São Paulo, domingo, 27 de abril de 2008

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Corpo de monstro

Obra-prima do alemão W.G. Sebald, "Austerlitz" embaralha a biografia misteriosa de um indivíduo com a tragédia da história

MAURÍCIO SANTANA DIAS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Austerlitz" é, sob vários aspectos e por muitas razões, um feito extraordinário, provavelmente o mais importante texto literário das últimas décadas. Trata-se da obra final de W.G. Sebald (1944-2001), que em apenas dez anos escreveu quatro ou cinco livros que ficarão como monumentos da cultura do nosso tempo, entre eles "Os Anéis de Saturno", "Os Emigrantes" e "Vertigens". Difícil resenhar "Austerlitz". Primeiramente, é preciso dizer que a tradução se mantém à altura da tarefa, do início ao fim.
Quanto ao enredo do livro, ele poderia ser mal condensado na seguinte frase: em uma série de encontros casuais com um narrador que não é outro senão o alter ego de Sebald, presente em todos os seus livros, o estudioso de história da arquitetura Jacques Austerlitz narra a história de sua vida, desde a infância, passada na casa de um pastor no País de Gales sob nome falso, aos anos de internato, à descoberta do verdadeiro nome, às peregrinações de estudos pela Europa e, finalmente, ao desvendamento de sua origem.
No primeiro encontro de Austerlitz com seu interlocutor anônimo, em 1967, na Central Station de Antuérpia, as conversas giram em torno das estruturas de antigas edificações, como o próprio prédio da estação, mandado erigir pelo rei Leopoldo para expressar a pujança da Bélgica imperialista, o gigantesco Palácio de Justiça de Bruxelas e diversos exemplos de fortificações, "marcadas em geral, disse Austerlitz, por uma tendência à elaboração paranóica".

Coincidências
Incitado pelas explanações de Austerlitz, o narrador vai visitar ali perto o forte Breendonk, "rebento da feiúra e da violência cega", onde, anos mais tarde, descobre que o filósofo Jean Améry esteve preso e foi torturado antes de ser deportado para Auschwitz.
Os amigos continuam se visitando nos anos seguintes, em Londres, mas depois o narrador perde a pista de seu personagem por longo tempo, reencontrando-o apenas em dezembro de 1996, "por uma curiosa série de coincidências".
É então que Austerlitz, rompida a resistência que sempre o impediu de falar de si ou de sequer se interessar pela história do século 20 -"por mais inconcebível que isso me pareça hoje, eu não sabia nada da conquista da Europa pelos alemães [...]. Para mim, o mundo terminara com o fim do século 19"-, começa a investigar e a expor ao amigo, em círculos concêntricos, todos os fossos que o separaram de sua origem.
À medida que a história pessoal de Austerlitz vai emergindo do esquecimento, acompanhada das imagens fotográficas que caracterizam a escrita de Sebald, o leitor vai sendo transportado ao centro do extermínio nazista e chega à Praga de Kafka, onde o estudioso de arquitetura nascera em 1934 e de onde conseguiu escapar em 1939.
Mas não os seus pais, de quem ele passa a perseguir os vestígios.
Os traumas resultantes tanto do recalque da memória quanto da descoberta da violência sofrida são muitos e, entre seus efeitos, que incluem várias passagens por hospitais psiquiátricos, o brilhante Austerlitz jamais conseguirá escrever a sua obra, o que faz lembrar "O Sobrinho de Wittgenstein", de Thomas Bernhard.

Associações de idéias
A narrativa não é linear, procede por associação de idéias, alusões, indícios, num permanente deslizamento do sentido.
Mas o que nela há de fortuito se articula afinal como necessidade férrea, obedecendo a uma lógica interna cuja estrutura em rede é correlata à "mania de ordem e a tendência à monumentalidade que se manifestavam em cortes de Justiça e instituições penais, em estações de trem e prédios da Bolsa, em teatros líricos e hospícios".
A investigação das origens de Austerlitz, cujo nome remete à famosa batalha vencida por Napoleão, mas também evoca sonoramente o campo de Auschwitz, termina por produzir uma enciclopédia potencialmente infinita, numa proliferação descontrolada de células que formam por fim um corpo monstruoso. Não por acaso, lá pelas tantas, Austerlitz descreve a visita que fez à seção teratológica de um museu de medicina veterinária.
Mas não há desespero na escrita de Sebald. Antes, predomina aquela "beleza glacial extrema" que Enrique Vila-Matas lhe atribuiu em "O Mal de Montano".
Como se todos os ciclos de nascimento e morte, esquecimento e lembrança, construção e destruição fossem vistos já de muito longe. Ou muito de perto, na lâmina exposta ao microscópio.


MAURÍCIO SANTANA DIAS é professor de literatura italiana na USP.

AUSTERLITZ
Autor:
W.G. Sebald
Tradução: José Marcos Macedo
Editora: Companhia das Letras (tel. 0/ xx/11/ 3707-3500)
Quanto: R$ 44 (296 págs.)


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