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O artista e seu nome próprio se transformaram em grife que a indústria afixa no produto para melhor vendê-lo
O fenômeno "Xsara Picasso" e o fetiche da assinatura
Jean Clair
especial para "Le Monde"
Quem não viu o comercial? Numa
sala do Museu Picasso -reconstituída em estúdio, já que a filmagem não
foi autorizada-, um jovem visitante se
aproxima de uma tela que ostenta uma
banhista e quer acariciar seu seio. Um
guarda idoso, vestido de negro e com galões dourados, se aproxima e o impede
de fazê-lo, com brutalidade. Decepcionado, o jovem é convidado a comprar
um automóvel Xsara (da Citroën), com o
qual, imagina-se, poderá dar rédea às
suas fantasias lúbricas.
Poderíamos rir da farsa. Também podemos nos indignar. Indignados estão os
funcionários do Museu Picasso, ridicularizados na figura caricata de um guarda.
Indignados também os curadores, que,
desde a abertura do museu, em 1985,
conservaram a imagem e fortaleceram a
cotação de um artista apenas para vê-lo
vilipendiado. Indignado está o diretor,
que sabe quanto custa ao Estado o funcionamento de sua instituição e quanto
rende aos herdeiros a exploração dos direitos vinculados à obra. Indignados ficarão os 600 mil visitantes anuais que
não sabiam que, ao dirigir-se ao Museu
Picasso, estavam sendo convidados ao
Salão do Automóvel.
Domínio público
Deixemos isso de
lado. Se o governo parece estar desarmado diante da proteção do direito que se
ousa qualificar como "moral" dos herdeiros, não seremos mais realistas que o
rei. Mas podemos questionar os motivos
que podem ter levado certas figuras que
têm direito a Picasso a vender o nome de
seu pai, quando sua fortuna pareceria
protegê-las contra a necessidade.
Na sociedade comercial deste final de
século, tornou-se comum usar a obra de
gênios, que se acreditava protegida, para
vender os produtos irrisórios de uma indústria. Foi o caso, ontem, de "A Leiteira", de Vermeer, para comercializar potes de iogurte -ou, há pouco, do "Auto-Retrato" de Van Gogh, para anunciar colorantes industriais. Esses nomes caíram
no domínio público. Ninguém mais os
protege. Em se tratando de Picasso, o
problema é diferente, na medida em que
se exerce o direito "moral" que supostamente deveria proteger o patrimônio.
Neste caso, porém, esse direito está sendo exercido de forma tão perversa que
altera a imagem de maneira possivelmente irreversível.
Quando se visa destruir de tal maneira
a própria humanidade do homem, sua
dignidade, sua identidade, um procedimento consiste em substituir seu nome
por um número de matrícula -como é
feito nas prisões, nos campos de concentração, nos exércitos-, ou seja, por um
termo genérico. De maneira mais geral,
as domésticas e prostitutas são sistematicamente rebatizadas, de modo a privá-las de sua identidade e reduzi-las a sua
mera função.
Vocação do nome
Um nome (ou
sobrenome) é uma vocação. Porque, se
recebe o nome no momento do nascimento, passa-se a responder por seu nome. Eu me chamo porque sou chamado.
Nome, dizia Edmond Jabès, é algo que
deveria se dizer duas vezes, da esquerda
para a direita e da direita para a esquerda, já que é composto de duas palavras:
"mon" e "nom" ("meu" e "nome").
Entretanto, se esse nome, "meu nome", é notável demais, glorioso ou sonoro demais, e se eu, por minha obra, não
sou capaz de responder à vocação que
meu nome me impõe, ele me condena ao
anonimato. Na sombra lançada pelo sobrenome do pai me torno um fulano
qualquer, alguém que carrega um sobrenome sonoro demais. Será grande a tentação de apagar meu nome para chamar
a mim mesmo de Dupont ou Martin
-um nome como o de outra pessoa
qualquer. É igualmente forte a tentação
de conservar esse sobrenome, apesar de
tudo ilustre, para com ele assinar uma
obra medíocre que não terá de verdadeiro nada, exceto o nome.
Assim, podemos nos mascarar -escolher um pseudônimo. A coisa nunca é
inocente. Kafka tinha contas tão pesadas
a acertar com o sobrenome do pai que
assinava as obras com uma simples inicial, K. E o próprio Picasso, à sombra de
um pai que era pintor apenas ruim, rejeitou seu patronímico, Ruiz, e optou pelo
sobrenome da mãe. Um último recurso
diante dos constrangimentos com o sobrenome do pai é o de rebaixar o nome
para a condição de nome de um objeto
em série. Fazer o nome entrar para a fileira do comum, obrigando a obra única a
entrar para a produção em massa.
Em se tratando do nome de Picasso,
epônimo da modernidade -as pessoas
simples não dizem "é um Picasso" para
designar um quadro cujo caráter bizarro
remete ao moderno?-, a substituição
era ainda mais fácil. Mais ainda: diante
do anonimato das obras antigas, é a
emergência da assinatura que chama a
atenção na modernidade em curso. A assinatura sobre a tela é a marca da modernidade. É a invenção do sujeito moderno
na arte. Toda pintura contemporânea é
assim obcecada pela idéia da assinatura,
sem a qual ela correria o risco de não
mais existir. Desse modo a assinatura se
torna superior à obra, se destaca dela.
Assinatura em branco
Dalí e vários outros assinam pilhas de litografias
"em branco". A simples rubrica de um
artista vale ouro, mesmo que a obra ainda não exista. O fetichismo da assinatura, isolada da obra, se torna o pivô em
torno do qual é organizada a discussão
do preço. Grafia é o artifício técnico, a
multiplicação industrial da assinatura
que permite obter uma mais-valia, permitindo empurrar a obra única em direção ao bem vendido. Toda uma temática
pré-industrial se lê no gesto de assinar: é
a produção em série de um objeto fetichizado, declinado ao infinito, de tal maneira que seu estoque se renova e seu
mercado permanece constante. O fenômeno "Xsara Picasso" não é mais do que
o final último e, sem dúvida, inevitável
de uma longa história. O artista, o homem que assina, ontem gênio inimitável
criando obras únicas, se transformou em
grife que a técnica contemporânea pode
afixar a não importa que produto.
Assim, na sociedade do terceiro milênio, se dirá "um Picasso" para designar
um automóvel, assim como hoje se diz
"une poubelle" (uma lata de lixo), nome
comum que tem sua origem no nome
próprio do prefeito Poubelle.
E, para aqueles a quem a pintura de Picasso ainda interessa, a tela que serve de
publicidade para o Xsara é intitulada "Figuras à Beira-Mar" e é de janeiro de 1931.
Entrou para as coleções públicas graças à
benevolência do Ministério das Finanças, num acordo relativo aos direitos de
sucessão familiar.
Jean Clair é diretor do Museu Picasso de Paris e autor,
entre outros, de "Le Romantisme" (Hachette).
Tradução de Clara Allain.
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