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Corpo de monstro
Obra-prima do alemão W.G. Sebald, "Austerlitz" embaralha a biografia misteriosa
de um indivíduo com a tragédia da história
MAURÍCIO SANTANA DIAS
ESPECIAL PARA A FOLHA
Austerlitz" é, sob
vários aspectos e
por muitas razões,
um feito extraordinário, provavelmente o mais importante texto literário das últimas décadas. Trata-se da obra final de
W.G. Sebald (1944-2001), que
em apenas dez anos escreveu
quatro ou cinco livros que ficarão como monumentos da
cultura do nosso tempo, entre
eles "Os Anéis de Saturno",
"Os Emigrantes" e "Vertigens".
Difícil resenhar "Austerlitz". Primeiramente, é preciso dizer que a tradução se
mantém à altura da tarefa, do
início ao fim.
Quanto ao enredo do livro,
ele poderia ser mal condensado na seguinte frase: em uma
série de encontros casuais
com um narrador que não é
outro senão o alter ego de Sebald, presente em todos os
seus livros, o estudioso de história da arquitetura Jacques
Austerlitz narra a história de
sua vida, desde a infância, passada na casa de um pastor no
País de Gales sob nome falso,
aos anos de internato, à descoberta do verdadeiro nome,
às peregrinações de estudos
pela Europa e, finalmente, ao
desvendamento de sua origem.
No primeiro encontro de
Austerlitz com seu interlocutor anônimo, em 1967, na
Central Station de Antuérpia,
as conversas giram em torno
das estruturas de antigas edificações, como o próprio prédio da estação, mandado erigir pelo rei Leopoldo para expressar a pujança da Bélgica
imperialista, o gigantesco Palácio de Justiça de Bruxelas e
diversos exemplos de fortificações, "marcadas em geral,
disse Austerlitz, por uma tendência à elaboração paranóica".
Coincidências
Incitado pelas explanações
de Austerlitz, o narrador vai
visitar ali perto o forte Breendonk, "rebento da feiúra e da
violência cega", onde, anos
mais tarde, descobre que o filósofo Jean Améry esteve preso e foi torturado antes de ser
deportado para Auschwitz.
Os amigos continuam se visitando nos anos seguintes,
em Londres, mas depois o
narrador perde a pista de seu
personagem por longo tempo,
reencontrando-o apenas em
dezembro de 1996, "por uma
curiosa série de coincidências".
É então que Austerlitz,
rompida a resistência que
sempre o impediu de falar de
si ou de sequer se interessar
pela história do século 20
-"por mais inconcebível que
isso me pareça hoje, eu não sabia nada da conquista da Europa pelos alemães [...]. Para
mim, o mundo terminara com
o fim do século 19"-, começa
a investigar e a expor ao amigo, em círculos concêntricos,
todos os fossos que o separaram de sua origem.
À medida que a história
pessoal de Austerlitz vai
emergindo do esquecimento,
acompanhada das imagens
fotográficas que caracterizam a escrita de Sebald, o leitor vai sendo transportado ao
centro do extermínio nazista
e chega à Praga de Kafka, onde o estudioso de arquitetura
nascera em 1934 e de onde
conseguiu escapar em 1939.
Mas não os seus pais, de
quem ele passa a perseguir os
vestígios.
Os traumas resultantes
tanto do recalque da memória quanto da descoberta da
violência sofrida são muitos
e, entre seus efeitos, que incluem várias passagens por
hospitais psiquiátricos, o brilhante Austerlitz jamais conseguirá escrever a sua obra, o
que faz lembrar "O Sobrinho
de Wittgenstein", de Thomas
Bernhard.
Associações de idéias
A narrativa não é linear,
procede por associação de
idéias, alusões, indícios, num
permanente deslizamento
do sentido.
Mas o que nela há de fortuito se articula afinal como
necessidade férrea, obedecendo a uma lógica interna
cuja estrutura em rede é correlata à "mania de ordem e a
tendência à monumentalidade que se manifestavam em
cortes de Justiça e instituições penais, em estações de
trem e prédios da Bolsa, em
teatros líricos e hospícios".
A investigação das origens
de Austerlitz, cujo nome remete à famosa batalha vencida por Napoleão, mas também evoca sonoramente o
campo de Auschwitz, termina por produzir uma enciclopédia potencialmente infinita, numa proliferação descontrolada de células que
formam por fim um corpo
monstruoso. Não por acaso,
lá pelas tantas, Austerlitz
descreve a visita que fez à seção teratológica de um museu de medicina veterinária.
Mas não há desespero na
escrita de Sebald. Antes, predomina aquela "beleza glacial extrema" que Enrique
Vila-Matas lhe atribuiu em
"O Mal de Montano".
Como se todos os ciclos de
nascimento e morte, esquecimento e lembrança, construção e destruição fossem
vistos já de muito longe. Ou
muito de perto, na lâmina exposta ao microscópio.
MAURÍCIO SANTANA DIAS é professor de
literatura italiana na USP.
AUSTERLITZ
Autor: W.G. Sebald
Tradução: José Marcos Macedo
Editora: Companhia das Letras
(tel. 0/ xx/11/ 3707-3500)
Quanto: R$ 44 (296 págs.)
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