São Paulo, domingo, 26 de novembro de 2006

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+ Cultura

As jóias afirmativas

A partir do estudo da ourivesaria, historiadora investiga a condição da mulher negra na Bahia colonial

Divulgação/Acervo do Museu Carlos Costa Pinto
Retrato de integrantes da Irmandade da Boa Morte, com a indumentária e as jóias típicas


JULIANA MONACHESI
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

O que a ourivesaria originária da Bahia nos séculos 18 e 19 poderia ter a nos ensinar sobre a afirmação da mulher negra na sociedade brasileira? Muito, se considerarmos a cuidadosa pesquisa apresentada pela historiadora e museóloga Solange de Sampaio Godoy no livro "Círculo das Contas -Jóias de Crioulas Baianas" (Fundação Museu Carlos Costa Pinto de Salvador, tel. 0/xx/ 71/3336-6081, 108 págs., R$ 60), que possui vasta coleção de joalheria desse período. "A jóia é um índice de poder, sinaliza uma mulher que, dentro do seu grupo, tem uma forma de se distinguir do todo, de se representar de uma forma diferente", afirma a pesquisadora em entrevista à Folha.
 

FOLHA - O que originou a opulência da Bahia expressa nos trajes tanto de mulheres livres como de escravas nos séculos 18 e 19 e qual a razão para o uso de jóias exuberantes pelas crioulas baianas, escravas ou libertas, no mesmo período?
SOLANGE DE SAMPAIO GODOY
- Começando pela opulência, eu diria que a Bahia teve uma grande importância nos séculos 17 e 18 por causa do comércio, sobretudo por causa do açúcar. A riqueza acumulada na Bahia, fruto do trabalho dos engenhos, fez com que houvesse grandes fortunas, e houve sempre uma vontade de externar a opulência por meio de sinais que correspondessem a esse fausto: na arquitetura religiosa, em todo o equipamento doméstico, no guarda-roupa das mulheres livres, nas jóias das mulheres livres e também nas jóias de algum tipo de escrava ou mulher negra liberta.
Essa estética que foi assumida pela mulher negra que tinha prestígio, ou como escrava ou como liberta, foi muito influenciada por uma estética africana em que os tecidos com cores fortes eram muito valorizados.
Os colares de contas aparecem em várias nações africanas, não de ouro, mas de contas de modo geral, e as de contas de ouro especialmente aparecem entre os akans. Assim, houve esse imenso intercâmbio com a África, também do ponto de vista da estética da opulência, do exagero, que permaneceu até os nossos dias. Permaneceu nas roupas ou nas fantasias de baiana.
Todas as escolas de samba valorizam muito as alas de baianas, que podem variar de ano a ano, mas uma coisa não muda nunca: a grande quantidade de colares de bolas. Foi a partir dessa opulência de enfeites, de colares, sobretudo, que Carmen Miranda criou seu modelo para representar o Brasil em uma visão hollywoodiana.

FOLHA - A sua pesquisa trata das características étnicas da ourivesaria baiana, e a sra. afirma que as jóias crioulas possuem matrizes africana e portuguesa. Por quê? A matriz portuguesa seria já contaminada pela africana?
GODOY
- Sim, na medida em que Portugal começou sua aventura ultramarina na costa da África. Quando os portugueses vão para a costa d'África e começam a edificar, por exemplo, São Jorge da Mina, que é a grande fortaleza, o grande entreposto português na costa da África, eles entram em contato com os povos, com a maneira de ser, com a descoberta desse homem inusitado, sobretudo o da nação akan, que estava localizada no que corresponde hoje a parte de Gana.
Os akans possuíam ouro de aluvião, eram ricos, trabalhavam muito no comércio e tinham esse tipo de joalheria, mas não para o uso corrente, apenas para aqueles que detinham o poder. Houve estreito intercâmbio entre essa região e Portugal, com a região do porto de Viana do Castelo, grande entreposto comercial no noroeste do país.
Então essas jóias chegaram a Portugal muito antes da descoberta do Brasil. E começou a haver troca: havia um saber na área de ourivesaria em Portugal muito desenvolvido, muito antigo, e os portugueses se apropriam desse modelo ou se inspiram nele para produzirem essas jóias.
Tanto as akans como as portuguesas e brasileiras são assemelhadas em tudo. São leves porque são ocas, são sempre trabalhadas, as bolas podem receber um trabalho de filigrana, que já existe entre os axantis e que já estava desenvolvido em Portugal. É como se, aqui, o modelo se inspirasse nesse intercâmbio estreito que houve.

FOLHA - A identificação que a sra. faz do guerreiro akan representado na pintura "Negro", de Albert Eckhout, é uma novidade em termos de história da arte?
GODOY
- Não, mas na verdade a maioria das identificações não chama a atenção para isso. Muitos autores afirmam tratar-se de um negro africano, e alguns dizem mesmo tratar-se de um escravo.
Para mim o quadro é muito revelador, a partir da arma, aquele facão que ele usa e que é uma espada akan.
A atitude dele não é a de um negro escravizado, mas sim de um homem que tem uma atitude altiva. Ele não está submetido, em absoluto.

FOLHA - Sobre a indumentária e as jóias utilizadas pela Irmandade da Boa Morte: no âmbito religioso as jóias tinham uma outra função?
GODOY
- Isso é muito interessante, porque existem as jóias num uso profano -as escravas que saíam de colares de ouro com as suas senhoras ou a mulher negra livre que tinha isso quase como um dote- e existe o uso das jóias pela mulher que pertencia a essa irmandade religiosa de Nossa Senhora da Boa Morte, aqui e em Portugal.
Fazia parte da indumentária dessa irmandade -de um lado e do outro do Atlântico- a presença abusiva de jóias. Então as mulheres da Boa Morte -que eram negras e são negras até hoje, porque a irmandade continua ativa em Cachoeira (BA), mas existia em Salvador inicialmente- usavam as jóias como um diferencial da sua condição, da sua importância social em um dado meio: "Eu tenho um poder, eu tenho uma importância que não é dada a todas as negras, eu faço parte de um irmandade que tem prestígio", até hoje.
E, do lado de lá, no noroeste de Portugal, essa irmandade era constituída de mulheres do campo, mulheres que juntavam essas jóias para seu dote, como se fosse seu tesouro.
Em Portugal, na maior parte das vezes, elas estão todas de preto; aqui elas usam a saia de baeta preta, a bata branca toda bordada e o pano da costa e as jóias. E algumas até hoje ainda têm as peças originais, que foram herdando, passadas de mãe para filha.

FOLHA - A foto da mãe-de-santo Pulquéria Maria da Conceição chama muito a atenção como uma figura altiva, que se distingue...
GODOY
- O que se vê com muita clareza é essa atitude digna, essa consciência negra de que se falou tanto na semana passada [no último dia 20 foi comemorado o Dia da Consciência Negra]. As fotos respiram isso, essas mulheres têm muita consciência do que são, do que representam.
A importância dessa pesquisa foi a de mostrar um outro lado, marcar uma distinção, e as jóias ajudam a entender isso melhor: que houve consciência, por parte dessas mulheres, de sua importância -ou porque eram amantes ou porque eram babás ou porque se livraram do jugo dos senhores e se transformaram, compraram a liberdade e tiveram um lugar dentro de um grupo ou irmandade.
Quer dizer, na África, eram rainhas que usavam, na Martinica também era a elite. Aqui, foram usadas pelas mulheres negras que, de certa forma, se distinguiram no seio de uma sociedade escravocrata.


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