São Paulo, domingo, 27 de fevereiro de 2000


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+ brasil 500 d.C.
É a multiplicidade dos usos ou dos aspectos do pensar que lhe dá essa fisionomia essencialmente esfarrapada
Pensamento e natureza: farrapos

Bento Prado Jr.

Não é apenas de nossos próximos (familiares, alunos, sócios, vizinhos...) que esperamos um bom comportamento. Sem regras, o mundo não seria um mundo, mas um caos i-mundo. Não é à toa que Jankelevitch pensa os "modos do ser" levando em conta as "maneiras" catalogadas por Baltazar Gracián: ninguém pode apresentar-se à corte vestido de farrapos. O bom comportamento do mundo parece algo como um postulado do pensamento, seja filosófico, seja científico. Quando Einstein dizia "o incompreensível é que o mundo seja compreensível", nada mais fazia do que exprimir seu espanto diante da eficácia desse postulado, exibindo sua aparente gratuidade, isto é, exatamente sua condição de postulado. Que é um postulado? Literalmente, um pedido. Os "Elementos" de Euclides pedem que o leitor lhes conceda a verdade dos postulados, quase como numa argumentação dialética: "Se você me conceder que... então terá que aceitar que...". O que espanta Einstein é justamente que esse postulado demasiado humano ("comporte-se bem, entre espontaneamente na armadilha, concorde com os esquemas que armamos previamente para capturá-lo!") seja tão docilmente atendido pelo mundo bruto, pré e inumano. O postulado é antigo: os gregos podiam admitir que o mundo parecesse caótico, mas essa aparência remetia à ordem mais funda de uma "physis" regular. Mesmo se o caos é admitido como fato real, ele sucede ou precede necessariamente a instauração do cosmo. Aí, decididamente, a desordem é um caso particular da ordem imperante na natureza e no pensamento, tanto na "physis" como no "nous" ou no "logos".

Bordas da natureza
É bem esse postulado da boa ordem e do bom comportamento (de "limpeza", digamos) da Natureza, presente na filosofia e na ciência clássicas (na forma, por exemplo, da cosmologia de Laplace), que é diretamente colocado em questão por Whitehead. Lembremos de sua bela frase, que vai na contramão da idéia clássica de Natureza: "As bordas da natureza são sempre esfarrapadas" ("The Concept of Nature", pág. 50). Nada de perfis bem cortados e de superfícies lisas. Mas o que significa essa metáfora? Por que não são nítidos, e sim esfumados e esfarrapados, os limites da natureza? Ela significa uma crítica das idéias de instante, lugar e acontecimento como foram definidas pelo pensamento clássico. Para Whitehead, "o pensamento clássico repousa sobre a idéia de um ponto "flash'" (pensemos em Descartes, sua idéia do tempo e do instante e o modo como ajudam a definir o modo de ser do pensamento e da extensão). Para Merleau-Ponty o essencial é que Whitehead "põe em questão a idéia de localização única espacial de cada existência", cortando-a de toda e qualquer forma de comunicação com "as outras existências espaço-temporais", ou seja, a definição do espaço como forma da separação que previne qualquer contágio. "Desde a primeira impressão, continua ele, esse conceito se mostra demasiado limpo" (Merleau-Ponty, "La Nature", pág. 154). Com isto, o acontecimento deixa de ser um elemento no sentido de uma parte indivisível, simples ou última, e passa a ser compreendido como "elemento", no sentido de atmosfera ou horizonte: Whitehead fala do "éter" dos acontecimentos.

Holismo e duração
O que interessa a Merleau-Ponty, nesses textos de Whitehead, é que eles permitem tornar novamente possível uma "Naturphilosophie" (esboçada por Schelling e Bergson) ou Cosmologia que não entrem em conflito com a ciência contemporânea. Ou, ao contrário, que liberte essa ciência, no que tem de novo, da filosofia dos cientistas atuais -que é muito arcaica. Não podemos nos demorar nesses problemas (que além do mais ultrapassam minha competência), mas sublinhemos apenas que Merleau-Ponty endossa a idéia de Whitehead, extraída da nova física, da Natureza como passagem ou avanço criador. O que se perde, na visão clássica, é a mudança, que Whitehead quer (como Bergson) reintroduzir na reflexão sobre a Natureza: "A Natureza (diz Whitehead da visão clássica) num momento dado é (...) tão real quanto se houvesse ou não houvesse Natureza em não importa que outro momento". Numa palavra, "holismo" e "duração" são cúmplices nessa reforma da idéia da Natureza.

Convergência
Não me importa aqui saber se Merleau-Ponty, Whitehead e Bergson têm razão ou não. Deixemos a questão para os cosmólogos. O que me importa é a curiosa convergência entre esse argumento e um outro, esboçado por Wittgenstein a respeito de um assunto aparentemente muito diferente. Com seu argumento passamos da pergunta pela estrutura do mundo para a questão da essência do pensamento. Passamos da esfera da "physis" para a esfera do "logos", tão cuidadosamente separadas pelo pensamento moderno. O que temos em mente é o parágrafo 111 das "fichas" de Wittgenstein: "Não estamos de algum modo preparados para a tarefa de descrever o uso de, por exemplo, a palavra "pensar". (E por que haveríamos de estar? Em que nos é útil tal descrição?) E a idéia ingênua que se faz sobre ela não corresponde de todo à realidade. Esperamos um contorno macio e regular e topamos com algo esfarrapado. Aqui poder-se-ia dizer que construímos uma imagem falsa".

Pontos de apoio
A questão em pauta é : "O que é pensar?" ou, mais precisamente, "que gramática regula nosso uso do verbo "pensar'?". E o tratamento dado à questão é, pelo menos de início, negativo. Trata-se de encontrar pontos de apoio para demolir uma certa imagem que temos do pensamento ou que recebemos da tradição da filosofia. Ou seja, a imagem do pensamento que guardam aqueles que não disseram, à "Wesen", tchau!, que não deram adeus ao ideal de fixar a essência de uma coisa por um de seus aspectos. É a multiplicidade dos usos ou dos aspectos do pensar que lhe dá essa fisionomia essencialmente esfarrapada. Há atrito no uso da linguagem, que entra em fricção com uma superfície rugosa, mas que só funciona graças a essa resistência, como só podemos andar graças e contra a gravidade -que às vezes nos derruba no chão, interrompendo nossa caminhada.

Anticlassicismo radical
Porosidade e franjas irregulares nos limites entre eventos físicos diferentes, porosidade e franjas irregulares na aplicação dos conceitos mentais: por sob metáforas idênticas, encontramos duas maneiras de atacar a maneira clássica de pensar "physis" e "logos". Pouco importa se Wittgenstein leu ou não a frase de Whitehead (provavelmente leu), o interessante é verificar se há ou não isomorfismo na circunscrição dos eventos físicos e das categorias mentais.
"105. Poder-se-ia também dizer que um homem pensa quando aprende de um determinado modo." Haverá tantos usos da palavra "pensar" quantas formas de aprender ou "circunstâncias" do aprendizado. "Pensar é aperfeiçoar um método."
Encerremos aqui estas notas descosidas ou "esfarrapadas", sublinhando apenas aquilo que poderíamos chamar de um radical anticlassicismo comum, partilhado pelos filósofos referidos. Se "physis" e "logos" não são mapeáveis com fronteiras nítidas, subsumindo sub-regiões bem delimitadas, é preciso repensar a idéia clássica de "metabasis éis allos genos" (confusão de gêneros) ou sua versão contemporânea: a de "erro categorial". Tema a que aqui retornaremos, comentando a curiosa idéia da fecundidade possível dos "erros" categoriais ou do fato histórico do caráter criador de alguns mal-entendidos...


Bento Prado Jr. é filósofo, professor na Universidade Federal de São Carlos e professor emérito da USP. Publicou, entre outros, "Presença e Campo Transcendental" (Edusp) e "Filosofia da Psicanálise" (Brasiliense). Escreve mensalmente na seção "Brasil 500 d.C.".

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