São Paulo, domingo, 27 de março de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+ autores

Combate ao terror pelos EUA desloca a opressão interna do Estado para fora de suas fronteiras e, perversamente, legitima a posse de armas nucleares pelas ditaduras como forma de manter o equilíbrio geopolítico mundial

A vítima é o criminoso

SLAVOJ ZIZEK
COLUNISTA DA FOLHA

As armas nucleares nas mãos dos atuais governantes do Irã são realmente uma ameaça à paz e segurança internacionais? Para responder a essa pergunta adequadamente é preciso situá-la em seu contexto político e ideológico.
Toda estrutura de poder precisa de uma ameaça implícita subjacente: sejam quais forem as regras democráticas oficiais e as restrições legais, em última instância, podemos fazer o que quisermos com você... No século 20, porém, a natureza dessa ligação entre o poder e a ameaça invisível que o sustenta mudou: não é mais a estrutura de poder existente em si que, para garantir o controle de seus súditos, precisa contar com a dimensão fantástica da ameaça potencial/invisível.
O local da ameaça é geralmente exteriorizado, deslocado para fora, para o inimigo: é a ameaça invisível (e, por esse mesmo motivo, todo-poderosa e onipresente) do inimigo que legitima o estado de emergência permanente do poder existente. Os fascistas invocaram a ameaça da conspiração dos judeus, os stalinistas, a ameaça do inimigo de classe -até a atual "guerra ao terror", é claro. Essa ameaça invisível do inimigo legitima a lógica do ataque preventivo: exatamente porque a ameaça é virtual, não podemos esperar sua concretização; é preciso atacar antecipadamente, antes que seja tarde demais.
Em outras palavras, a onipresente ameaça invisível do terror legitima as muito visíveis medidas de defesa -que representam a verdadeira ameaça à democracia e aos direitos humanos, é claro.
O poder clássico funcionava como a ameaça, que era operacional justamente porque nunca se concretizava, ao permanecer um gesto ameaçador. Esse funcionamento atingiu o clímax na Guerra Fria, com a ameaça da destruição nuclear mútua, que tinha de permanecer apenas uma ameaça. Com a guerra ao terrorismo, a ameaça invisível causa a concretização incessante -não de si mesma, mas das medidas contra si mesma. O ataque nuclear tinha de permanecer uma ameaça de ataque, enquanto a ameaça do ataque terrorista provoca uma série interminável de ataques preventivos contra potenciais terroristas.

Ressentimento nietzschiano
Estamos, portanto, passando da lógica da Destruição Mutuamente Garantida ("MAD - Mutually Assured Destruction") à guerra ao terror, em que um único louco dirige todo o espetáculo e obtém o direito de pôr em ação sua paranóia.
O poder que se apresenta como constantemente ameaçado, vivendo em perigo mortal e, portanto, meramente se defendendo, é o tipo de poder mais perigoso -o próprio modelo do ressentimento nietzschiano e da hipocrisia moralista. E, com efeito, não foi o próprio Nietzsche quem, mais de um século atrás, em seu "Aurora" [1881, Cia. das Letras], ofereceu a melhor análise das falsas premissas morais da "guerra ao terror" de hoje?


A maioria dos regimes tem um lado espectral opressivo e escuro; a ameaça terrorista só tem isso


"Nenhum governo admite que mantém um exército para satisfazer ocasionalmente seu desejo de conquista. O exército é considerado sobretudo um serviço de defesa, e invoca-se a moralidade que aprova a autodefesa. Mas isso implica a própria moralidade e a imoralidade do vizinho; pois o vizinho deve ser considerado ávido para atacar e conquistar, se nosso Estado precisa pensar em meios de autodefesa.
Além disso, os motivos que damos para a necessidade de um exército implicam que nosso vizinho, que nega o desejo de conquista assim como nosso próprio Estado e que também mantém um exército somente para autodefesa, é um criminoso hipócrita e enganador, que gostaria muito de dominar uma vítima indefesa sem nenhuma luta. Portanto, todos os Estados estão, agora, posicionados uns contra os outros: eles pressupõem a má intenção de seu vizinho e sua própria boa intenção.
Essa pressuposição, no entanto, é desumana, tão ruim quanto a guerra e até pior. No fundo, ela é em si o verdadeiro desafio e a causa das guerras, porque, como eu disse, atribui imoralidade ao vizinho e assim provoca uma disposição a ações hostis. Devemos abjurar a doutrina do exército como meio de autodefesa, tão completamente quanto o desejo de conquistas."
Assim, a atual "guerra ao terror" não prova que o terror é o "exterior constitutivo" da democracia, seu outro antagônico, o ponto em que o agonismo democrático das opções plurais se transforma no antagonismo que repousa na lógica da equivalência ("diante da ameaça terrorista, estamos todos unidos, esquecemos nossas pequenas diferenças...")?
De modo ainda mais marcante, a diferença entre a "guerra ao terror" e as lutas mundiais do século 20, como a Guerra Fria, é que, enquanto nos casos anteriores o inimigo era claramente identificado com o império comunista realmente existente, a ameaça terrorista é inerentemente espectral, sem um centro visível. É um pouco como a caracterização da personagem de Linda Fiorentino no filme "A Última Sedução": "A maioria das pessoas tem um lado escuro... Ela só tinha esse lado".

Inversão inesperada

A maioria dos regimes tem um lado espectral opressivo e escuro... A ameaça terrorista só tem isso. O resultado paradoxal dessa espectralização do inimigo é uma inversão reflexiva inesperada: neste mundo sem um inimigo claramente identificado, são os próprios EUA os protetores contra a ameaça, que estão surgindo como o principal inimigo... Como em "Assassinato no Expresso Oriente" de Agatha Christie, no qual, como todo o grupo de suspeitos é o assassino, a vítima (um milionário maligno) deveria ser o criminoso.
Esse pano de fundo nos permite propor uma resposta à nossa pergunta inicial: Sim, armas nucleares para o Irã... E Manuel Noriega [líder militar panamenho] e Saddam Hussein para o Tribunal Penal Internacional da ONU, em Haia (Holanda). Por que o ex-ditador iugoslavo Slobodan Milosevic, e não Noriega? Por que não houve nem sequer um julgamento público de Noriega? Foi porque ele teria revelado seu próprio passado na CIA, inclusive como os EUA ignoraram sua participação no assassinato de Omar Torrijos Herrera [líder panamenho que negociou a construção do Canal do Panamá]?
De modo semelhante, o regime de Saddam era um Estado autoritário abominável, culpado de muitos crimes, na maioria contra sua própria população. Mas deve-se notar que, quando os deputados norte-americanos nomearam os feitos malignos de Saddam, sistematicamente omitiram o que foi, sem dúvida, seu maior crime (em termos de sofrimento humano e violação da justiça internacional): a agressão contra o Irã. Por quê? Porque os EUA e a maioria dos Estados estrangeiros estavam ajudando o Iraque nessa agressão.
Quanto ao Irã e às armas nucleares, o fato surpreendente é que a lógica MAD continua operando hoje: por que a tensão entre Índia e Paquistão não explodiu em uma guerra total? Porque ambos os lados são potências nucleares. Por que os Estados árabes não se arriscam a atacar novamente Israel? Porque Israel é uma potência nuclear. Então por que essa lógica MAD não funcionaria no caso do Irã?
O contra-argumento padrão é este: porque, no Irã, os fundamentalistas muçulmanos estão no poder e podem ser tentados a bombardear Israel (o Irã é o único grande Estado árabe que não reconhece Israel diplomaticamente e nega decididamente seu direito a existir como Estado). Mas o regime iraniano é realmente tão "irracional"? O Paquistão, com suas armas nucleares e ligações com a Al Qaeda, não é uma ameaça muito maior? Além disso, duas décadas atrás o Irã foi brutalmente atacado pelo Iraque (com o apoio ativo dos EUA), por isso eles teriam o direito de se sentir ameaçados.

Leitura otimista
O último trunfo dos liberais ocidentais é: a posse de armas nucleares não impedirá uma revolução democrática no Irã? Esse argumento ganhou um novo reforço nas últimas semanas, com as eleições no Iraque e na Palestina: Paul Wolfowitz, vice-secretário da Defesa dos EUA, não estaria certo, afinal? Não há uma possibilidade de que a democracia (ocidental) possa funcionar e se enraizar no Oriente Médio? A causa maior da insolubilidade do conflito no Oriente Médio não é o fato de que os regimes árabes antidemocráticos precisam de Israel como a figura do inimigo que legitima seu governo?
Conseqüentemente, o presidente George W. Bush não estaria apenas concluindo o trabalho de Reagan? Da mesma maneira que Reagan foi "ingenuamente" convencido de que a democracia iria minar o comunismo, e o comunismo iria desmoronar -e se provou que todos os especialistas céticos estavam errados-, pode-se provar que Bush está certo em sua cruzada "ingênua" pela democratização dos países muçulmanos?
É aqui que nos aproximamos do xis da questão: essa leitura otimista depende da crença problemática na harmonia preestabelecida entre a disseminação global da democracia ocidental pluripartidária e os interesses econômicos e geopolíticos dos Estados Unidos. É precisamente porque essa harmonia não é de modo nenhum confiável que países como o Irã devem possuir armas nucleares -para conter a hegemonia global dos Estados Unidos.

Slavoj Zizek é filósofo esloveno, professor no Instituto de Sociologia da Universidade de Liubliana e autor de "Bem-Vindo ao Deserto do Real" (Boitempo). Ele escreve regularmente no Mais!.
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.


Texto Anterior: Biblioteca básica - Jhon Neschling: O Ano da Morte de Ricardo Reis
Próximo Texto: + religião: Deus, noves fora, zero
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.