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Ponto de fuga
O melhor crítico
Jorge Coli
especial para a Folha
Arnaldo Pedroso d'Horta foi um esplêndido desenhista. Basta ir à página 187 do livro "O Olho da Consciência" (IP/Edusp/ SEC), organizado por sua filha Vera
d'Horta, para que desponte o assombro diante de um
bico-de-pena ali reproduzido. Mas, se o livro, que é
muito bem editado, apresenta algumas ilustrações, se
consagra de fato à reunião de um grande número de
análises sobre as artes plásticas. Elas eram destinadas a
jornais. Foram escritas por Arnaldo Pedroso d'Horta
entre 1943 e 1974.
Durante a leitura dessas 400 páginas, tem-se a sensação de um choque. Não que o autor empregue fórmulas
literárias brilhantes. Ao contrário, o impacto vem, primeiro, de uma escrita cuja simplicidade voluntária cerceia a adjetivação e ordena, sem malabarismo, o sujeito,
o verbo, o predicado. Ela contém, em si, pelo exemplo, a
denúncia das facilidades no estilo, do "escrever bonito",
do "escrever obscuro", que impressionam de um modo
superficial para esconder o pensamento raso.
Nada é enunciado na primeira pessoa. Tudo é dito
sem narcisismo, sem ataques frontais. Bastam confrontos serenos. Em certa passagem, Pedroso d'Horta cita a
enumeração enfática de outro autor, encontrada no catálogo de uma exposição -"musicalidade polifônica
das linhas ora grossas, ora finas, ora agrupadas, ora isoladas, ora densas, ora dilutas, ora contidas, ora expansivas"- , para denunciar brandamente: "O visitante verá
uns poucos desenhos de pequeno tamanho que em traços muito sintéticos procuram representar a imagem
do cavaleiro montado em seu cavalo".
Desbaste - "O Olho da Consciência" traça o fio condutor de uma longa trajetória jornalística voltada para
as artes plásticas brasileiras. Suas formidáveis qualidades anunciam-se, primeiro, pelas ausências. A recusa de
traços estilísticos relevantes na escrita vem acompanhada por uma economia nas referências. Não é a erudição
que se impõe. Ao contrário, o modo aparentemente desarmado de interrogar as obras permite ir logo ao cerne
e garante atualidade aos textos, livres de modismos. É a
obra que conta, é dela, de um princípio descritivo, que a
reflexão brota. Nunca se manifestam indulgências ou
ódios por afetos ou desafetos. Não há ainda pretensões
teóricas nem compromissos ideológicos. Não há nem
sequer cheiro do nacionalismo ou dos "sociologismos",
tão frequentes em outros autores da época.
Em verdade, em vez de uma estética constituída, deparamo-nos com uma ética da análise, impecável,
exemplar no seu respeito aos problemas dispostos pelas
próprias obras. As lições de Arnaldo Pedroso d'Horta
encontram-se nas entrelinhas. É a honestidade do olhar
que expande a inteligência sobre o objeto visto.
Cânone - "O Olho da Consciência" traz artigos longos
e outros muito breves: todos se centram num alvo estrito. Na sua maioria, versam sobre exposições ocorridas
em São Paulo. Formam, por isso mesmo, um poderoso
instrumento de estudos sobre as artes do período. Mas
fica evidente que nunca houve a intenção de transformá-los em livro. Na maioria, são comentários precisos e
pontuais. As questões percebidas em cada obra, no entanto, se abrem num leque amplo, para outros horizontes. A modéstia que lhes é congênita mostra uma consciência muito alta dessas questões, maiores que o crítico, que o artista, e alinhadas na grandeza da arte.
Mãos - É raro que os artistas se transformem em críticos isentos. Eles estão por demais comprometidos com
seus próprios projetos para compreenderem, plenamente, obras que os contradigam ou neguem. Tecem
simpatias e antipatias legítimas, porque elas alimentam
estímulos e convicções que os conduzem à criação.
Com Pedroso d'Horta passa-se o contrário. O conhecimento técnico, vindo de práticas artísticas, é seu primeiro instrumento para entender as artes de outrem.
Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br
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