São Paulo, domingo, 26 de novembro de 2000

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Versos em negativo


Autor não injetou em sua obra poética a ironia e a verve que tinha


em relação à própria vida Nelson Ascher
da Equipe de Articulistas

Um dos muitos escritores com os quais a pequena Irlanda enriqueceu a literatura da ilha vizinha e rival, Oscar Wilde teve a sorte ou, quem sabe, o azar de conquistar em vida e preservar depois uma fama maior que os méritos de sua obra. Pouco antes do fim, ele disse a André Gide (1869-1951) que havia investido todo o seu gênio na vida, e apenas seu talento na obra. No entanto a lembrança de sua vida, por mais numerosas que sejam as biografias, já se tornou vaga e mesmo o grande escândalo que o transformou em uma espécie de mártir do homossexualismo deixou há tempos de ser escandaloso e, portanto, grande. Tivesse isso sido tudo, seu nome, meia geração após a morte, nada mais diria a ninguém. Acontece que algum gênio ele de fato colocou no que escrevia.
A exemplo de tantos outros escritores que, na maturidade, se celebrizaram antes como ficcionistas, ensaístas ou dramaturgos, o irlandês começou sua carreira escrevendo poesia, e foi esta que, de início, o tornou conhecido. Escreveu em seguida ensaios, contos, um romance e comédias. Boa parte dessa produção articulava-se com/e ajudava a realçar, na segunda metade da era vitoriana (ou seja, o provável ápice, em termos de poder, riqueza e prestígio, da história inglesa), a personagem cujos trajes ele tratou de vestir.
Essa personagem era concomitantemente o poeta refinado e decadente, o perfeito "gentleman" bon vivant capaz de entreter, noite adentro, a todos num salão, o observador cáustico e sarcástico da sociedade e de seus vícios. Em uma palavra (intraduzível): o "wit".
Alguns de seus escritos são muito bons e se converteram em clássicos. Assim, embora, devido ao espírito da época, tenha sido "Salomé" (escrita em francês) sua peça que ficou mais conhecida no mundo, especificamente no universo de língua inglesa é "The Importance of Being Earnest" (traduzida, para manter-se o trocadilho, como "A Importância de Ser Prudente") que se considera sua obra-prima; "O Retrato de Dorian Gray", uma variação sobre o tema faustiano, continua sendo lido; e sua melhor prosa talvez esteja em algumas de suas histórias (não só) para crianças, como "O Rouxinol e a Rosa" ou (minha favorita) "O Aniversário da Infanta" (um conto não menos cruel que "O Pequeno Sr. Friedmann", de Thomas Mann).
O que, porém, fazia personagem e obra convergirem era uma faceta peculiar de seu gênio, provavelmente o próprio cerne deste: sua capacidade de encapsular grandes paradoxos em pequenas frases, sua habilidade de talhar aforismos memoráveis. Era nisso que consistia o melhor de seu gênio, e não é pouca coisa, pois se trata de um dom raro, e se contam nos dedos os grandes aforistas, os mestres do mínimo. Como essa habilidade não é essencialmente distinta daquela que a poesia frequentemente requer, se torna inevitável perguntar: quanto dela transparece nos textos propriamente poéticos de Wilde? A resposta é: virtualmente nada.
Sua poesia (incluindo a muito traduzida "Balada do Cárcere de Reading") não se diferencia, nem qualitativa nem estilisticamente, da produção mediana e corriqueira de sua época em seu país. E convém sublinhar que, se pusermos de lado Gerard Manley Hopkins (1844-1889), cuja obra só foi "redescoberta" décadas mais tarde, ou Thomas Hardy (1840-1928), que então era conhecido apenas como romancista e cujos poemas somente viriam a ser mesmo divulgados na sua velhice, não se estava escrevendo poesia particularmente interessante na Inglaterra de fins do século 19. Embora em alguns casos, como no final de seu "Soneto à Liberdade", surja em seus versos uma inesperada ponta de ironia, não parece ter ocorrido a Oscar Wilde, talvez por falta de estímulo de um ambiente poético pouco exigente e/ou excitante, injetar "wit" em sua poesia, que, por isso mesmo, sobretudo à luz do melhor de sua verve, fica apenas como indicação ou como negativo daquilo que poderia ter sido.


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