São Paulo, domingo, 26 de novembro de 2000

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+ brasil 501 d.C.
Sem medo de Virginia Woolf

Lenise Pinheiro/Folha Imagem
Cena da peça "Quem tem Medo de Virginia Woolf?", em cartaz no Rio de Janeiro



George e Martha não são pífios por se resumirem às aparências do que fingem ser, como no mundo de corte, ou por fazerem do sofrimento a última razão do sentimento, como manda o romantismo; são artificiais e desabridos porque, como muitos, acreditam muito pouco no que dizem acreditar


Jurandir Freire Costa

Em 1782, Choderlos de Laclos publicou "As Ligações Perigosas", romance em que narrava o declínio da cultura de corte e a ascensão da privacidade burguesa no Ocidente. No livro, a marquesa de Merteuil e o visconde de Valmont eram apresentados como signos de um mundo que morria, levando consigo valores como reputação, brio e fidelidade à hierarquia aristocrática. No pólo oposto estavam o cavaleiro Danceny e a presidente de Tourvel, representantes do ideal romântico da sinceridade, profundidade e autenticidade emocionais. A marquesa e o visconde são derrotados na ficção e na vida. O intimismo romântico de Danceny e de Tourvel se tornou o modelo de conduta afetiva que aprendemos a admirar e a imitar. A cultura intimista, entretanto, renunciou aos fins, mas não aos meios. O romantismo não pedia mais aos indivíduos que ferissem as próprias mãos para aprenderem a sorrir enquanto sangravam, como relatava a marquesa de Merteuil. Continuou, no entanto, a ver a disciplina de si como um sinal de nobreza e elevação espiritual. A vida privada ocidental, do final do século 18 até meados do século 20, se tornou, desse modo, um exercício de autopersuasão destinado a mostrar que a "verdade" afetiva é um bem escasso, e o amor-paixão, um prêmio oferecido às lágrimas sentimentalmente corretas.

Herança sentimental
Edward Albee, em 1962, fez um delicado balanço dessa herança sentimental em "Quem Tem Medo de Virginia Woolf?". Dessa vez, o meio foi o teatro, e o tema, os "novos cortesãos". Engana-se, contudo, quem pensar em mais um ataque de intelectuais pedantes a burgueses obtusos. George e Martha, Nick e Honey, os personagens da trama, não são caricaturas de George Grosz (1893-1959) ou Otto Dix (1891-1969); são o nec plus ultra da cultura ocidental. George, professor de história, é casado há 20 anos com Martha, filha do presidente de uma seleta universidade no estilo "old New England"; Nick é um jovem professor de biologia, recém-admitido na universidade, e Honey, sua mulher. George e Martha recebem os jovens em casa e, entre doses de uísque e acertos de conta virulentos, tentam se convencer de que os convidados não serão como eles, pobres tipos surrados pela vida. Tentativa vã. O desencanto, então, se torna despudor. Se a ninguém interessa o melhor, vamos ao pior! A partir daí, os dois vomitam tudo que lhes vem à cabeça. À decadência soma-se a indecência. A regra do "me rebaixo, logo existo" passa a comandar o jogo, mostrando que entre a intenção da honestidade emocional e o efeito da indignidade pessoal o passo é curto. Albee expõe a privacidade sentimental em sua face degradada, a autoconsciência que humilha, tortura e paralisa. Duzentos anos após Laclos, o sujeito do intimismo, inchado dele mesmo, fez da compulsão à "autenticidade" auto-observação doentia, levada aos limites da paranóia. Não queremos conhecer a nós mesmos para mudar; queremos fazer do conhecimento razão de sofrimento. João Falcão, na montagem de "Quem Tem Medo de Virgínia Woolf ?", foi direto ao que importava. Percebeu o abismo emocional que separa 1962 da virada do século 20. Em 40 anos, o drama descambou para a farsa, o sofrimento, para a derrisão. Na cultura narcísica do "mínimo eu", não sofremos porque "o mundo caiu" e, com ele, nossos ideais. Sofremos porque tememos criar um futuro incerto, sem confiar no outro.

Vontade introspectiva
A vontade aristocrática de agir dobrou-se ao romantismo, abandonando a ação no mundo pelo fascínio do "desejo interior". A vontade pós-burguesa cansou desse exílio interno. Mas, viciada em introspecção, não sabe o que fazer da liberdade, em meio às sobras do mundo comum que ajudou a destruir. Donde o caráter burlesco da miséria moral encenada. João Falcão entendeu que delicadeza para com o sofrimento não é gozo obsceno com o papel de sofredor. Cortesia não é masoquismo; solidariedade não é indulgência. Com artifícios dramatúrgicos, impede, assim, que nos identifiquemos à fraqueza autocomplacente. Antes de tudo, retira os personagens do ambiente que torna o intimismo ressentido simpático e palatável. Nada de lareiras aconchegantes, tapetes felpudos ou "obras de arte" emoldurando olhares mansos e entediados. A nudez do cenário expulsa a indigência moral de sua toca favorita, o ronrom do conforto material. Depois, contraria a expectativa de quem está pronto para ouvir, com ohs! e ahs!, confissões mesquinhas de casais em vias de extinção. Em vez dos conhecidos "mordes-e-sopras", a estridência monocórdica, exasperante, de quem berra para nada dizer. George e Martha, versão 2000, não são pífios por se resumirem às aparências do que fingem, ser como no mundo de corte, ou por fazerem do sofrimento a última razão do sentimento, como manda o romantismo. São artificiais e desabridos porque, como muitos, acreditam muito pouco no que dizem acreditar. Por isso, dão sempre a impressão de viverem emoções decoradas. Com Nick acontece o mesmo. Logo, logo a polidez oportunista e servil que tenta afetar é trocada pela língua venenosa dos mestres e tutores encarregados de introduzi-lo na "dolce vita" universitária. A cada tempo seu desejo. Sentimentos fora do lugar fazem rir ou deixam indiferentes aqueles a quem deviam emocionar. Em uma feliz metáfora do mundo de hoje, o diretor desloca o que resta da ternura humana para os jogos abstratos de som e luz. Aqui e ali, uma frase musical ou um azul de fundo em meio-tom evocam um mundo emocional irrecuperável que insistimos em idolatrar, por não querermos dar início a novas formas de sentir, viver, agir e amar.

Atuação impecável
Os atores, finalmente, estão impecáveis. Não apenas Marieta Severo (Martha) e Marco Nanini (George), que confirmam o indiscutível talento que possuem. Os jovens Fábio Assunção (Nick) e Sílvia Buarque (Honey), com grande senso de discrição e equilíbrio, souberam se desincumbir da difícil tarefa que lhes foi dada. É neles que se reflete a vontade partida dos que negociaram os sentimentos pelas sensações, a espontaneidade pela fobia segura, a criatividade pelo conformismo. A leitura que João Falcão faz de Albee, com certeza, não é exclusiva. Mas, com certeza, toca naquilo que interessa à boa vida e à verdadeira arte: a beleza da felicidade e a grandeza do que é belo. As novas gerações brasileiras, pelas mãos sensíveis do diretor, poderão, talvez, entender mais facilmente o que André Malraux chamou do sonho mais profundo dos humanos: "Agir governando sua ação".

Jurandir Freire Costa é psicanalista e professor de medicina social na Universidade Estadual do Rio de Janeiro. É autor de, entre outros, "Sem Fraude nem Favor" e "Razões Públicas, Emoções Privadas" (ambos da Rocco). Escreve regularmente na seção "Brasil 501 d.C.".
E-mail: jfreirecosta@alternex.com.br


A peça "Quem Tem Medo de Virginia Woolf?" está em cartaz no Rio de Janeiro no teatro João Caetano. Informações pelo telefone 0/ xx/21/221-0305.


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