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ponto de fuga
A arte como crime
Jorge Coli
especial para a Folha
"A Pintura como Crime" é o título bombástico de
uma exposição no Museu do Louvre. A crítica foi impiedosa com ela, apontando o sensacionalismo, a iluminação melodramática, o pensamento raso que se reveste de um disfarce intelectualizado. Em cada sala há painéis inteiros recobertos com textos num estilo telegráfico, recheados de referências incessantes a Foucault, Lacan, Adorno, Horkheimer e quejandos. Sob pretexto de
"fazer ver" (já que, segundo o catálogo, a regra geral das
exposições "normais" seria "cegar"), isto é, de estimular, nas obras, uma espécie de subversão espontânea, o
rigor terminou por ser banido.
Mas permaneceu a estratégia da provocação. Incluir,
como objeto de fruição cultural, imagens de Auschwitz
acarretou respostas vivas na imprensa. De fato, essa inclusão é duplamente ignóbil: porque Auschwitz se torna peça de contemplação "estética", como se fosse obra
de arte, e porque é empregado como instrumento promotor de escândalo.
Resta, porém, o fato que o curador, Régis Michel, um
excelente especialista do período neoclássico, soube
trazer obras raras e magníficas de Canova, Carstens,
Sergel, entre outros artistas. A mostra segue, na verdade, um princípio simples, que alinha salas ou sequências monográficas. Começa no século 18. Depois, por
saltos, passa por um conjunto, muito amplo e notável,
reunindo a espantosa produção gráfica de Odilon Redon. Chega enfim a Pollock, a Yves Klein, ao "Wiener
Aktionismus". Tudo vai entremeado por vídeos recentes, em que o corpo dos "performers" sofre tensões ou
violências.
Látego - "La Frusta e il Corpo" (O Açoite e o Corpo,
1963), filme de Mario Bava, lançado no Brasil nos anos
80, trazia, como título, "Drácula no Mundo do Sexo".
Isso mostra bem a que público ele era destinado pelos
distribuidores. A Cinemateca Francesa, em Paris, programou-o dentro do ciclo "Sade e o Cinema".
Uma possessão angustiante, desesperada, toma conta
dos personagens de maneira contida e lenta. As explosões de violência física originam-se em pulsões interiores, insanas, descontroladas. Todos são habitados por
culpas não ditas e terríveis, que se infiltram na beleza
das cores, dos cenários, das roupas. A chibata zune sobre peles alvas e, sob o vento, a casa é chicoteada por ramos de trepadeiras. Christopher Lee (sua presença no
filme determinou o "Drácula" absurdo do título brasileiro) faz vibrar uma aura de ódios recalcados.
No mesmo ciclo, duas outras obras-primas: "El Processo de las Brujas" (1969) e "Os Demônios" (1972, produção portuguesa), de Jess Franco. Freiras açoitam o
próprio sexo com rosários; inquisidores, deliciados,
torturam e queimam bruxas. O emprego do zoom, incessante, arremessa o espectador para um erotismo furioso, em que a noção de sadismo não é leviana: prazer e
desejo se nutrem aqui da repressão política, da opressão
religiosa.
Gume - Bava e Franco trabalharam para um público
popular, que buscava excitações imediatas. Nem por isso seus poderes criadores ficaram diminuídos. Os filmes que dirigiram voltam hoje para platéias de cinéfilos, revelando tesouros.
Em DVD, foi editado recentemente "O Planeta dos
Vampiros", de Mario Bava (1965), com Norma Bengell.
Prefigura bastante "Alien", menos o tema da gênese orgânica. Centra-se na ressurreição dos mortos. Emprega
cenários limitados e pobres, mas que se transfiguram
pelo colorido intenso, pelas formas inspiradas, lembrando as mais altas produções da arte abstrata.
Talho - Que "A Pintura como Crime" seja pedante,
oportunista, aproximativa e abstrusa não impede a
grande qualidade das obras apresentadas. Não impede
também que se reitere, ali, uma sensibilidade contemporânea voltada para a intuição física do corpo. Sentido
como reduto material e subjetivo de entranhas e de carnes, dele partem investidas contra limites sociais, naturais, metafísicos. O que é um bom centro de reflexão,
desde que tratado com sinceridade plena.
Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br
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