São Paulo, domingo, 27 de março de 2005

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Navalha na carne

Com estréia prevista no Brasil para o dia 15, "Vera Drake" quer levar o público a um "dilema moral" ao tratar do tema do aborto, explica o diretor inglês Mike Leigh

EDWARD LAURENSON

Nos momentos iniciais de "Vera Drake" -o novo filme de Mike Leigh, que ganhou o Leão de Ouro no Festival de Veneza em 2004-, o personagem-título, uma dona-de-casa arrumadinha da classe média, interpretada por Imelda Staunton, prepara o chá para o marido, Stan, e os filhos já crescidos, Sid e Ethel. Estamos em 1950, e a rotina que Vera segue em seu apertado apartamento parece uma relíquia de uma era desaparecida.
Depois de abrir a sacola de compras que pende de seu braço e de ter trocado seu pesado casaco de lã por um avental florido, Vera coloca a água para ferver, assobiando baixinho como se perdida em um mundo que ela mesma criou; Ethel também pendura o casaco e entra na cozinha para ajudar. "Oi, mãe", diz Stan alegremente à mulher, quando chega, expressando alívio por escapar do tempo cinzento que reina lá fora. "Vou colocar os chinelos."
Rituais domésticos como esses sempre foram momentos de tensão insuportável nos filmes de Mike Leigh, de "Abigail's Party" [A Festa de Abigail, 1977] aos fogos de artifício emocionais que iluminam o churrasco que serve como clímax de "Segredos e Mentiras" (1995). Mas o que é notável sobre essa cena da vida comum, silenciosa e unida dos Drake é que os ritmos da vida em família são capturados com tanta precisão que quase nos sentimos intrusos.
É uma imagem de contentamento doméstico criada por um diretor cujos filmes repetidamente exploraram as dolorosas realidades da vida familiar. Mas Vera, a mulher de "coração de ouro", tem lá seu repertório de segredos e mentiras.
Sem que a família o saiba, ela executa abortos ilegais para "garotas em dificuldades", pondo fim a gestações indesejadas com o mesmo espírito de boa vizinhança que a leva a convidar para um chá o tímido Reg, que vive em um apartamento vizinho, quando ela descobre que ele está vivendo a pão e água. Dezessete anos antes que o aborto fosse legalizado no Reino Unido, Vera executa a tarefa porque "ninguém mais o faz".
À sua maneira discreta, Mike Leigh é um cineasta tão político quanto Ken Loach, e "Vera Drake" é um retrato preciso das injustiças do sistema de classes. Filho de um médico e de uma parteira, a quem o filme é dedicado, Leigh pinta um retrato sombrio do sistema de saúde britânico nos anos do pós-guerra. O único recurso de Vera para ajudar sua mãe doente parece ser um suprimento de chá e sardinhas.
Os abortos que ela realiza para mulheres da classe operária contrastam com a experiência de Susan Wells, uma moça de classe média alta que engravida depois que seu namorado a estupra, mas conhece as pessoas certas e dispõe dos cem guinéus necessários para conseguir um leito em um clínica profissional.
Ao contrário dos filmes anteriores de Leigh, aqui o desgaste da vida familiar é causado de fora -pela polícia, pela desaprovação dos vizinhos, pelo Judiciário, no assustador trecho final do filme, em que Vera é levada a julgamento. Um exame impiedoso de como a sociedade dos anos 50 atribuía intenções criminosas a uma mulher bem-intencionada, "Vera Drake" mistura história social e tragédia feminista de forma que lembra "Longe do Paraíso", de Todd Haynes. Leia abaixo a entrevista concedida por Mike Leigh.
 

Pergunta - "Vera Drake" será considerado um "filme de tese", um filme sobre a questão do aborto. Mas está longe de ser maniqueísta.
Mike Leigh -
Nesse caso específico, o trabalho era levar o público a confrontar um dilema moral. As pessoas precisam tomar suas próprias decisões quanto ao que pensar a respeito. Mas, isso posto, é parte implícita do filme que os abortos clandestinos não são algo positivo.

Pergunta - Espanta saber que a protagonista foi criada em um lar sem pai; sua mãe poderia ter optado por abortá-la, se tivesse recursos.
Leigh -
É, essa é uma questão a ponderar. Coloquei essa informação de maneira a levar o espectador a trabalhar com ela, em lugar de expressar minha opinião sobre o assunto. Se você está no metrô e presta atenção a uma conversa, pode obter muita informação sobre as pessoas e situações mencionadas, mesmo que não conheça antecedentes.
Não creio que a narrativa cinematográfica deva ser tão aleatória, mas por outro lado sempre trabalho sob a suposição de que o espectador é pelo menos tão inteligente quanto eu, se não mais, de modo que não preciso explicar minuciosamente. É importante, além disso, que o expectador saia com alguma coisa para refletir em casa.

Pergunta - A ambientação do filme nos anos 50 parece muito forte e realista. Qual é sua atitude com relação ao período?
Leigh -
Eu tinha sete anos em 1950, de modo que minhas lembranças estão presentes no espírito do que se vê no filme. Evidentemente, era preciso que a ação transcorresse antes da Lei do Aborto, de 1967, mas há também um senso de unidade, uma integridade, um tipo positivo de inocência que são característicos do período, embora isso não equivalha a dizer que a década de 50 era isenta de cinismo. Não sinto nostalgia da vida austera que levávamos.
Mas o foco da família Drake é basicamente "vamos tocar a vida", porque eles não têm muita escolha e precisam aproveitar ao máximo o que lhes foi dado.

Pergunta - Como o sr. abordou a recriação do período?
Leigh -
O que fiz, como sempre, foi criar um realismo aguçado, para destilar a essência da era. Na realidade, por exemplo, se os Drake tivessem o rádio ligado o tempo todo, isso nos teria reduzido a um ritmo naturalista e tornado as cenas literais -para não mencionar o fato de que mal teríamos como arcar com os direitos autorais de qualquer coisa; até mesmo os filmes a que Vera e Stan assistem são inventados.
A mesma destilação existe no colorido do filme. Há muitos verdes e cinzentos que não são naturalistas, mas sugerem o espírito funcional e utilitário da era.

Pergunta - Foi difícil encontrar partes de Londres que pudessem passar convincentemente como pertencentes aos anos 50?
Leigh -
Isso foi um pequeno problema. Mas mais difícil ainda foi fazer um filme de época sem dinheiro -nosso orçamento era ridiculamente apertado e filmamos tudo em super 16. De qualquer jeito, a questão era mais como evitar filmar o mundo real de 2003, o que explica que haja tão poucas cenas de rua.

Pergunta - O senhor já se surpreendeu com as reações do público?
Leigh -
No começo do filme, as pessoas riam estrondosamente em momentos que eu não considerava especialmente engraçados. Mas no geral é preciso que um filme esteja aberto a diferentes interpretações, excetuadas a das pessoas que o entendem de forma completamente equivocada e pensam que se relaciona a egiptologia ou algo assim.

Pergunta - O sr. sente pressão para que realize filmes que possam ter bom desempenho nas bilheterias?
Leigh -
Sempre acreditei que era bom poder fazer um filme que funcionasse em termos comerciais. Não quero me dedicar a dirigir filmes destinados à obscuridade nas salas de arte; de fato, me irrito quando as pessoas dizem que faço filmes de arte. Meu filme de maior sucesso comercialmente foi "Segredos e Mentiras", e não há dúvida de que isso se devia em parte ao tema -a adoção, uma linha de narrativa que sempre atrai o público. "Agora ou Nunca" não tinha um ganho como esse; tratava de amor e redenção, um tema não tão palpável quanto adoção ou -espero- aborto.
"Topsy-Turvy - O Espetáculo" tinha potencial tanto de sucesso comercial quanto de rejeição por ser considerado exótico. Encontrou seu nível de aceitação e fico feliz com isso. Estou motivado a fazer coisas que se comuniquem com o público. Mas não há compromisso.

Pergunta - É difícil ver um filme sobre uma pessoa singularmente boa, como Vera, e que ainda assim se mantém envolvente.
Leigh -
Para mim, esse era o maior desafio. Sou bom em personagens com traços excêntricos, complicados, ainda que tenha lidado também com personagens bons como Maurice, em "Segredos e Mentiras", um precursor de Vera. Ainda que Vera Drake seja uma criação orgânica, a personagem é impelida pela moralidade do filme: uma boa pessoa a quem a sociedade decide encarar como criminosa.


Esta entrevista foi publicada originalmente na "Sight & Sound".
Tradução de Paulo Migliacci.


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