São Paulo, domingo, 27 de fevereiro de 2000


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O filósofo Richard Rorty prega a união das esquerdas nos EUA como meio de o país retomar o orgulho perdido
Pecados da democracia americana

Renato Janine Ribeiro
especial para a Folha

Em seu livro "Para Realizar a América", Richard Rorty propõe que a esquerda norte-americana, dividida desde o esgotamento do New Deal rooseveltiano, na década de 1960, volte a unir-se em torno de ações conjuntas. Sua crítica mais interessante dirige-se aos herdeiros da nova esquerda, que surgiu da revolta contra a Guerra do Vietnã, guerra essa que fora iniciada, precisamente, pelos membros do Partido Democrata mais ligados aos ideais de justiça social dentro dos EUA. Esse "racha" entre os liberais (no sentido norte-americano, a não confundir com neoliberais) e a nova esquerda foi fatal. O presidente Lyndon Johnson, enquanto submetia o Vietnã a um dilúvio de bombas, quebrava as bases da discriminação racial no sul dos Estados Unidos. Uma política doméstica progressista convivia com uma externa, agressiva.

"New Deal" político
A nova esquerda, criticando o imperialismo, não teve eco nos sindicatos. Não podendo agir politicamente, refugiou-se, diz Rorty com certo exagero, nas universidades e numa crítica filosófica hermética -os "estudos sociais". De política, a esquerda teria se reduzido a cultural. Richard Rorty quer retomar a aliança reformista que gerou o "New Deal", entre trabalhadores e intelectuais. Reconhece o mérito da nova esquerda, que denunciou "o sadismo", diz ele, presente em tantas relações étnicas e de gênero que antes passavam incólumes pela crítica economicista. Mas pede que ela aja mais e teorize menos. Esse, um eixo do livro: a teoria que separa a esquerda cultural da reformista seria hoje um mantra, um ritual de pouco uso prático. Daí que Rorty queira uma "moratória da teoria", permitindo reunir os progressistas numa prática reformista. Outro eixo da obra está numa reavaliação do orgulho nacional, hoje monopolizado pela direita. Ora, Walt Whitman e John Dewey, intelectuais progressistas, sentiam orgulho dos Estados Unidos, que eles identificavam à democracia. Por que perder essa ligação? Se o país cometeu erros e até crimes, a democracia é capaz de autocorreção. Descrer dessa capacidade é pensar o país pelo pecado, e não pelo potencial -pelo passado, e não pelo futuro.

Obsessão pelo pecado
A esquerda deve lembrar que a obsessão pelo pecado é um traço distintivo da direita. Essa nota de Rorty é a mais preciosa do livro. Desenvolvo-a. É de direita a obsessão pela impureza: daí o risco de ela deslizar para a xenofobia e mesmo a chacina social. Já a esquerda, leiga e contrária à exclusão, não pode pensar assim. Mas o problema (sempre segundo Rorty) é que a "esquerda cultural" tem lido os Estados Unidos nessa linha, caçando os vestígios de seus pecados originais. Em vez de apostar no poder construtor da democracia, investe contra legados indeléveis de ações passadas. Mas com isso se impede de agir, porque só pode haver ação quando se perde a mania da pureza. Esses são pontos positivos do livro. Contudo, ele tem problemas. Vou discuti-los segundo o plano da obra, que é uma discussão sobre os Estados Unidos. Estudiosos de Rorty, como Paulo Ghiraldelli Jr., autor de uma útil introdução ao livro, vinculam-no à sua reflexão neopragmatista. Mas penso que o autor concordaria que a prova do pudim está no comê-lo. Ficar na teoria seria repetir o que Rorty critica, isto é, entoar um mantra autojustificativo. O principal problema está já na capa. O subtítulo em português traduz o inglês "America" pelo português "América". Terá sido exigência de Rorty e de sua editora norte-americana manter América, e não Estados Unidos? Ora, o termo em inglês designa um país, que cobre menos de um quarto do continente aludido pela palavra em português. Isso porque, nos Estados Unidos, é corrente a metonímia pela qual a parte (seu país) se identifica ao todo (o continente).

A parte pelo todo
Não exagero dizendo que o problema do livro, ao menos para um leitor estrangeiro, está em não contestar essa metonímia, constitutiva do discurso norte-americano sobre si próprio. Tal confusão entre a parte e o todo, ou entre o particular e o geral, ilustra bem a dificuldade que teve a democracia norte-americana em lidar com o resto do mundo, e que resumo dizendo que ela foi um dos produtos que aquele país menos teve sucesso em exportar.
Duas revoluções quase coincidem em data, a americana e a francesa. A primeira funda uma república que dura, sem interrupção, há mais de dois séculos. A outra inicia uma série de revoluções (quatro), de repúblicas (cinco), de monarquias (quatro). Internamente, parece que a norte-americana teve maior êxito. Mas a revolução que se difundiu pelo mundo foi a francesa. Nela se inspiraram mais revolucionários, sobretudo os empenhados na justiça social.
Já a fecundidade mundial da Revolução Americana é pequena. Ironicamente, a única nação que, em sua declaração de independência (de 1945), citou a dos Estados Unidos foi bombardeada pela aviação desse país por mais de dez anos: o Vietnã. É forte esse simbolismo. Durante a Guerra Fria, os Estados Unidos se aliaram, no Terceiro Mundo, com os setores mais comprometidos com a injustiça social. A questão é: a democracia, como poder de laicização crescente das relações sociais, que ela emancipa das transcendências religiosas, será capaz de liquidar seus débitos pendentes, internos e externos? Terá ela um potencial imanente de vencer suas falhas? Há bons argumentos nessa direção, que penso ser a de Rorty. Primeiro, para os direitos do cidadão até hoje não houve regime melhor que ela. Segundo, é o regime do autogoverno: seus erros, sendo humanos, podem corrigir-se. Terceiro, onde ela vigora, a cidadania só cresceu. Quarto, até hoje democracias não entraram em guerra entre si.

Expansão democrática
Contudo, nos anos 60, a nova esquerda, que Rorty critica, discordou dessa avaliação positiva que faço. Ela notou que havia uma muralha social na democracia: essa assentava numa mentira, excluindo mulheres, negros, homossexuais, estrangeiros. Vencer a exclusão exigiria bombardear de fora o regime democrático, que por sua vez bombardeava, no exterior, milhões de asiáticos, e, no interior, a oposição. O Vietnã e o Watergate foram o ponto de virada dessa democracia fechada. Depois, houve uma expansão democrática, ampliando os direitos humanos nos Estados Unidos e alastrando a democracia pelo mundo. Prevaleceu a democracia, como potencial leigo de superação interna de suas próprias falhas. Mas essa leitura, que suponho ser a de Rorty, vale ainda? Se o balanço político e institucional dos anos 90 é positivo, o balanço social não o é. A interferência norte-americana, que favorece a agenda política, não procura reduzir, longe disso, a desigualdade social. O que traz de volta a questão da metonímia Estados Unidos/América, ou Estados Unidos/ mundo, que por sua vez decorre da metáfora Estados Unidos/democracia, esta segunda, explícita em Rorty, enquanto a primeira é implícita no título da tradução. Talvez, para concluir, devamos distinguir duas questões. O eixo de toda política progressista deve ser a aposta no potencial de expansão da democracia, justamente por ser ela um regime leigo. Tem dado certo a convicção de que só se expande a democracia por sua ampliação, não por sua destituição, o que, aliás, foi uma lição importante para a esquerda dos anos 60, que acreditava no contrário e por isso fez a equivocada opção por uma luta armada em que foi vencida.

Orgulho e agressão
Se houver uma forma de governo capaz de liquidar os débitos sociais e humanos, essa é a democracia. Mas isso não implica que deva ser a democracia norte-americana. É ótimo Rorty recuperar a identificação dos Estados Unidos com a democracia, mas é duvidoso restaurar a identidade da democracia com sua forma norte-americana. Porque talvez aí esteja o problema: suponho que tal identidade tenha concorrido para fechar os Estados Unidos em sua singularidade política e até imperial. O orgulho nacional deixou a democracia intramuros conviver com a agressão externa. Enfim, qualquer projeto de democracia exige o balanço dos modelos existentes e a invenção de novos, mais solidários, mais fecundos. A viagem só começa.



Para Realizar a América - O Pensamento de Esquerda no Século 20 na América
160 págs., R$ 16,00 de Richard Rorty. Trad. de Paulo Ghiraldelli Jr. DP&A (tel. 0/xx/21/ 507-2633).

OUTROS LANÇAMENTOS
Ensaios sobre Heidegger e Outros
264 págs., R$ 29,00 de Richard Rorty. Trad. de Marco Antônio Casanova. Relume-Dumará (tel. 0/xx/21/564-6869).
Neste segundo volume de seus escritos filosóficos, o pensador americano aborda, entre outros temas, o pragmatismo e a desconstrução de Jacques Derrida e Paul de Man, além de estimulante ensaio em que estabelece um contraponto entre o pensamento de Heidegger e a literatura de Charles Dickens.

Richard Rorty - A Filosofia do Novo Mundo em Busca de Mundos Novos
128 págs., R$ 10,00 de Paulo Ghiraldelli Jr. Vozes (tel. 0/xx/24/237-5112).
Introdução clara e concisa ao pensamento de Rorty realizada por um dos principais conhecedores de sua obra no Brasil.



Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na USP, autor de "A Etiqueta no Antigo Regime", "A Última Razão dos Reis -Ensaios de Filosofia e de Política" (Companhia das Letras) e "Ao Leitor sem Medo" (Ed. da UFMG).

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