela pediu; mas havia um globo de cerâmica que era dele, e então ele ficou brincando com o globo, e ela não teve como fazê-lo largar. O estranho é que isso ocupasse a atenção dos dois naquele momento; e que os dois tivessem reconhecido a quem pertenciam o candelabro e o globo.

Notas do tradutor
1. "Formalismo", no caso, tem sentido específico: do ponto de vista ético, importa apenas a conformidade de um ato à forma da lei moral, pouco importando as consequências que acarreta ou a intenção que o guiou.
2. Na Inglaterra, eclesiástico encarregado da administração de uma paróquia inteira.


Copyright: The Estate of Virginia Woolf.


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