São Paulo, domingo, 27 de fevereiro de 2000


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O artista e seu nome próprio se transformaram em grife que a indústria afixa no produto para melhor vendê-lo
O fenômeno "Xsara Picasso" e o fetiche da assinatura

Jean Clair
especial para "Le Monde"

Quem não viu o comercial? Numa sala do Museu Picasso -reconstituída em estúdio, já que a filmagem não foi autorizada-, um jovem visitante se aproxima de uma tela que ostenta uma banhista e quer acariciar seu seio. Um guarda idoso, vestido de negro e com galões dourados, se aproxima e o impede de fazê-lo, com brutalidade. Decepcionado, o jovem é convidado a comprar um automóvel Xsara (da Citroën), com o qual, imagina-se, poderá dar rédea às suas fantasias lúbricas. Poderíamos rir da farsa. Também podemos nos indignar. Indignados estão os funcionários do Museu Picasso, ridicularizados na figura caricata de um guarda. Indignados também os curadores, que, desde a abertura do museu, em 1985, conservaram a imagem e fortaleceram a cotação de um artista apenas para vê-lo vilipendiado. Indignado está o diretor, que sabe quanto custa ao Estado o funcionamento de sua instituição e quanto rende aos herdeiros a exploração dos direitos vinculados à obra. Indignados ficarão os 600 mil visitantes anuais que não sabiam que, ao dirigir-se ao Museu Picasso, estavam sendo convidados ao Salão do Automóvel.

Domínio público
Deixemos isso de lado. Se o governo parece estar desarmado diante da proteção do direito que se ousa qualificar como "moral" dos herdeiros, não seremos mais realistas que o rei. Mas podemos questionar os motivos que podem ter levado certas figuras que têm direito a Picasso a vender o nome de seu pai, quando sua fortuna pareceria protegê-las contra a necessidade. Na sociedade comercial deste final de século, tornou-se comum usar a obra de gênios, que se acreditava protegida, para vender os produtos irrisórios de uma indústria. Foi o caso, ontem, de "A Leiteira", de Vermeer, para comercializar potes de iogurte -ou, há pouco, do "Auto-Retrato" de Van Gogh, para anunciar colorantes industriais. Esses nomes caíram no domínio público. Ninguém mais os protege. Em se tratando de Picasso, o problema é diferente, na medida em que se exerce o direito "moral" que supostamente deveria proteger o patrimônio. Neste caso, porém, esse direito está sendo exercido de forma tão perversa que altera a imagem de maneira possivelmente irreversível. Quando se visa destruir de tal maneira a própria humanidade do homem, sua dignidade, sua identidade, um procedimento consiste em substituir seu nome por um número de matrícula -como é feito nas prisões, nos campos de concentração, nos exércitos-, ou seja, por um termo genérico. De maneira mais geral, as domésticas e prostitutas são sistematicamente rebatizadas, de modo a privá-las de sua identidade e reduzi-las a sua mera função.

Vocação do nome
Um nome (ou sobrenome) é uma vocação. Porque, se recebe o nome no momento do nascimento, passa-se a responder por seu nome. Eu me chamo porque sou chamado. Nome, dizia Edmond Jabès, é algo que deveria se dizer duas vezes, da esquerda para a direita e da direita para a esquerda, já que é composto de duas palavras: "mon" e "nom" ("meu" e "nome"). Entretanto, se esse nome, "meu nome", é notável demais, glorioso ou sonoro demais, e se eu, por minha obra, não sou capaz de responder à vocação que meu nome me impõe, ele me condena ao anonimato. Na sombra lançada pelo sobrenome do pai me torno um fulano qualquer, alguém que carrega um sobrenome sonoro demais. Será grande a tentação de apagar meu nome para chamar a mim mesmo de Dupont ou Martin -um nome como o de outra pessoa qualquer. É igualmente forte a tentação de conservar esse sobrenome, apesar de tudo ilustre, para com ele assinar uma obra medíocre que não terá de verdadeiro nada, exceto o nome. Assim, podemos nos mascarar -escolher um pseudônimo. A coisa nunca é inocente. Kafka tinha contas tão pesadas a acertar com o sobrenome do pai que assinava as obras com uma simples inicial, K. E o próprio Picasso, à sombra de um pai que era pintor apenas ruim, rejeitou seu patronímico, Ruiz, e optou pelo sobrenome da mãe. Um último recurso diante dos constrangimentos com o sobrenome do pai é o de rebaixar o nome para a condição de nome de um objeto em série. Fazer o nome entrar para a fileira do comum, obrigando a obra única a entrar para a produção em massa. Em se tratando do nome de Picasso, epônimo da modernidade -as pessoas simples não dizem "é um Picasso" para designar um quadro cujo caráter bizarro remete ao moderno?-, a substituição era ainda mais fácil. Mais ainda: diante do anonimato das obras antigas, é a emergência da assinatura que chama a atenção na modernidade em curso. A assinatura sobre a tela é a marca da modernidade. É a invenção do sujeito moderno na arte. Toda pintura contemporânea é assim obcecada pela idéia da assinatura, sem a qual ela correria o risco de não mais existir. Desse modo a assinatura se torna superior à obra, se destaca dela.

Assinatura em branco
Dalí e vários outros assinam pilhas de litografias "em branco". A simples rubrica de um artista vale ouro, mesmo que a obra ainda não exista. O fetichismo da assinatura, isolada da obra, se torna o pivô em torno do qual é organizada a discussão do preço. Grafia é o artifício técnico, a multiplicação industrial da assinatura que permite obter uma mais-valia, permitindo empurrar a obra única em direção ao bem vendido. Toda uma temática pré-industrial se lê no gesto de assinar: é a produção em série de um objeto fetichizado, declinado ao infinito, de tal maneira que seu estoque se renova e seu mercado permanece constante. O fenômeno "Xsara Picasso" não é mais do que o final último e, sem dúvida, inevitável de uma longa história. O artista, o homem que assina, ontem gênio inimitável criando obras únicas, se transformou em grife que a técnica contemporânea pode afixar a não importa que produto.
Assim, na sociedade do terceiro milênio, se dirá "um Picasso" para designar um automóvel, assim como hoje se diz "une poubelle" (uma lata de lixo), nome comum que tem sua origem no nome próprio do prefeito Poubelle.
E, para aqueles a quem a pintura de Picasso ainda interessa, a tela que serve de publicidade para o Xsara é intitulada "Figuras à Beira-Mar" e é de janeiro de 1931. Entrou para as coleções públicas graças à benevolência do Ministério das Finanças, num acordo relativo aos direitos de sucessão familiar.


Jean Clair é diretor do Museu Picasso de Paris e autor, entre outros, de "Le Romantisme" (Hachette).
Tradução de Clara Allain.


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