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Eu sou o cara
ESPETACULARIZAÇÃO DAS TVS EXACERBOU MECANISMO MENTAL ARCAICO DO SEQÜESTRADOR, QUE PROJETOU EM ELOÁ A SENSAÇÃO DE ESTAR SENDO ATACADO POR FORÇAS MALÉFICAS
Cabe
perguntar
que efeitos
pode ter produzido a transformação
de Lindemberg em celebridade nacional
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RENATO MEZAN
COLUNISTA DA FOLHA
Um dos aspectos
mais comentados
do seqüestro que
comoveu o país nas
duas últimas semanas foi a atuação das emissoras
de TV. Escudadas na "missão
de informar" -mas, na verdade, sequiosas de superar a qualquer custo a audiência das demais-, acabaram fornecendo a
Lindemberg Alves informações
preciosas sobre a posição e as
ações dos policiais e, com sua
irresponsabilidade, provavelmente contribuíram para o
desfecho trágico do episódio.
"Suave, mari magno turbantibus aequora ventis, e terra
magnum alterius laborem
spectare" (é doce, quando no
vasto mar os ventos sacodem
as águas, contemplar da terra
firme o trabalho de um outro),
escreveu Lucrécio em seu tratado "De Rerum Natura" [Da
Natureza das Coisas].
Sem querer arvorar-me em
juiz do que outros acharam
correto fazer, pergunto: a espetacularização de situações como essa não acirra ainda mais
as forças psíquicas que se podem supor em ação na mente
de um criminoso?
Criminoso, sim -pois Eloá
Pimentel não morreu por causa da televisão nem porque os
policiais invadiram o cativeiro,
e sim porque seu ex-namorado
atirou contra ela.
Mas cabe perguntar que efeitos pode ter produzido a transformação dele -enquanto tinha uma arma na mão- em celebridade nacional.
Angústia
Os trechos de conversa entre
o seqüestrador e o capitão
Adriano Giovanini publicados
pela imprensa sugerem que
eles não foram pequenos -como aliás notaram tanto o professor Norval Batista Jr., da
Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP), quanto o coronel
Eduardo Félix: "Ele queria provar a todo instante que tinha o
domínio da situação", disse o
militar; "a mídia exacerbou a
psicopatia e a megalomania
que estavam em jogo", explicou
o especialista.
As declarações de Lindemberg e o modo como se portou
durante aqueles quatro dias
terríveis sugerem que se trata
de uma pessoa muito frágil.
No que consiste essa fragilidade? De modo sumário, numa
organização da personalidade
que evidencia mecanismos
mentais muito arcaicos, uma
angústia extremamente intensa, e modos de lidar com ela
que, em vez de a diminuir, potencializam a sensação de estar
sendo atacado por forças maléficas contra as quais é preciso
se defender a todo custo.
Partamos do que disse o rapaz: "Meu problema é com a
menina que tá aqui na minha
frente. Tenho que desenrolar...". Desenrolar o quê? O que
ele via em Eloá, que a tornava
tão indispensável a sua sobrevivência psíquica? Claramente,
bem mais que um objeto de desejo ou de amor.
Tudo indica que havia projetado nela algo de si mesmo,
uma parte ao mesmo tempo
amada, odiada e temida, que
nem podia recuperar nem tolerar que "fosse embora".
Projeções maciças
Esse modo de estabelecer
vínculos é menos raro do que se
poderia supor. Ele tem o nome
de "relação de objeto narcísica"
e, quando se instala, acarreta
conseqüências bastante graves
-embora deva ficar claro que,
no mais das vezes, não levam o
sujeito a matar alguém.
Em primeiro lugar, a relação
com os outros significativos
(pais, namorados, cônjuges) é
permeada por projeções maciças: eles se convertem em artigos de primeira necessidade,
um pouco como a droga para o
adicto.
Deles se exigem uma presença física e um grau de atenção
que comprovem o quanto
amam o sujeito; mas, como o
que este almeja é fundir-se com
o objeto para poder controlá-lo,
por assim dizer, "de dentro", o
fato de que o ser amado é diferente dele e tem vida própria é
sentido como insuportável.
A ameaça de o perder (real ou
imaginária) desencadeia uma
angústia aterradora, que freqüentemente se exprime por
ciúmes patológicos e por atuações que podem chegar à violência. Pelo que mostrou de si
durante o seqüestro, Lindemberg parece fazer parte desse
grupo de pessoas.
O termo que empregou -desenrolar- é revelador: precisava separar-se do que havia depositado na ex-namorada. Como diz a psicanalista Joyce
McDougall ("Le Théâtre en
Rond", em "Théâtres du Je" [O
Teatro de Arena, em Teatros do
Eu]), o outro é aqui "considerado e tratado como uma parte de
si mesmo que deve ser amada,
odiada, dominada ou destruída".
Mas isso era justamente o
que não podia fazer: "Estou
confuso", "preciso ficar sozinho", "olho para a frente e não
vejo caminho". A total impotência, impossível de ser admitida porque significaria a ruína
de uma auto-imagem já muito
pouco sólida, é negada pela megalomania: "Eu sou o cara",
"sou o príncipe do gueto, o cara
que manda no local".
A espetacularização do seu
ato tresloucado, a evidência de
que (como disse o coronel) havia conseguido mobilizar todo
aquele aparato (e a atenção de
milhões de telespectadores),
teve o efeito de reforçar sua
crença nessas fantasias grandiosas. Tudo indica que elas estavam a ponto de se converter
em delírio: "Tem um anjinho e
um diabinho, e o diabinho está
falando mais alto".
A projeção das dúvidas em
entes sobrenaturais, devidamente divididos em um bom e
um mau, fica aqui patente.
Também é visível o apelo a
uma figura capaz de pôr fim
àquela situação, alguém dotado
de poder suficiente tanto para
silenciar o diabinho quanto para fazer Eloá desistir de o abandonar:
"Invade essa p... logo, mano.
Tô falando para você invadir.
Se a polícia passar segurança, a
gente sai de mãos dadas [...],
mas preciso de sinceridade."
Bebês
A necessidade de controlar
essa parte cindida de si é ilustrada por McDougall com um
comportamento observado em
alguns bebês que sofrem de insônia crônica: para adormecer,
precisam sempre da presença
física da mãe.
Isso sugere que não conseguiram interiorizar a imagem
materna em grau suficiente para poder se apoiar nela e se desligar com tranqüilidade do estado de vigília; pode-se dizer
que a figura da mãe não chega a
se constituir no núcleo de um
objeto interno "bom" e reassegurador.
Por conseguinte, o sentimento de identidade desses futuros
adultos -de ser "eu", ao mesmo tempo separado dos outros
e ligado a eles por vínculos sólidos e variados- permanece como que esburacado, gelatinoso,
lacunar, exigindo ser reforçado
pela injeção constante de "cimento narcísico" por parte do
objeto a quem se delegou essa
função.
Se estas observações permitem formular uma hipótese sobre por que Lindemberg não
pôde suportar ser abandonado
pela namorada, por outro lado
não o isentam da responsabilidade pelo crime que cometeu.
Isso dito, ficam as lições das
quais bastante se falou nos últimos dias.
Mesmo que nada garanta que
um seqüestrador enlouquecido
não vá matar sua vítima, a polícia deve receber os equipamentos que poderiam ter monitorado o que se passava no apartamento, e as emissoras precisam
rever sua idéia do que é informar: a busca insensata dos picos de audiência as levou a se
tornarem cúmplices involuntárias de um assassinato. Que se
lembrem disso quando o próximo seqüestrador apontar a arma para a sua vítima.
RENATO MEZAN é psicanalista e professor titular da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP). Escreve na seção "Autores", do Mais! .
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