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+ Cultura
As jóias afirmativas
A partir do estudo da ourivesaria, historiadora investiga a condição da mulher negra na Bahia colonial
Divulgação/Acervo do Museu Carlos Costa Pinto
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Retrato de integrantes da Irmandade da Boa Morte, com a indumentária e as jóias típicas |
JULIANA MONACHESI
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
O que a ourivesaria
originária da Bahia nos séculos 18
e 19 poderia ter a
nos ensinar sobre
a afirmação da mulher negra
na sociedade brasileira?
Muito, se considerarmos a
cuidadosa pesquisa apresentada pela historiadora e museóloga Solange de Sampaio Godoy
no livro "Círculo das Contas
-Jóias de Crioulas Baianas"
(Fundação Museu Carlos Costa Pinto de Salvador, tel. 0/xx/
71/3336-6081, 108 págs., R$
60), que possui vasta coleção
de joalheria desse período.
"A jóia é um índice de poder,
sinaliza uma mulher que, dentro do seu grupo, tem uma forma de se distinguir do todo, de
se representar de uma forma
diferente", afirma a pesquisadora em entrevista à Folha.
FOLHA - O que originou a opulência da Bahia expressa nos trajes tanto de mulheres livres como de escravas nos séculos 18 e 19 e qual a razão para o uso de jóias exuberantes
pelas crioulas baianas, escravas ou
libertas, no mesmo período?
SOLANGE DE SAMPAIO GODOY - Começando pela opulência, eu diria que a Bahia teve uma grande
importância nos séculos 17 e 18
por causa do comércio, sobretudo por causa do açúcar.
A riqueza acumulada na Bahia, fruto do trabalho dos engenhos, fez com que houvesse
grandes fortunas, e houve sempre uma vontade de externar a
opulência por meio de sinais
que correspondessem a esse
fausto: na arquitetura religiosa,
em todo o equipamento doméstico, no guarda-roupa das
mulheres livres, nas jóias das
mulheres livres e também nas
jóias de algum tipo de escrava
ou mulher negra liberta.
Essa estética que foi assumida pela mulher negra que tinha
prestígio, ou como escrava ou
como liberta, foi muito influenciada por uma estética africana
em que os tecidos com cores
fortes eram muito valorizados.
Os colares de contas aparecem em várias nações africanas, não de ouro, mas de contas
de modo geral, e as de contas de
ouro especialmente aparecem
entre os akans.
Assim, houve esse imenso intercâmbio com a África, também do ponto de vista da estética da opulência, do exagero,
que permaneceu até os nossos
dias. Permaneceu nas roupas
ou nas fantasias de baiana.
Todas as escolas de samba
valorizam muito as alas de
baianas, que podem variar de
ano a ano, mas uma coisa não
muda nunca: a grande quantidade de colares de bolas. Foi a
partir dessa opulência de enfeites, de colares, sobretudo, que
Carmen Miranda criou seu modelo para representar o Brasil
em uma visão hollywoodiana.
FOLHA - A sua pesquisa trata das
características étnicas da ourivesaria baiana, e a sra. afirma que as
jóias crioulas possuem matrizes africana e portuguesa. Por quê? A matriz portuguesa seria já contaminada pela africana?
GODOY - Sim, na medida em
que Portugal começou sua
aventura ultramarina na costa
da África.
Quando os portugueses vão
para a costa d'África e começam a edificar, por exemplo,
São Jorge da Mina, que é a
grande fortaleza, o grande entreposto português na costa da
África, eles entram em contato
com os povos, com a maneira
de ser, com a descoberta desse
homem inusitado, sobretudo o
da nação akan, que estava localizada no que corresponde hoje
a parte de Gana.
Os akans possuíam ouro de
aluvião, eram ricos, trabalhavam muito no comércio e tinham esse tipo de joalheria,
mas não para o uso corrente,
apenas para aqueles que detinham o poder.
Houve estreito intercâmbio
entre essa região e Portugal,
com a região do porto de Viana
do Castelo, grande entreposto
comercial no noroeste do país.
Então essas jóias chegaram a
Portugal muito antes da descoberta do Brasil. E começou a
haver troca: havia um saber na
área de ourivesaria em Portugal muito desenvolvido, muito
antigo, e os portugueses se
apropriam desse modelo ou se
inspiram nele para produzirem
essas jóias.
Tanto as akans como as portuguesas e brasileiras são assemelhadas em tudo. São leves
porque são ocas, são sempre
trabalhadas, as bolas podem receber um trabalho de filigrana,
que já existe entre os axantis e
que já estava desenvolvido em
Portugal. É como se, aqui, o
modelo se inspirasse nesse intercâmbio estreito que houve.
FOLHA - A identificação que a sra.
faz do guerreiro akan representado
na pintura "Negro", de Albert Eckhout, é uma novidade em termos
de história da arte?
GODOY - Não, mas na verdade a
maioria das identificações não
chama a atenção para isso.
Muitos autores afirmam tratar-se de um negro africano, e
alguns dizem mesmo tratar-se
de um escravo.
Para mim o quadro é muito
revelador, a partir da arma,
aquele facão que ele usa e que é
uma espada akan.
A atitude dele não é a de um
negro escravizado, mas sim de
um homem que tem uma atitude altiva. Ele não está submetido, em absoluto.
FOLHA - Sobre a indumentária e as
jóias utilizadas pela Irmandade da
Boa Morte: no âmbito religioso as
jóias tinham uma outra função?
GODOY - Isso é muito interessante, porque existem as jóias
num uso profano -as escravas
que saíam de colares de ouro
com as suas senhoras ou a mulher negra livre que tinha isso
quase como um dote- e existe
o uso das jóias pela mulher que
pertencia a essa irmandade religiosa de Nossa Senhora da
Boa Morte, aqui e em Portugal.
Fazia parte da indumentária
dessa irmandade -de um lado
e do outro do Atlântico- a presença abusiva de jóias.
Então as mulheres da Boa
Morte -que eram negras e são
negras até hoje, porque a irmandade continua ativa em
Cachoeira (BA), mas existia em
Salvador inicialmente- usavam as jóias como um diferencial da sua condição, da sua importância social em um dado
meio: "Eu tenho um poder, eu
tenho uma importância que
não é dada a todas as negras, eu
faço parte de um irmandade
que tem prestígio", até hoje.
E, do lado de lá, no noroeste
de Portugal, essa irmandade
era constituída de mulheres do
campo, mulheres que juntavam
essas jóias para seu dote, como
se fosse seu tesouro.
Em Portugal, na maior parte
das vezes, elas estão todas de
preto; aqui elas usam a saia de
baeta preta, a bata branca toda
bordada e o pano da costa e as
jóias. E algumas até hoje ainda
têm as peças originais, que foram herdando, passadas de
mãe para filha.
FOLHA - A foto da mãe-de-santo
Pulquéria Maria da Conceição chama muito a atenção como uma figura altiva, que se distingue...
GODOY - O que se vê com muita
clareza é essa atitude digna, essa consciência negra de que se
falou tanto na semana passada
[no último dia 20 foi comemorado o Dia da Consciência Negra]. As fotos respiram isso, essas mulheres têm muita consciência do que são, do que representam.
A importância dessa pesquisa foi a de mostrar um outro lado, marcar uma distinção, e as
jóias ajudam a entender isso
melhor: que houve consciência,
por parte dessas mulheres, de
sua importância -ou porque
eram amantes ou porque eram
babás ou porque se livraram do
jugo dos senhores e se transformaram, compraram a liberdade e tiveram um lugar dentro
de um grupo ou irmandade.
Quer dizer, na África, eram
rainhas que usavam, na Martinica também era a elite. Aqui,
foram usadas pelas mulheres
negras que, de certa forma, se
distinguiram no seio de uma
sociedade escravocrata.
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