São Paulo, domingo, 27 de janeiro de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+ autores

Onetti e a recusa da vida

Juan José Saer

Em Paris, na sede da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), organizado pelo Centro de Estudos de Literaturas e Civilizações do Rio da Prata (Celcirp), realizou-se, entre 13 e 14 de dezembro, um colóquio internacional sobre a obra de Juan Carlos Onetti (1909-1994), que contou com a presença de Dorotea Muhr, a "Dolly", viúva do grande escritor uruguaio. Estudiosos vindos do Uruguai e da Argentina, mas também da França, da Holanda, da Itália, da Espanha, da Inglaterra e dos Estados Unidos, debateram durante esses dois dias alguns pontos cruciais de sua obra, como seus primeiros e seus últimos romances. Isto é particularmente interessante porque, até agora, a crítica se ocupara sobretudo do período 1950-1970, essas duas décadas decisivas de sua produção narrativa, durante as quais vieram à luz seus três grandes textos novelísticos (grandes principalmente por seu valor literário) que são "La Vida Breve", "Los Adioses" (1954) e "El Astillero", sem falar de alguns contos e novelas excepcionais e célebres como "El Infierno Tan Temido", "La Cara de la Desgracia", "Jacob y el Otro", "Tan Triste como Ela" ou a curiosíssima "Para una Tumba sin Nombre", de 1959.

Território imaginário
As comunicações e os debates giraram em torno de alguns conhecidos temas onettianos, sobre os quais lançaram novas luzes, como o estatuto do território imaginário de Santa María, a cidade mítica onde transcorre boa parte de sua ficção, e o fascínio pelo mal, pela angústia e pelo fracasso. Mas também houve lugar para a análise das histórias que o narrador uruguaio ambientou em Buenos Aires, da onipresença do dinheiro em alguns de seus textos, da filiação expressionista de muitos de seus procedimentos literários, dos elementos autobiográficos de seu primeiro romance, "El Pozo", escrito em 1939. Além disso, apresentou-se um estudo convincente em que, analisando um dos personagens de "Dejemos Hablar al Viento", o comissário Medina, pintor nas horas vagas, identifica-se Onetti com Francis Bacon. Este, como Onetti, nasceu em 1909 e, também como ele, morreu em Madri. Mas o que mais une o pintor inglês e o escritor uruguaio é sua coincidência artística nessa torturada galeria de retratos que os dois compuseram, com o pincel ou com a palavra. (A legendária inclinação de ambos pelo álcool constitui, sem dúvida, outro importante traço identificador). A presença de Dolly Onetti, que assistiu a todos os debates, longe de inibir os participantes quando era necessário expor alguns aspectos biográficos do autor de "Los Adioses", contribuiu para criar um clima de sinceridade e espontaneidade graças ao qual todos os planos de uma vida e uma obra de indubitável complexidade puderam ser discutidos livremente. À diferença de tantas viúvas abusivas que, quando não se valem do silêncio forçado do marido para usurpar o uso da palavra, leiloam seus textos ou procuram envolver o autor numa nuvem de solenidade, Dolly Onetti encantou os participantes com sua simplicidade, seu humor e seu bom senso. Assim como o marido, com quem compartilhou uma atribulada existência ao longo de quase 50 anos, Dolly Onetti também é artista: violinista profissional, integrou importantes grupos musicais rio-platenses e espanhóis. Onetti dedicou a ela seu melhor conto, "La Cara de la Desgracia", com uma estranha e bela fórmula que insinua um sentido cifrado só alcançável por eles dois: "Para Dorotea Muhr - ignorado cão da dita". E, entre os manuscritos de um de seus últimos livros, Onetti tinha preparada uma segunda dedicatória, que acabou não sendo publicada, cujo acento afetuoso, mas cheio de malícia, revela a irônica cumplicidade desse longo relacionamento: "Para Dorotea Muhr, que me vem amando há mais tempo que nenhuma outra, e mentindo menos que as demais, e melhor". Uma convicção nasceu nos participantes no final desses dois intensos dias: a admiração pelos livros de Onetti é indissociável do afeto que inspira o homem que os escreveu. Poucos escritores rio-platenses suscitam esse sentimento. No caso de Borges, por exemplo, para muitos de seus leitores, só a admiração sobreviveu à sua velhice contraditória e agitada. Se pensamos em Arlt ou em Felisberto Hernández, vemos que às vezes, por causa da estudada ingenuidade que professaram, à parte seu singular talento literário, o carinho que eles nos inspiram como indivíduos não é isento de uma leve condescendência.


Apesar de suas sutis preocupações formais, o mundo de Onetti transcende modas literárias ou os programas vanguardistas, instalando-se numa faixa emocional comum a todos os seus leitores; é por isso que o homem e a obra são inseparáveis e igualmente apreciados


Dois planos
Os leitores jovens têm o hábito de se projetar apaixonadamente no autor que lêem, mas, em geral, a idade adulta ensina a distinguir o homem da obra. Onetti tem o invejável mérito de ser apreciado nos dois planos ao mesmo tempo até por seus leitores adultos. Aqueles que o conheceram e conviveram com ele, seus amigos, podem idealizá-lo agora que o homem está ausente e só restam seus livros. Mas essa impressão de amizade e de intimidade com a pessoa que os escreveu também invade aqueles que nunca o conheceram. Sua obra e sua pessoa, porém, não procuram seduzir nem tranquilizar. Sabemos que, para Onetti, o terrível final de "El Astillero", com sua desesperada recusa da vida, da compaixão, sua negação de toda felicidade e de toda esperança, não era uma simples cena literária e sim a expressão de um profundo sentimento de derrota. Se ele desperta a nossa simpatia, é porque não ignoramos que essa situação sem saída é a de cada um de nós. Apesar de suas sutis preocupações formais, o mundo de Onetti transcende as modas literárias ou os programas vanguardistas, instalando-se numa faixa emocional que é comum a todos os seus leitores. É por isso que o homem e a obra são inseparáveis e igualmente apreciados. O homem Onetti não se vale de sua obra para mascarar sua fragilidade, e sim para expô-la e refletir sobre ela.

Técnica de montagem
Os trabalhos dedicados aos últimos textos de Onetti despertaram interesse porque, apesar de alguns críticos sustentarem que essas obras têm menos valor literário, elas são ricas como documentos sobre a vida e a obra de seu autor. Além disso, a análise de seus manuscritos mostra uma elaboração sinuosa e fragmentária, em que a linearidade do texto que chega aos leitores é obtida no final, graças a uma técnica de montagem. Mas, seja qual for o valor dessas obras, uma coisa é certa: se nos últimos anos de vida o homem Onetti foi vencido pelas forças que puxam para baixo -o álcool, a perda de toda ilusão, a tristeza, a velhice e a doença-, o escritor continuava vivo, persistindo no gesto inexplicável da escritura, no qual seus últimos sobressaltos de energia se concentraram.
Podemos supor que as razões dessa obstinação final por realizar o ato talvez inútil de escrever no limiar do nada tenham sido definidas por ele mesmo, muitos anos antes de sua morte, como "a vontade de não se entregar, de não aceitar o mundo extravagante que os outros povoam e defendem".

Juan José Saer é escritor e ensaísta argentino, autor de, entre outros, "A Pesquisa" e "Ninguém Nada Nunca" (Companhia das Letras). Escreve mensalmente na seção "Autores", do Mais!.
Tradução de Sergio Molina.


Texto Anterior: Conto faz parte de série de textos literários
Próximo Texto: Ponto de fuga - Jorge Coli: A arte como crime
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.