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+ brasil 500 d.C.
É a multiplicidade dos usos ou dos aspectos do pensar que lhe dá essa
fisionomia essencialmente esfarrapada
Pensamento e natureza: farrapos
Bento Prado Jr.
Não é apenas de nossos próximos
(familiares, alunos, sócios, vizinhos...) que esperamos um bom comportamento. Sem regras, o mundo não
seria um mundo, mas um caos i-mundo.
Não é à toa que Jankelevitch pensa os
"modos do ser" levando em conta as
"maneiras" catalogadas por Baltazar
Gracián: ninguém pode apresentar-se à
corte vestido de farrapos. O bom comportamento do mundo parece algo como um postulado do pensamento, seja
filosófico, seja científico. Quando Einstein dizia "o incompreensível é que o
mundo seja compreensível", nada mais
fazia do que exprimir seu espanto diante
da eficácia desse postulado, exibindo sua
aparente gratuidade, isto é, exatamente
sua condição de postulado.
Que é um postulado? Literalmente, um
pedido. Os "Elementos" de Euclides pedem que o leitor lhes conceda a verdade
dos postulados, quase como numa argumentação dialética: "Se você me conceder que... então terá que aceitar que...". O
que espanta Einstein é justamente que
esse postulado demasiado humano
("comporte-se bem, entre espontaneamente na armadilha, concorde com os
esquemas que armamos previamente
para capturá-lo!") seja tão docilmente
atendido pelo mundo bruto, pré e inumano. O postulado é antigo: os gregos
podiam admitir que o mundo parecesse
caótico, mas essa aparência remetia à ordem mais funda de uma "physis" regular. Mesmo se o caos é admitido como fato real, ele sucede ou precede necessariamente a instauração do cosmo. Aí, decididamente, a desordem é um caso particular da ordem imperante na natureza e
no pensamento, tanto na "physis" como
no "nous" ou no "logos".
Bordas da natureza
É bem esse
postulado da boa ordem e do bom comportamento (de "limpeza", digamos) da
Natureza, presente na filosofia e na ciência clássicas (na forma, por exemplo, da
cosmologia de Laplace), que é diretamente colocado em questão por Whitehead. Lembremos de sua bela frase, que
vai na contramão da idéia clássica de Natureza: "As bordas da natureza são sempre esfarrapadas" ("The Concept of Nature", pág. 50). Nada de perfis bem cortados e de superfícies lisas.
Mas o que significa essa metáfora? Por
que não são nítidos, e sim esfumados e
esfarrapados, os limites da natureza? Ela
significa uma crítica das idéias de instante, lugar e acontecimento como foram
definidas pelo pensamento clássico. Para
Whitehead, "o pensamento clássico repousa sobre a idéia de um ponto "flash'"
(pensemos em Descartes, sua idéia do
tempo e do instante e o modo como ajudam a definir o modo de ser do pensamento e da extensão). Para Merleau-Ponty o essencial é que Whitehead "põe
em questão a idéia de localização única
espacial de cada existência", cortando-a
de toda e qualquer forma de comunicação com "as outras existências espaço-temporais", ou seja, a definição do espaço como forma da separação que previne
qualquer contágio.
"Desde a primeira impressão, continua
ele, esse conceito se mostra demasiado
limpo" (Merleau-Ponty, "La Nature",
pág. 154). Com isto, o acontecimento
deixa de ser um elemento no sentido de
uma parte indivisível, simples ou última,
e passa a ser compreendido como "elemento", no sentido de atmosfera ou horizonte: Whitehead fala do "éter" dos
acontecimentos.
Holismo e duração
O que interessa
a Merleau-Ponty, nesses textos de Whitehead, é que eles permitem tornar novamente possível uma "Naturphilosophie"
(esboçada por Schelling e Bergson) ou
Cosmologia que não entrem em conflito
com a ciência contemporânea. Ou, ao
contrário, que liberte essa ciência, no que
tem de novo, da filosofia dos cientistas
atuais -que é muito arcaica.
Não podemos nos demorar nesses
problemas (que além do mais ultrapassam minha competência), mas sublinhemos apenas que Merleau-Ponty endossa
a idéia de Whitehead, extraída da nova
física, da Natureza como passagem ou
avanço criador. O que se perde, na visão
clássica, é a mudança, que Whitehead
quer (como Bergson) reintroduzir na reflexão sobre a Natureza: "A Natureza
(diz Whitehead da visão clássica) num
momento dado é (...) tão real quanto se
houvesse ou não houvesse Natureza em
não importa que outro momento". Numa palavra, "holismo" e "duração" são
cúmplices nessa reforma da idéia da Natureza.
Convergência
Não me importa aqui
saber se Merleau-Ponty, Whitehead e
Bergson têm razão ou não. Deixemos a
questão para os cosmólogos. O que me
importa é a curiosa convergência entre
esse argumento e um outro, esboçado
por Wittgenstein a respeito de um assunto aparentemente muito diferente. Com
seu argumento passamos da pergunta
pela estrutura do mundo para a questão
da essência do pensamento. Passamos
da esfera da "physis" para a esfera do "logos", tão cuidadosamente separadas pelo pensamento moderno.
O que temos em mente é o parágrafo
111 das "fichas" de Wittgenstein: "Não
estamos de algum modo preparados para a tarefa de descrever o uso de, por
exemplo, a palavra "pensar". (E por que
haveríamos de estar? Em que nos é útil
tal descrição?) E a idéia ingênua que se
faz sobre ela não corresponde de todo à
realidade. Esperamos um contorno macio e regular e topamos com algo esfarrapado. Aqui poder-se-ia dizer que construímos uma imagem falsa".
Pontos de apoio
A questão em pauta é : "O que é pensar?" ou, mais precisamente, "que gramática regula nosso uso
do verbo "pensar'?". E o tratamento dado
à questão é, pelo menos de início, negativo. Trata-se de encontrar pontos de
apoio para demolir uma certa imagem
que temos do pensamento ou que recebemos da tradição da filosofia. Ou seja, a
imagem do pensamento que guardam
aqueles que não disseram, à "Wesen",
tchau!, que não deram adeus ao ideal de
fixar a essência de uma coisa por um de
seus aspectos.
É a multiplicidade dos usos ou dos aspectos do pensar que lhe dá essa fisionomia essencialmente esfarrapada. Há
atrito no uso da linguagem, que entra em
fricção com uma superfície rugosa, mas
que só funciona graças a essa resistência,
como só podemos andar graças e contra
a gravidade -que às vezes nos derruba
no chão, interrompendo nossa caminhada.
Anticlassicismo radical
Porosidade e franjas irregulares nos limites entre
eventos físicos diferentes, porosidade e
franjas irregulares na aplicação dos conceitos mentais: por sob metáforas idênticas, encontramos duas maneiras de atacar a maneira clássica de pensar "physis"
e "logos". Pouco importa se Wittgenstein leu ou não a frase de Whitehead
(provavelmente leu), o interessante é verificar se há ou não isomorfismo na circunscrição dos eventos físicos e das categorias mentais.
"105. Poder-se-ia também dizer que
um homem pensa quando aprende de
um determinado modo." Haverá tantos
usos da palavra "pensar" quantas formas
de aprender ou "circunstâncias" do
aprendizado. "Pensar é aperfeiçoar um
método."
Encerremos aqui estas notas descosidas ou "esfarrapadas", sublinhando apenas aquilo que poderíamos chamar de
um radical anticlassicismo comum, partilhado pelos filósofos referidos. Se
"physis" e "logos" não são mapeáveis
com fronteiras nítidas, subsumindo sub-regiões bem delimitadas, é preciso repensar a idéia clássica de "metabasis éis
allos genos" (confusão de gêneros) ou
sua versão contemporânea: a de "erro
categorial". Tema a que aqui retornaremos, comentando a curiosa idéia da fecundidade possível dos "erros" categoriais ou do fato histórico do caráter criador de alguns mal-entendidos...
Bento Prado Jr. é filósofo, professor na Universidade
Federal de São Carlos e professor emérito da USP. Publicou, entre outros, "Presença e Campo Transcendental" (Edusp) e "Filosofia da Psicanálise" (Brasiliense).
Escreve mensalmente na seção "Brasil 500 d.C.".
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