São Paulo, domingo, 27 de fevereiro de 2000


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+ história
Novos documentos revelam os vínculos estreitos existentes entre a sede da Ford, nos EUA, e o regime nazista, com o qual a fábrica cooperou até agosto de 1942, oito meses depois de os americanos entrarem na Segunda Guerra
ford e o führer

Ken Silverstein
especial para "The Nation"

Já lhe juramos lealdade uma vez,/ mas agora lhe prometemos fidelidade permanente./ Como correntezas perdidas numa torrente,/ todos nós desembocamos em ti./ Mesmo quando não conseguimos compreender-te,/ Caminharemos contigo./ Um dia quiçá poderemos compreender/ Como enxergas nosso futuro./ Corações como escudos de bronze,/ Colocamos à tua volta,/ E nos parece que apenas/ Tu és capaz de nos revelar o mundo de Deus." O poema acima foi reproduzido numa revista interna publicada pela subsidiária alemã da Ford Motor Company em abril de 1940. Intitulado "Führer", saiu numa época em que a Ford detinha controle total da empresa alemã e que dois de seus executivos de primeiro escalão integravam o conselho de direção da subsidiária. Foi também uma época em que o objeto do afeto da Ford estava avançando sobre a Europa ocidental, já tendo devorado a Áustria, Tchecoslováquia e Polônia. Encontrei o poema em meio a milhares de páginas de documentos compilados pela firma de advocacia Cohen, Milstein, Hausfeld & Toll, que procurava obrigar a Ford a pagar compensação a uma russa que trabalhou como escrava em sua fábrica na Alemanha. Em setembro passado um juiz de Nova Jersey, Joseph Greenaway Jr., arquivou o processo, alegando que os fatos que lhe serviram de base já teriam prescrito. Apesar de não exonerar a Ford, o juiz aceitou o argumento da empresa, segundo a qual "compensar pelas tragédias desse período vem sendo -e deve continuar a ser- preocupação tratada entre países e governos". A Ford alega que a sede da empresa, em Dearborn, Michigan (EUA), perdeu controle de sua fábrica na Alemanha depois da entrada dos EUA na guerra, em 1941. Logo, a Ford não seria responsável pelos atos de sua subsidiária alemã durante a Segunda Guerra Mundial. "Não fizemos negócios na Alemanha durante a guerra", diz uma porta-voz da Ford, Lydia Cisaruk. "Os nazistas confiscaram a fábrica, e perdemos todo contato com ela." Acrescentou que a Ford "desempenhou um papel crucial no esforço de guerra americano. Depois da entrada dos EUA na guerra, a Ford passou a dar apoio total ao esforço de guerra. O fato de a Ford e várias outras firmas americanas, incluindo a General Motors e o Chase Manhattan, terem colaborado com os nazistas já viera à tona anteriormente. A mesma coisa aconteceu com o papel de Henry Ford como líder do comitê America First (os EUA em primeiro lugar), que fez o possível para impedir que os Estados Unidos participassem da guerra. Mas os novos materiais, a maioria dos quais encontrada nos Arquivos Nacionais, são muito mais contundentes do que as revelações anteriores. Mostram, entre outras coisas, que, até Pearl Harbor, a Ford em Dearborn ganhou somas imensas produzindo material de guerra para o Reich e que o homem que escolheu para dirigir sua subsidiária alemã era ardoroso defensor de Hitler. Segundo relatório do Exército norte-americano redigido em 1945, a Ford alemã atuou como "arsenal do nazismo", com o consentimento da sede da empresa em Dearborn. Ademais, a Ford continuou cooperando com os nazistas pelo menos até agosto de 1942 -oito meses depois de os EUA entrarem na guerra-, por meio de suas propriedades na França de Vichy. De fato, um relatório secreto da época da guerra, redigido pelo Departamento do Tesouro americano, concluiu que a família Ford procurou fomentar seus interesses comerciais, incentivando executivos da Ford francesa a colaborar com os alemães que supervisionavam a ocupação alemã da França. "Parece que o senhor Edsel Ford (filho de Henry Ford) aceita, pelo menos tacitamente... a conhecida neutralidade da família Ford, como base para justificar a aceitação de favores do Reich alemão", diz o relatório.

Trabalho escravo
As novas informações sobre a participação da Ford na Segunda Guerra Mundial chegam num momento em que a colaboração de grandes empresas com o Terceiro Reich vem sendo alvo de crescente atenção. Em novembro passado, a NBC News informou que, a pedido das autoridades de ocupação alemãs, a filial francesa do Chase Manhattan congelou contas pertencentes a judeus. O gerente da filial francesa do Chase, Carlos Niedermann, cooperou estreitamente com oficiais alemães e aprovou empréstimos para financiar a produção de guerra para o Exército nazista. Na Alemanha, em meados de dezembro, o governo e cerca de 50 firmas que empregaram trabalho escravo e forçado durante a Segunda Guerra Mundial -incluindo a Bayer, BMW, Volkswagen e Daimler-Chrysler- chegaram a um acordo para a criação de um fundo de US$ 5,1 bilhões para compensar as vítimas. A subsidiária alemã da General Motors, Opel, anunciou que vai contribuir para o fundo. (Conforme divulgado no ano passado pelo "Washington Post", um relatório do FBI de 1941 citou James Mooney, o então diretor de operações no exterior da GM, como tendo afirmado que se negaria a fazer qualquer coisa que pudesse "irritar Hitler".) A Ford se negou a tomar parte nas negociações que levaram ao acordo, apesar de sua colaboração com o Terceiro Reich ter sido pública e notória. O diretor de operações globais da Ford, Jim Vella, alegou em comunicado à imprensa que "como a Ford não fez negócios na Alemanha durante a guerra -nossa fábrica em Colônia foi confiscada pelo governo nazista-, sua participação num fundo desse tipo não seria correta". O tratamento generoso proporcionado à Ford Motor pelo regime nazista pode ser atribuído em parte ao violento anti-semitismo de seu fundador, Henry Ford. Seu panfleto "The International Jew - The World's Foremost Problem" (O Judeu Internacional - O Problema Mais Premente do Mundo) chamou a atenção de um ex-cabo do Exército alemão chamado Hitler, que em 1923 se tornou presidente do nascente Partido Nazista. Quando, naquele ano, Ford cogitou em candidatar-se à presidência dos EUA, Hitler disse ao "Chicago Tribune": "Eu gostaria de poder enviar algumas de minhas tropas de choque a Chicago e outras grandes cidades americanas, para ajudar" (o fato é relatado em "Trading with the Enemy", de Charles Higham, que narra os detalhes da colaboração de empresas americanas com os nazistas). Em "Mein Kampf", escrito dois anos mais tarde, Hitler elogiou Ford, escrevendo: "São judeus que mandam nas forças da Bolsa de Valores da União Americana. A cada ano eles aumentam seu controle sobre os produtores nessa nação de 120 milhões; apenas um único homem, Ford, para a fúria deles, conserva sua independência total". Em 1938, muito depois de a natureza maligna do governo de Hitler já ter se evidenciado, Ford aceitou a Grande Cruz da Águia Alemã, a mais alta honraria concedida a estrangeiros pelo regime nazista.

Boom econômico
A Ford Motor se estabeleceu na Alemanha em 1925, abrindo um escritório em Berlim. Seis anos mais tarde, ergueu uma grande fábrica em Colônia, que passou a ser sua sede no país. A Ford da Alemanha prosperou nos anos do nazismo, especialmente com o boom econômico proporcionado pela Segunda Guerra. Suas vendas cresceram mais de 50% entre 1938 e 1943 e, segundo um relatório do governo americano encontrado nos Arquivos Nacionais, o valor da subsidiária alemã mais do que dobrou no decorrer da guerra.
A Ford colaborou de bom grado com os nazistas, e isso ao mesmo tempo fortaleceu muito suas perspectivas econômicas e ajudou Hitler a preparar-se para a guerra (e, após a invasão da Polônia, em 1939, a conduzi-la).
Em meados da década de 30, a sede da empresa, em Dearborn, ajudou a aumentar os lucros da Ford alemã, enviando a esta pedidos para entrega direta a fábricas Ford na América Latina e Japão. Em 1936, para preservar as reservas de divisas do Reich, o governo nazista proibiu a subsidiária alemã da Ford de comprar as matérias-primas de que precisava. A sede em Dearborn reagiu, exatamente como os nazistas esperavam que fizesse, enviando borracha e outros materiais a Colônia, em troca de componentes manufaturados na Alemanha. O governo nazista ficava com 25% do valor das matérias-primas importadas e as repassava a outras fábricas, num acordo aprovado por Dearborn.

Após a invasão da Polônia por Hitler, em 1939, desencadeando a Segunda Guerra, a Ford alemã tornou-se uma das maiores fornecedoras de veículos do Exército alemão; dos 350 mil caminhões que o Exército motorizado usava em 1942, aproximadamente um terço era fabricado pela Ford


Segundo o relatório do Exército americano redigido por Henry Schneider em 1945, antes mesmo de a guerra começar, a Ford alemã já produzia para o Reich veículos de natureza militar. Além disso, montou uma fábrica de guerra pronta para o dia da mobilização numa "zona segura" próxima a Berlim, medida essa tomada, segundo Schneider, com a aprovação da sede em Dearborn. Após a invasão da Polônia, em 1939, desencadeando a Segunda Guerra, a Ford alemã tornou-se uma das maiores fornecedoras de veículos do Wehrmacht (o Exército alemão). Documentos encontrados nos Arquivos Nacionais mostram que a empresa também vendia veículos às SS e à polícia. Em 1941, a Ford alemã tinha parado de fabricar veículos de passageiros e já dedicava sua capacidade inteira à produção de caminhões militares. Em maio desse ano, o líder do Partido Nazista em Colônia enviou uma carta à fábrica na qual agradeceu seus líderes por ajudar "a nos garantir a vitória na luta atual" (a guerra) e por dar mostras de disposição em "cooperar na criação de um Estado social exemplar". Os veículos Ford foram cruciais para a revolucionária estratégia militar nazistas da Blitzkrieg (guerra-relâmpago). Dos 350 mil caminhões que o Exército alemão motorizado usava em 1942, aproximadamente um terço era fabricado pela Ford. O relatório Schneider afirma que, quando os americanos chegaram ao teatro de guerra europeu, "os caminhões Ford, vistos em abundância nas linhas de abastecimento do Wehrmacht, eram, compreensivelmente, uma visão desagradável para os homens de nosso Exército". Na verdade, a fábrica de Colônia se revelou tão importante para o esforço de guerra do Reich que os aliados a bombardearam em várias ocasiões. Uma secreta "folha de informações sobre alvos" da Força Aérea americana em 1944 informava que, nos cinco anos anteriores, a fábrica tinha sido "preparada para alto nível de produção de guerra". Ao mesmo tempo em que trabalhava de bom grado para o Reich, a Ford resistiu, de início, aos chamados do presidente Roosevelt e do primeiro-ministro britânico Churchill para que aumentasse sua produção de guerra para os aliados. O governo nazista era grato por essa postura da Ford, conforme deixa clara uma carta de Heinrich Albert a Charles Sorenson, alto executivo da sede em Dearborn. Albert era advogado da Ford alemã pelo menos desde 1927 e, segundo o relatório do Tesouro, integrava uma rede de espionagem alemã que operou nos Estados Unidos durante a Primeira Guerra Mundial. "A recusa do senhor Henry Ford relativa aos pedidos (de veículos) de guerra para a Grã-Bretanha nos foi muito útil", escreveu Albert em julho de 1940, pouco após a queda da França, quando a Inglaterra parecia estar prestes a cair diante do avanço das tropas do Führer. A enérgica cooperação da Ford com o Terceiro Reich não impediu seus concorrentes de procurar macular sua imagem, chamando atenção para o fato de seus proprietários não serem alemães. A Ford reagiu nomeando para sua fábrica em Colônia um conselho de direção formado majoritariamente por alemães e dando à subsidiária o nome politicamente correto, em termos arianos, de Ford Werke. Em março de 1941 a Ford emitiu novas ações da fábrica de Colônia e as vendeu exclusivamente a alemães, com isso reduzindo a participação de Dearborn nela para 52%.

"Puramente alemã"
Ao longo de 1941, o conselho de direção da Ford Werke começou a temer que os EUA entrassem na guerra para apoiar a Grã-Bretanha e que o governo confiscaria a fábrica de Colônia. Para impedir que isso acontecesse, a direção da fábrica escreveu à Comissão do Reich naquele ano para dizer que "questiona(va) se a Ford deveria ser tratada como bem inimigo", mesmo no caso de os EUA declararem guerra à Alemanha. "A Ford já se transformou numa empresa puramente alemã e assumiu suas obrigações com tanto êxito que o acionista majoritário americano, independentemente das posições políticas favoráveis de Henry Ford, em alguns momentos chegou a contribuir para o desenvolvimento da indústria alemã", argumentou a fábrica de Colônia no dia 18 de junho de 1941, seis meses antes do ataque a Pearl Harbor.
Em maio de 1942, a Corte Superior de Colônia finalmente colocou a Ford Werke sob "curatela", alegando que estava sob "influência inimiga". Apesar disso, os nazistas nunca chegaram a nacionalizar a propriedade alemã da Ford. Os gerentes da fábrica temiam que, se isso fosse feito, ela poderia ser entregue à Mercedes ou à Hermann Goering Werke, rede industrial composta por propriedades tomadas pelo Reich, e Dearborn conservou seus 52% de participação até o fim da guerra.
A Ford Werke chegou a colocar de lado os dividendos que devia a Dearborn e que foram pagos quando a guerra acabou. A Ford afirma que recebeu apenas US$ 60 mil em pagamentos de dividendos. Essa informação -e qualquer outra relativa à relação de Dearborn com Colônia durante a guerra- ainda não foi confirmada por fontes independentes porque a Ford dos EUA era uma empresa de capital fechado até 1956 e a empresa não divulga suas folhas de balanço dessa época.
A escassez de mão-de-obra provocada pela guerra -milhões de homens estavam no front, e a ideologia nazista se opunha terminantemente à idéia de que as mulheres trabalhassem fora de casa- levou o Reich a deportar milhões de pessoas dos países ocupados para a Alemanha, para que trabalhassem em suas fábricas. As firmas alemãs foram incentivadas a requerer trabalhadores em regime forçado, para cumprir suas cotas de produção e aumentar seus lucros.
Em 1943, metade da força de trabalho da Ford Werke já era composta por trabalhadores estrangeiros cativos, entre os quais figuravam franceses, russos, ucranianos e belgas. Em agosto de 1944 um pelotão de homens da SS levou 15 prisioneiros do campo de concentração de Buchenwald para a Ford Werke. A pesquisadora alemã Karola Fings, co-autora de "Working for the Enemy" (Trabalhando para o Inimigo), um livro sobre os programas de trabalho forçado e escravo da era nazista a ser lançado nos próximos meses, diz que os operários detentos da Ford trabalhavam 12 horas por dia, com intervalo de 15 minutos. Ganhavam café da manhã composto por café puro e 200 gramas de pão, não almoçavam e, para o jantar, recebiam espinafre e três batatas ou sopa feita de folhas de nabo.
Um relato redigido por Robert Schmidt, o homem indicado em 1939 para gerir a Ford Werke, revela que a companhia usava trabalhadores forçados mesmo antes de os nazistas a colocarem sob curatela. Remetido a um executivo da Ford na Inglaterra imediatamente após a rendição da Alemanha, o documento diz que em 1940 "muitos de nossos funcionários foram convocados para o Exército e tiveram que ser substituídos por qualquer mão-de-obra que estivesse disponível... A mesma coisa se deu em 1941. Foram empregados cerca de 400 prisioneiros de guerra franceses".
Em declaração feita ao Exército americano em 1945, Schmidt disse que a Gestapo começou a desempenhar papel importante na Ford Werke após a chegada dos primeiros operários estrangeiros. Com a ajuda de W.M. Buchwald, funcionário da Ford desde meados dos anos 30, a Gestapo monitorava minuciosamente todas as atividades da fábrica. "Sempre que havia o menor indício de sentimento antinazista, quer fosse entre estrangeiros ou entre alemães, a Gestapo o reprimia com a maior dureza possível", disse Schmidt ao Exército.
Enquanto isso, a Ford Werke oferecia seu apoio político entusiasmado a Hitler. Os laços fraternos entre a Ford e os nazistas talvez sejam mais bem simbolizados pelo presente de aniversário que a empresa ofereceu ao Führer em abril de 1939 -35 mil "Reichsmarks".
Robert Schmidt se saiu tão bem na conversão da fábrica para unidade de produção para a guerra que o regime nazista lhe conferiu o título de "Wehrwirtschaftsführer", ou Líder Econômico Militar. Os nazistas também o encarregaram de supervisionar as fábricas da Ford na Bélgica e Holanda ocupadas e na França de Vichy. Em dado momento, ele e outro executivo de Colônia se desentenderam sobre quem administraria a Ford da Inglaterra quando as tropas de Hitler conquistassem a Grã-Bretanha. As contribuições pessoais de Schmidt para a revista interna da Ford Werke refletem suas posições ardorosamente pró-nazistas. "No início do ano juramos dar o melhor de nós para a vitória final, em lealdade inquebrantável para com o nosso Führer", escreveu em dezembro de 1941, no mês de Pearl Harbor. "Hoje afirmamos com orgulho que tivemos sucesso, se não em alcançar todas nossas metas, pelo menos em contribuir em grau considerável para providenciar os meios de transporte necessários para levar nossas tropas ao front." Em março seguinte, assinou um artigo no qual declarou: "O suprimento das necessidade do front depende de nosso trabalho... logo, também somos soldados do Führer". A família Ford e executivos da empresa em Dearborn parabenizaram repetidas vezes a direção da Ford Werke pelo belo trabalho que fazia sob a égide nazista. Em outubro de 1940, Edsel Ford escreveu a Heinrich Albert para expressar seu prazer com o fato de as fábricas da empresa em países ocupados continuarem em operação. "É muito bom que o senhor Schmidt possua a autoridade suficiente para poder viabilizar tais acordos", disse Edsel, que morreu de câncer durante a guerra. A mesma carta indica que a Ford estava inteiramente disposta a fazer negócios com os nazistas, se Hitler vencesse a guerra. Edsel disse a Albert que, embora fosse difícil prever o que poderia acontecer, "é possível que se torne necessário proceder a uma reestruturação geral do controle sobre nossos negócios na Europa. O senhor vai, sem dúvida, manter-se a par desse assunto, e, quando chegar o momento oportuno, poderemos nos beneficiar de suas idéias e sugestões". Albert respondeu no mês seguinte: "É com certeza um grande incentivo saber que o senhor aprecia os esforços que fazemos em seu interesse e nos da empresa". A seguir, teceu elogios a Schmidt, que, depois do início da guerra, tinha sido obrigado a assumir responsabilidades muito pesadas. "Sua personalidade cresceu de maneira quase espantosa no cumprimento dessa tarefa." De fato, Schmidt cresceu a tal ponto que os nazistas o mantiveram à frente da Ford Werke depois de colocarem a empresa sob curatela. Em fevereiro de 1942, quando a questão de quem iria dirigir a fábrica de Colônia ainda não tinha sido decidida, um oficial nazista local escreveu para a chancelaria de Hitler em Berlim para elogiar o executivo da Ford. O oficial disse que não via "razão para que seja indicado um curador especial para a empresa", já que Schmidt era "membro do Partido que goza de minha confiança... e da confiança das Forças Armadas alemãs".

Colaboracionismo
O comportamento da Ford na França, após a ocupação de junho de 1940, ilustra sua postura colaboracionista de maneira ainda mais grotesca. Assim que a poeira assentou, os gerentes locais da Ford fecharam com as autoridades da ocupação um acordo pelo qual a empresa era autorizada a retomar sua produção em prazo breve -"em benefício exclusivo da Alemanha e dos países sob seu domínio", segundo documento do Departamento do Tesouro dos EUA.
O relatório, motivado pela preocupação do governo com a possibilidade de a Ford estar negociando com o inimigo, expressa críticas acirradas a Maurice Dollfus, diretor da Ford na França desde 1929 e gerente da empresa no governo Vichy. "Dollfus recebeu ordens de substituir diretores e escolheu os novos diretores exclusivamente entre as fileiras de conhecidos colaboracionistas", diz o relatório do Tesouro. "Dollfus o fez com o intuito deliberado de ser bem-visto pelas autoridades."
O Departamento do Tesouro constatou que a sede da Ford em Dearborn mantinha contato regular com suas filiais na França de Vichy. Em uma carta redigida pouco após a rendição francesa, Dollfus assegurou à Ford em Dearborn: "Vamos nos beneficiar do fato muito importante de sermos um membro da família Ford, o que nos dá direito a um tratamento melhor por parte de nossos colegas alemães, que já demonstraram inequivocamente seu desejo de proteger ao máximo os interesses da Ford". Um executivo da Ford em Michigan respondeu: "Ficamos satisfeitos em saber por sua carta... que nossa organização está indo bem e que os vitoriosos dão mostras de tanta tolerância no tratamento que nos dão. Parece que talvez ainda tenhamos um negócio que possamos levar adiante, apesar de todas as dificuldades".

A porta-voz da Ford afirma que a sede da empresa nos EUA desconhecia, em grande medida, o apoio dado pela Ford Werke ao Terceiro Reich antes de Pearl Harbor


A família Ford encorajou Dollfus a cooperar estreitamente com as autoridades alemãs. Nesse ponto Dollfus não precisava de muito incentivo. "Com vistas a proteger nossos interesses -e aqui falo em termos muito amplos-, estive em Berlim e conversei com o próprio general Von Schell", escreveu em carta datilografada enviada a Edsel em agosto de 1940. "Minha entrevista com ele foi satisfatória, sob todos os aspectos, e a atitude que o senhor tomou, em conjunto com seu pai, de neutralidade estrita, vem sendo um trunfo estimável na proteção de suas empresas na Europa." No mês seguinte ele se queixou da escassez de dólares na França ocupada. Mas esse era um problema que talvez fosse apenas temporário. "Como os senhores sabem", escreveu a Dearborn na época, "nosso padrão monetário foi substituído por outro que, na minha opinião, é uma aposta no futuro, não apenas da França e da Europa, mas possivelmente de todo o mundo". Em outra carta a Edsel, escrita no final de novembro de 1940, Dollfus disse que queria "destacar a importância atribuída por altos representantes ao respeito pelos desejos da "Ford" e à conservação de sua boa vontade -e, quando digo "Ford", me refiro a seu pai, ao senhor e à Ford Motor Company em Dearborn". Tudo isso era motivo de imensa satisfação para a família Ford. Em outubro de 1940, Edsel escreveu a Dollfus dizendo que estava "extremamente satisfeito em saber que o senhor está fazendo progressos... Compreendo plenamente as dificuldades sob as quais o senhor trabalha". Três meses mais tarde, escreveu novamente para dizer que a sede da Ford sentia "grande orgulho das conquistas suas e de seus associados, levando a empresa a alcançar sua primeira grande posição sob circunstâncias como essas". A Ford em Dearborn manteve sua linha de comunicação constante com a Ford francesa até bem depois da entrada dos EUA na guerra. No final de janeiro de 1942, Dollfus informou Dearborn de que as operações da Ford francesa alcançavam o mais alto nível de produção entre todas as empresas manufatureiras francesas e, conforme o relatório do Tesouro, que "ainda confiava no governo francês para defender os interesses dos acionistas americanos". Nos meses seguintes, Dollfus escreveu a Edsel várias vezes para informá-lo sobre os danos sofridos pela fábrica francesa durante bombardeios da Real Força Aérea. Em sua resposta, Edsel se disse aliviado pelo fato de os jornais americanos que publicaram fotos de uma fábrica da Ford em chamas não a terem identificado como sendo pertencente à empresa. Em 17 de julho de 1942, Edsel escreveu que mostrara a carta mais recente de Dollfus a seu pai e a Sorenson, executivo da Ford: "Eles se juntam a mim para desejar ao senhor e à sua equipe o melhor possível e expressar a esperança de que o senhor siga adiante com o bom trabalho que vem desenvolvendo". Como acontecera na Alemanha, a política adotada pela Ford revelou ser extremamente rentável. A Ford francesa nunca tinha sido muito lucrativa em tempos de paz, tanto assim que pagara apenas um dividendo em toda sua história, mas os serviços que prestou ao Reich a levaram a uma posição de adimplência confortável. Dollfus escreveu a Dearborn para gabar-se desse feliz avanço, acrescentando que "o prestígio da empresa na França aumentou consideravelmente e hoje é bem maior do que era antes da guerra".

A posição da Ford
Os funcionários do Departamento do Tesouro ficaram horrorizados com as atividades da Ford, fato que se percebe claramente. Um funcionário chamado Randolph Paul enviou o relatório ao secretário Henry Morgenthau, acompanhado de uma carta dizendo: "As atividades intensificadas das subsidiárias francesas da Ford em prol dos alemães foram elogiadas pela família Ford nos Estados Unidos". Pouco depois Morgenthau respondeu: "Se pudermos fazê-lo, legal e eticamente, eu gostaria de repassar as informações relativas à Ford ao senador (Harry) Truman".
Lydia Cisaruk, a porta-voz da Ford, afirma que a sede da empresa desconhecia, em grande medida, o apoio dado pela Ford Werke ao Terceiro Reich antes de Pearl Harbor. Nenhum dos dois executivos de Dearborn que integravam o conselho de direção da Ford Werke, Edsel Ford e Charles Sorenson, participaram de reuniões do conselho após 1938. "Em 1940, a sede em Dearborn já se envolvia cada vez menos nas operações do dia-a-dia da empresa", diz ela. "Ocorreu uma perda gradativa de controle." Indagada sobre o apoio político dado pela Ford Werke aos nazistas e evidenciado em sua revista interna, a porta-voz respondeu: "Nos anos que antecederam a guerra, ninguém podia prever o que estava por acontecer. Vários países faziam negócios com a Alemanha, e a Alemanha dizia repetidas vezes que buscava soluções pacíficas. Os EUA ainda dialogavam com a Alemanha até o momento em que os dois países entraram em guerra". Ela reconhece que alguma mão-de-obra "estrangeira" foi empregada na fábrica no início de 1940, mas diz que Dearborn não tinha conhecimento do fato na época.
Cisaruk afirma que a Ford está fazendo uma pesquisa abrangente sobre a Ford Werke e que, quando a pesquisa for concluída neste ano, a empresa colocará à disposição dos interessados todas as evidências documentais que tiver encontrado, incluindo os registros históricos da Ford Werke. Embora a Ford não tenha participado das negociações envolvendo as empresas alemãs que usaram trabalhadores escravos durante a guerra, Cisaruk diz que a empresa está em negociações preliminares com o vice-secretário do Tesouro, Stuart Eizenstat, para criar um fundo humanitário americano para sobreviventes do Holocausto. "Queremos, sim, ajudar pessoas que sofreram nas mãos dos nazistas", afirma.
A produção na Ford Werke diminuiu de ritmo no final da guerra, em parte devido aos blecautes provocados pelos bombardeios aliados, mas suas atividades nunca chegaram a ser interrompidas. Pouco após a rendição da Alemanha, representantes da Ford da Inglaterra e dos Estados Unidos viajaram até Colônia para inspecionar a fábrica e fazer planos para o futuro. Em 1950, a Ford alemã recontratou Schmidt -que tinha sido detido por tropas americanas e mantido preso por pouco tempo no final da guerra, depois que ele escreveu à sede em Dearborn uma carta na qual afirmou que odiara os nazistas de todo coração.
Schmidt foi um dos seis executivos-chave da era nazista que voltaram a assumir cargos importantes na Ford após 45. "Depois da guerra, a Ford não apenas reassumiu o controle da fábrica, mas também assumiu o controle da história da fábrica", diz o historiador Fings. "Aparentemente, ninguém na Ford estava interessado em trazer à tona essa parte de sua história, nem mesmo para tentar distanciar-se explicitamente das práticas adotadas pela Ford Werke durante o nazismo." Schmidt continuou na empresa até sua morte, em 1962.
O auge do cinismo da Ford ainda estava por vir. Antes de sua queda, o regime nazista dera à Ford Werke cerca de US$ 104 mil a título de compensação pelos danos provocados pelos bombardeios aliados (a Ford também conseguiu dinheiro do governo Vichy pelos danos que sofreu nos bombardeios). A sede em Dearborn não se satisfez com esse montante. Em 1965, a Ford apresentou-se à Comissão de Compensações no Exterior dos EUA para pedir outros US$ 7 milhões (durante as audiências, o advogado da comissão, Zvonko Rode, apontou o fato constrangedor -e que não foi contestado pelo advogado da Ford- de que a maioria dos produtos manufaturados destruídos nos bombardeios tinha sido produzida para o uso das Forças Armadas nazistas). A comissão acabou por pagar US$ 1,1 milhão à empresa, mas apenas depois de provar que a Ford utilizara uma taxa de câmbio falsa para elevar o montante dos alegados prejuízos. A comissão também constatou que a Ford Dearborn tinha pedido compensação por mercadorias que haviam sido destruídas numa inundação.
A pressa da Ford em procurar compensação por prejuízos sofridos pela Ford Werke durante a era nazista torna ainda mais hipócrita sua postura atual de desmentir que tenha mantido qualquer ligação com a fábrica alemã durante a guerra. Essas novas revelações podem forçar a Ford a reconsiderar suas responsabilidades com relação à utilização de mão-de-obra escrava. Enquanto isso, novos fatos jurídicos também podem criar problemas para a empresa. No ano passado, o Estado da Califórnia aprovou uma lei que amplia o prazo de prescrição dos pedidos de compensação ligados ao Holocausto. Em novembro, o senador Charles Schumer, de Nova York, submeteu ao Congresso um projeto de lei que pretende fazer o mesmo em nível federal.


Ken Silverstein é escritor. Seu livro "Private Warriors", que trata de redes de tráfico de armamentos no pós-Guerra Fria, será publicado nos próximos meses pela Verso. Nas pesquisas para este artigo, contou com a ajuda do Fundo Investigativo do Instituto "The Nation".
Tradução de Clara Allain.


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