São Paulo, domingo, 26 de novembro de 2006

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Intimistas x realistas

"Uma História do Romance de 30" aborda o elo entre ficção e crítica social em autores como Graciliano Ramos e Dyonélio Machado

ALCIDES VILLAÇA
ESPECIAL PARA A FOLHA

As mais de 700 páginas que Luís Bueno dedicou a esse estudo dos romances brasileiros escritos na década de 30 do século passado podem sugerir, em nossos dias atropelados, excesso de otimismo. Talvez seja.
Mas, como a seriedade da incursão histórica no período se combinou com a ousadia de interpretar no detalhe tantas obras, das famosas às esquecidas, e tudo flui em linguagem clara e honesta, há esperança de que os leitores retribuam tanto empenho com interesse proporcional. E a melhor das respostas é sempre a discussão -sobretudo no caso de um estudo como esse.
A designação "o romance de 30" já é, de saída, bastante discutível, seja pela forma singular de "o romance", seja pelo confinamento de "de 30". Como o próprio autor reconhece, "é sempre algo arbitrária a escolha, pela história literária, de balizas temporais".
Sua reação ao arbítrio representou-se no compromisso de ler "toda" a produção dessa época e mostrar como o chão das experiências históricas não apenas dá base a impulsos ficcionais mas é por eles alçado a um plano em que se figuram a variedade e a complexidade dessas experiências.

Historiografia e ensaísmo
Para não fugir a esse desafio dialético, Luís Bueno articula com largo fôlego a empreitada historiográfica e o ensaísmo interpretativo, mostrando-se, a meu ver, mais fecundo neste último. A assimilação do que seja o "nacional" (tão cara aos modernistas de 22) parece, num primeiro momento, constituir para o autor a ambiciosa postulação histórica a que teriam respondido, num antagonismo também interno, tanto os escritores "regionalistas" como os "intimistas".
Mas Luís Bueno prefere o exame das obras aos rótulos e sabe que podem se confrontar -não apenas numa década mas num mesmo romancista- forças que empuxam para lados divergentes.
Não por acaso, é na intensidade e na diversidade dramática dos narradores de Graciliano Ramos que o ensaísta reconhece a maturação decisiva da questão que é o eixo do seu estudo: a figuração do "outro".
Simplifico, com o risco de reduzir: Luís Bueno avalia nos romancistas de 30, dos mais consagrados aos desconhecidos ou há muito esquecidos, a capacidade de constituir e representar a específica distância que os separa... do próximo.

O lugar do outro
É o critério da forma de atuação dessa alteridade, manifesta no resultado objetivo da representação ficcional em cada romance, que leva o ensaísta a matizar e a graduar as diferenças, admitidas como "valores" que sempre se agregam à significação que uma obra acaba tendo para cada leitor (embora alguns prefiram escamotear esses valores internalizados, em nome da "objetividade" que neutraliza o gosto, o ponto de vista e a tensão crítica).
Luís Bueno sabe (e poderia, talvez, ter insistido ainda mais nessa questão) que a identificação de qual seja o lugar do "outro" se prende, antes de tudo, à identificação do lugar do próprio "eu" -razão pela qual não se pode levar a ferro e fogo uma oposição definitiva entre "realismo" e "intimismo". O narrador torturado e "intimista" de "Angústia", de Graciliano Ramos, é menos "realista" que o narrador de "Capitães da Areia", de Jorge Amado? O introvertido amanuense Belmiro fala menos do mundo que o intimida, ao recorrer à forma de um diário pessoal?
Luís Bueno examina com grande proveito a atuação específica dos narradores, porque sabe que é a partir dela que se constitui e se mostra não apenas o universo das personagens mas a relação de interesse entre o ficcionista e o mundo, entre um "eu" específico e seu específico "outro".
Na estruturação de seu livro, essa oposição essencial vincula-se a muitas outras, como já o indicam alguns sugestivos títulos de capítulos ou de partes de capítulos: "Norte e Sul", "Utópico e Pós-Utópico", "Novidade e Velharia", "A Instituição da Divisão" etc.
Na raiz dessas tensões sente-se uma dupla desconfiança do autor: de um lado, a do limite de um insight específico diante da malha intrincada das relações históricas; de outro, a da insuficiência do quadro panorâmico se se quer distinguir a sutileza e a particularização da expressão artística. Como a desconfiança se mantém o tempo todo, o estudo se avoluma na estimulação ziguezagueante entre as configurações gerais e específicas da época e dos romances tratados.
Na seção que fecha o livro, o ensaio dá o tom final: Luís Bueno elege e interpreta, muitas vezes batendo de frente com juízos já estabelecidos, obras de quatro autores (Graciliano Ramos, Cyro dos Anjos, Dyonélio Machado e Cornélio Penna), dadas como exemplares para a ratificação de posições assumidas ao longo do estudo.

Análise comparada
A justificativa está nesta formulação lapidar: "A fatura artística pode servir para impulsionar o conteúdo político de uma obra, mas o contrário é muito difícil de acontecer".
A fórmula, no contexto do livro, não tem nada de abstrato: ela nasce de um exaustivo exercício de análise comparada entre dezenas de romancistas, mais precisamente entre as linhas de alcance de seus discursos, sempre considerado o fundamento da relação entre um "eu" e seu "outro".
Sendo já uma sólida referência historiográfica e um conjunto orgânico de ensaios interpretativos, o livro em que Luís Bueno discute tudo a respeito dos romances de 30 precisa, por sua vez, ser amplamente discutido.


ALCIDES VILLAÇA é professor de literatura brasileira na USP.

UMA HISTÓRIA DO ROMANCE DE 30
Autor:
Luís Bueno
Editora: Edusp (tel. 0/xx/11/3091-4008)
Quanto: R$ 78 (712 págs.)



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