São Paulo, domingo, 26 de novembro de 2000

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O historiador americano Carl Schorske fala sobre seu livro "Pensando com a História", que está saindo no Brasil, em que discute a crise da cultura que marcou o fim do século 19


O conflito de gerações da modernidade

Jean-Baptiste Marongiu
do "Libération"

Como sempre foi apaixonado por política e adorava música, o historiador das idéias norte-americano Carl Schorske se tornou mundialmente conhecido como especialista na cultura vienense do fim do século 19. E é exatamente esse um dos temas de seu novo livro, "Pensando com a História", que está saindo no Brasil.
O interesse por política foi transmitido pelo pai, um banqueiro nova-iorquino de antiga ascendência alemã, que, contrário à entrada dos EUA na Primeira Guerra, abraçou a causa socialista e pacifista.
O preconceito de que era vítima sua mãe, judia, mesmo num meio rico e culto, desenvolveu nele ainda mais o gosto por certa marginalidade radical, como demonstra sua carreira universitária notável, mas agitada, da universidade Wesleyane, em Ohio, para Berkeley e Princeton. A história das idéias revelou-se o campo em que seus dois grandes centros de interesse extracurriculares -música e política, além de pintura, arquitetura, urbanismo, jardinagem-, podiam ser explorados não de modo isolado, como o eram habitualmente, mas conjuntamente, em sua imbricação com o tempo.
Essa questão da relação entre cultura e história foi estudada por Carl Schorske na Áustria da segunda metade do século 19, pois o país lhe parecia realmente exemplar da passagem européia para a modernidade: num primeiro momento, ali domina o historicismo, a história encarregada de explicar uma sociedade que se industrializa em grande velocidade. Num segundo momento, no início do século 20, a modernidade se afirma contra a história, e o modernismo passa a significar uma prática cultural cujo elemento básico é a ruptura com o passado em todos os domínios da cultura e das artes, até a psicanálise, de Klimt a Kokoschka, de Mahler a Schoenberg, de Kraus a Loos, a Freud...
O resultado foi o seu já clássico "Viena Fin de Siècle" (ed. da Unicamp/Companhia das Letras), retomado neste "Pensando com a História".

Por que esse título?
O problema do livro é a passagem do historicismo ao modernismo. Acredito que ambos fazem parte da modernidade, que são modos de raciocínio historicamente determinados. O modernismo é uma mentalidade que produz sua própria visão de mundo com materiais modernos, para se confrontar diretamente com a modernidade, enquanto esta é um conceito muito maior que o modernismo. O século 19 foi o século da história na medida em que, diante das novidades políticas, industriais, demográficas, democráticas, ele se voltou para a história do passado, já que não tinha outros instrumentos intelectuais para compreender esses novos problemas.
E por que Viena é exemplar dessa passagem?
O historicismo não é um fenômeno apenas austríaco. Em toda a Europa a arquitetura do século 19 é neogótica, neoclássica, isto é, eclética ao retomar os estilos do passado. Mas Paris foi modernizada pela Revolução Francesa, e o desenvolvimento industrial é mais precoce e importante na França do que na Europa Central e Áustria, onde a cultura histórica coloca sobretudo a questão da adoção do sistema parlamentar e da constituição de uma nação em um império multinacional. Em Viena, o projeto e a arquitetura da Ringstrasse (avenida que contorna o centro da cidade, construída a partir de 1857 pelo imperador Francisco José 1º) simbolizam perfeitamente essa transição.
Crise e modernidade parecem então caminhar juntas.
Essa crise é vista em Paris na metade do século, quando surge uma cultura da modernidade emancipada do Iluminismo. Baudelaire (1821-1867) e os impressionistas são muito conscientes de viverem em uma época de transição. Na Áustria a crise toma a forma de um conflito de gerações, o que não ocorreu em 1789. Os pintores da Secessão revoltam-se política e culturalmente contra o historicismo dominante. Isso me faz pensar nas lutas da juventude antes e depois de 1968. Não há uma visão geral da sociedade, mas a rejeição da cultura dos pais: o liberalismo no caso austríaco no final do século 19 e, mais recentemente, a luta pelos direitos civis, a liberação sexual, a emancipação dos negros e das mulheres...
Visto dos EUA, por um historiador especializado em cultura austríaca, o que significa o líder de extrema direita Joerg Haider?
As duas correntes centrais da história moderna da Áustria são, de um lado, as tradições católica e barroca, que irão alimentar a sensibilidade e a sensualidade do estetismo fim-de-século, e, de outro, a tradição protestante da palavra, ancorada na universidade, própria do Iluminismo e incentivada pelo absolutismo esclarecido dos Habsburgos. O Partido do Povo (do atual premiê Wolfgang Schuessel, que forma com o Partido da Liberdade, de Haider, a primeira coalizão de extrema direita a governar um país europeu desde o fim da Segunda Guerra) e o Partido Social Democrata são seus herdeiros diretos, enquanto o nacionalismo de Haider representa um terceiro pólo que sempre foi minoritário na Áustria. Como no passado, a evolução da situação depende do que acontecerá no resto da Europa.
Depois de dedicar sua vida a acrescentar cultura à história, o senhor parece envolvido na tarefa inversa.
É uma espécie de serviço que presto o de introduzir história nos programas de música, em manifestações artísticas... Como conselheiro histórico, estive ligado a uma grande exposição sobre Viena que aconteceu há pouco em Paris e que foi uma oportunidade maravilhosa para mim, que me permitiu trabalhar as relações entre arte e cultura. Também pretendo continuar trabalhando para que o mundo artístico e a história da cultura se enriqueçam através de um esclarecimento recíproco.


Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.



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