São Paulo, domingo, 26 de novembro de 2000

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Ponto de fuga
O melhor crítico

Jorge Coli
especial para a Folha

Arnaldo Pedroso d'Horta foi um esplêndido desenhista. Basta ir à página 187 do livro "O Olho da Consciência" (IP/Edusp/ SEC), organizado por sua filha Vera d'Horta, para que desponte o assombro diante de um bico-de-pena ali reproduzido. Mas, se o livro, que é muito bem editado, apresenta algumas ilustrações, se consagra de fato à reunião de um grande número de análises sobre as artes plásticas. Elas eram destinadas a jornais. Foram escritas por Arnaldo Pedroso d'Horta entre 1943 e 1974.
Durante a leitura dessas 400 páginas, tem-se a sensação de um choque. Não que o autor empregue fórmulas literárias brilhantes. Ao contrário, o impacto vem, primeiro, de uma escrita cuja simplicidade voluntária cerceia a adjetivação e ordena, sem malabarismo, o sujeito, o verbo, o predicado. Ela contém, em si, pelo exemplo, a denúncia das facilidades no estilo, do "escrever bonito", do "escrever obscuro", que impressionam de um modo superficial para esconder o pensamento raso.
Nada é enunciado na primeira pessoa. Tudo é dito sem narcisismo, sem ataques frontais. Bastam confrontos serenos. Em certa passagem, Pedroso d'Horta cita a enumeração enfática de outro autor, encontrada no catálogo de uma exposição -"musicalidade polifônica das linhas ora grossas, ora finas, ora agrupadas, ora isoladas, ora densas, ora dilutas, ora contidas, ora expansivas"- , para denunciar brandamente: "O visitante verá uns poucos desenhos de pequeno tamanho que em traços muito sintéticos procuram representar a imagem do cavaleiro montado em seu cavalo".
Desbaste - "O Olho da Consciência" traça o fio condutor de uma longa trajetória jornalística voltada para as artes plásticas brasileiras. Suas formidáveis qualidades anunciam-se, primeiro, pelas ausências. A recusa de traços estilísticos relevantes na escrita vem acompanhada por uma economia nas referências. Não é a erudição que se impõe. Ao contrário, o modo aparentemente desarmado de interrogar as obras permite ir logo ao cerne e garante atualidade aos textos, livres de modismos. É a obra que conta, é dela, de um princípio descritivo, que a reflexão brota. Nunca se manifestam indulgências ou ódios por afetos ou desafetos. Não há ainda pretensões teóricas nem compromissos ideológicos. Não há nem sequer cheiro do nacionalismo ou dos "sociologismos", tão frequentes em outros autores da época.
Em verdade, em vez de uma estética constituída, deparamo-nos com uma ética da análise, impecável, exemplar no seu respeito aos problemas dispostos pelas próprias obras. As lições de Arnaldo Pedroso d'Horta encontram-se nas entrelinhas. É a honestidade do olhar que expande a inteligência sobre o objeto visto.
Cânone - "O Olho da Consciência" traz artigos longos e outros muito breves: todos se centram num alvo estrito. Na sua maioria, versam sobre exposições ocorridas em São Paulo. Formam, por isso mesmo, um poderoso instrumento de estudos sobre as artes do período. Mas fica evidente que nunca houve a intenção de transformá-los em livro. Na maioria, são comentários precisos e pontuais. As questões percebidas em cada obra, no entanto, se abrem num leque amplo, para outros horizontes. A modéstia que lhes é congênita mostra uma consciência muito alta dessas questões, maiores que o crítico, que o artista, e alinhadas na grandeza da arte.
Mãos - É raro que os artistas se transformem em críticos isentos. Eles estão por demais comprometidos com seus próprios projetos para compreenderem, plenamente, obras que os contradigam ou neguem. Tecem simpatias e antipatias legítimas, porque elas alimentam estímulos e convicções que os conduzem à criação. Com Pedroso d'Horta passa-se o contrário. O conhecimento técnico, vindo de práticas artísticas, é seu primeiro instrumento para entender as artes de outrem.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br



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