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Navalha na carne
Com estréia prevista no Brasil para o dia 15, "Vera Drake"
quer levar o público a um "dilema moral" ao tratar do
tema do aborto, explica o diretor inglês Mike Leigh
EDWARD LAURENSON
Nos momentos iniciais de
"Vera Drake" -o novo
filme de Mike Leigh, que
ganhou o Leão de Ouro no
Festival de Veneza em 2004-, o
personagem-título, uma dona-de-casa arrumadinha da classe média,
interpretada por Imelda Staunton,
prepara o chá para o marido, Stan, e
os filhos já crescidos, Sid e Ethel. Estamos em 1950, e a rotina que Vera
segue em seu apertado apartamento
parece uma relíquia de uma era desaparecida.
Depois de abrir a sacola de compras que pende de seu braço e de ter
trocado seu pesado casaco de lã por
um avental florido, Vera coloca a
água para ferver, assobiando baixinho como se perdida em um mundo
que ela mesma criou; Ethel também
pendura o casaco e entra na cozinha
para ajudar. "Oi, mãe", diz Stan alegremente à mulher, quando chega,
expressando alívio por escapar do
tempo cinzento que reina lá fora.
"Vou colocar os chinelos."
Rituais domésticos como esses
sempre foram momentos de tensão
insuportável nos filmes de Mike
Leigh, de "Abigail's Party" [A Festa
de Abigail, 1977] aos fogos de artifício emocionais que iluminam o
churrasco que serve como clímax de
"Segredos e Mentiras" (1995). Mas o
que é notável sobre essa cena da vida
comum, silenciosa e unida dos Drake é que os ritmos da vida em família
são capturados com tanta precisão
que quase nos sentimos intrusos.
É uma imagem de contentamento
doméstico criada por um diretor cujos filmes repetidamente exploraram as dolorosas realidades da vida
familiar. Mas Vera, a mulher de "coração de ouro", tem lá seu repertório
de segredos e mentiras.
Sem que a família o saiba, ela executa abortos ilegais para "garotas em
dificuldades", pondo fim a gestações
indesejadas com o mesmo espírito
de boa vizinhança que a leva a convidar para um chá o tímido Reg, que
vive em um apartamento vizinho,
quando ela descobre que ele está vivendo a pão e água. Dezessete anos
antes que o aborto fosse legalizado
no Reino Unido, Vera executa a tarefa porque "ninguém mais o faz".
À sua maneira discreta, Mike
Leigh é um cineasta tão político
quanto Ken Loach, e "Vera Drake" é
um retrato preciso das injustiças do
sistema de classes. Filho de um médico e de uma parteira, a quem o filme é dedicado, Leigh pinta um retrato sombrio do sistema de saúde
britânico nos anos do pós-guerra. O
único recurso de Vera para ajudar
sua mãe doente parece ser um suprimento de chá e sardinhas.
Os abortos que ela realiza para
mulheres da classe operária contrastam com a experiência de Susan
Wells, uma moça de classe média alta que engravida depois que seu namorado a estupra, mas conhece as
pessoas certas e dispõe dos cem guinéus necessários para conseguir um
leito em um clínica profissional.
Ao contrário dos filmes anteriores
de Leigh, aqui o desgaste da vida familiar é causado de fora -pela polícia, pela desaprovação dos vizinhos,
pelo Judiciário, no assustador trecho
final do filme, em que Vera é levada
a julgamento. Um exame impiedoso
de como a sociedade dos anos 50
atribuía intenções criminosas a uma
mulher bem-intencionada, "Vera
Drake" mistura história social e tragédia feminista de forma que lembra
"Longe do Paraíso", de Todd Haynes. Leia abaixo a entrevista concedida por Mike Leigh.
Pergunta - "Vera Drake" será considerado um "filme de tese", um filme
sobre a questão do aborto. Mas está
longe de ser maniqueísta.
Mike Leigh - Nesse caso específico,
o trabalho era levar o público a confrontar um dilema moral. As pessoas precisam tomar suas próprias
decisões quanto ao que pensar a respeito. Mas, isso posto, é parte implícita do filme que os abortos clandestinos não são algo positivo.
Pergunta - Espanta saber que a protagonista foi criada em um lar sem
pai; sua mãe poderia ter optado por
abortá-la, se tivesse recursos.
Leigh - É, essa é uma questão a
ponderar. Coloquei essa informação
de maneira a levar o espectador a
trabalhar com ela, em lugar de expressar minha opinião sobre o assunto. Se você está no metrô e presta
atenção a uma conversa, pode obter
muita informação sobre as pessoas e
situações mencionadas, mesmo que
não conheça antecedentes.
Não creio que a narrativa cinematográfica deva ser tão aleatória, mas
por outro lado sempre trabalho sob
a suposição de que o espectador é
pelo menos tão inteligente quanto
eu, se não mais, de modo que não
preciso explicar minuciosamente. É
importante, além disso, que o expectador saia com alguma coisa para refletir em casa.
Pergunta - A ambientação do filme
nos anos 50 parece muito forte e realista. Qual é sua atitude com relação
ao período?
Leigh - Eu tinha sete anos em 1950,
de modo que minhas lembranças estão presentes no espírito do que se
vê no filme. Evidentemente, era preciso que a ação transcorresse antes
da Lei do Aborto, de 1967, mas há
também um senso de unidade, uma
integridade, um tipo positivo de inocência que são característicos do período, embora isso não equivalha a
dizer que a década de 50 era isenta
de cinismo. Não sinto nostalgia da
vida austera que levávamos.
Mas o foco da família Drake é basicamente "vamos tocar a vida", porque eles não têm muita escolha e
precisam aproveitar ao máximo o
que lhes foi dado.
Pergunta - Como o sr. abordou a recriação do período?
Leigh - O que fiz, como sempre, foi
criar um realismo aguçado, para
destilar a essência da era. Na realidade, por exemplo, se os Drake tivessem o rádio ligado o tempo todo, isso nos teria reduzido a um ritmo naturalista e tornado as cenas literais
-para não mencionar o fato de que
mal teríamos como arcar com os direitos autorais de qualquer coisa; até
mesmo os filmes a que Vera e Stan
assistem são inventados.
A mesma destilação existe no colorido do filme. Há muitos verdes e
cinzentos que não são naturalistas,
mas sugerem o espírito funcional e
utilitário da era.
Pergunta - Foi difícil encontrar partes de Londres que pudessem passar
convincentemente como pertencentes aos anos 50?
Leigh - Isso foi um pequeno problema. Mas mais difícil ainda foi fazer um filme de época sem dinheiro
-nosso orçamento era ridiculamente apertado e filmamos tudo em
super 16. De qualquer jeito, a questão era mais como evitar filmar o
mundo real de 2003, o que explica
que haja tão poucas cenas de rua.
Pergunta - O senhor já se surpreendeu com as reações do público?
Leigh - No começo do filme, as pessoas riam estrondosamente em momentos que eu não considerava especialmente engraçados. Mas no geral é preciso que um filme esteja
aberto a diferentes interpretações,
excetuadas a das pessoas que o entendem de forma completamente
equivocada e pensam que se relaciona a egiptologia ou algo assim.
Pergunta - O sr. sente pressão para
que realize filmes que possam ter
bom desempenho nas bilheterias?
Leigh - Sempre acreditei que era
bom poder fazer um filme que funcionasse em termos comerciais. Não
quero me dedicar a dirigir filmes
destinados à obscuridade nas salas
de arte; de fato, me irrito quando as
pessoas dizem que faço filmes de arte. Meu filme de maior sucesso comercialmente foi "Segredos e Mentiras", e não há dúvida de que isso se
devia em parte ao tema -a adoção,
uma linha de narrativa que sempre
atrai o público. "Agora ou Nunca"
não tinha um ganho como esse; tratava de amor e redenção, um tema
não tão palpável quanto adoção ou
-espero- aborto.
"Topsy-Turvy - O Espetáculo" tinha potencial tanto de sucesso comercial quanto de rejeição por ser
considerado exótico. Encontrou seu
nível de aceitação e fico feliz com isso. Estou motivado a fazer coisas
que se comuniquem com o público.
Mas não há compromisso.
Pergunta - É difícil ver um filme sobre uma pessoa singularmente boa,
como Vera, e que ainda assim se mantém envolvente.
Leigh - Para mim, esse era o maior
desafio. Sou bom em personagens
com traços excêntricos, complicados, ainda que tenha lidado também
com personagens bons como Maurice, em "Segredos e Mentiras", um
precursor de Vera. Ainda que Vera
Drake seja uma criação orgânica, a
personagem é impelida pela moralidade do filme: uma boa pessoa a
quem a sociedade decide encarar como criminosa.
Esta entrevista foi publicada originalmente
na "Sight & Sound".
Tradução de Paulo Migliacci.
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