São Paulo, domingo, 27 de abril de 2008

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+ urbanismo

Piano forte

O aclamado arquiteto Renzo Piano diz que a criatividade não precisa de liberdade, mas de regras, e defende a "maneira européia" de conceber um edifício

EDWIN HEATHCOTE

Quando se chega ao escritório de Renzo Piano em Paris, vindo do lado do Sena, parece qualquer outra entrada burguesa -uma placa simples, passagem, campainha, porta metálica. Mas, se você vier do lado norte, verá imediatamente por que a placa não diz "Renzo Piano Arquiteto", e sim "Renzo Piano Oficina de Edifícios".
A espaçosa oficina de maquetes funciona como vitrina, evocando a cidade dos artesãos que Paris já foi, com refinadas miniaturas de prédios brotando de pilhas de papelão e madeira, paredes com ferramentas bem arrumadas e projeções de enormes novos pedaços de cidades ao redor do mundo.
Entre as cores neutras, brilham alguns lampejos coloridos: vermelho vivo, laranja, verde-limão.
Fora do escritório, um vislumbre do Centro Pompidou exibe algumas dessas cores brilhantes, aplicadas à estrutura de um edifício desenhado há mais de 30 anos pelos jovens Richard Rogers e Renzo Piano.
Mas os novos rasgos de cor se destinam a Londres.
No território sujo e escuro atrás de Centrepoint, na extremidade norte da rua Charing Cross, escavadeiras estão abrindo um buraco do tamanho de um quarteirão que será preenchido por um imenso prédio de Piano, seu primeiro nessa cidade.
Mas as maquetes piramidais com pontas aguçadas do Shard of Glass [caco de vidro, apelido de outro projeto, na região da London Bridge] espalhadas pelo escritório nos lembram que não será sua única intervenção radical em Londres.

Revitalização do centro
O Central St. Giles, uma obra de utilidade mista, leva o nome de um bairro da cidade que tem uma história brutalmente confusa. Um lugar de desesperada pobreza e superlotação, de cadafalsos, da malandragem e da prostituição retratadas em "Gin Lane" [Beco do Gim, gravura], de William Hogarth, a área continua decididamente dissoluta, um ímã para os itinerantes e os embriagados.
Seus problemas se confundem com a incoerência do espaço urbano embaixo e ao redor de Centrepoint, e a nova encomenda de Piano começa a enfrentar os problemas em torno desse cruzamento curiosamente infeliz. A nova estrutura substitui um feio prédio de tijolos que um dia abrigou um escritório do serviço secreto.
É um esquema de alta densidade, incluindo quase 37 mil metros quadrados de escritórios, 11 unidades de lojas e restaurantes, 109 apartamentos (a metade dos quais será acessível para trabalhadores-chave) e uma "piazza" pública ocupando mais de um quarto da área do lugar. Com uma teia de ruas atravessando o local, ele também tenta ser a fundação de um novo St. Giles.
Piano fez nome com uma série de edifícios urbanos e sofisticados para instituições de arte ao redor do mundo, da tranqüila Fundação Beyeler, na Suíça, e da Coleção Menil, em Houston, à intricada Biblioteca Morgan, em Nova York, e o minimalista Museu High, em Atlanta, para não falar no Centro Pompidou.
Ele tornou-se o favorito dos conselhos fiduciários, um solucionador de problemas confiável. Seu nome não teria sido o primeiro lembrado para St. Giles, pois suas obras delicadas parecem um pouco visionárias demais para essa parte tão impiedosa de Londres.
Sentados no porão de seu escritório em Paris (seu ateliê principal fica em Gênova), pergunto a Piano como ele poderia levar em conta uma história tão densa em um edifício comercial moderno. "Tudo isso é medieval", responde, movendo o braço sobre um grande mapa do local.
Então, ele começa uma encantadora e articulada preleção em que quase não preciso fazer nenhuma outra pergunta durante uma hora. "A complexidade é o espírito de um fragmento de cidade que vem crescendo como uma parte orgânica do tecido", continua.
"Quando você trabalha no centro histórico de uma cidade, em vez de se preocupar com a falta de liberdade, deve ser grato pelas restrições."
"A criatividade não precisa de liberdade, precisa de regras, então você pode ter o prazer de quebrar essas regras de vez em quando. Tenho dificuldade para construir em um espaço aberto. Sou um grande caminhante, a primeira coisa que faço é caminhar pelo lugar; não se deve fazer nada sem caminhar pelo lugar."
Alto, magro, de barba, Piano lembra ligeiramente um padre. Tem uma confiança calma e sensível, mas também uma espécie de crença evangélica no que faz.
Pergunto sobre o espírito do lugar, sobre como se começa a criar um novo espaço, um lugar com personalidade que brota do local e não é imposta a ele.
"Primeiro, reagimos à topografia do lugar, a sua complexidade geográfica", diz. "Trabalhamos em uma escala muito diferente do tecido medieval, então rompemos o edifício em uma série de facetas. Reagimos ao movimento do sol."
Ele levanta o dedo e me olha fixamente: "Isso é muito importante: a sombra e a luz, a orientação, a transparência para a rua. O edifício voa acima de seu lugar, em uma base de vidro. Gosto da idéia de que o edifício não se apossa do terreno de maneira egoísta, mas fala com as ruas. Essa é uma maneira européia de fazer as coisas".

Transparência
Menciono que, recentemente, visitei seu novo arranha-céu do "New York Times" e que ele parece estar fazendo algo semelhante ali, com o saguão público e transparente, criando rotas internas e públicas através de uma cidade onde o público e o privado em geral são poderosamente diferentes.
"Em Nova York, depois do 11 de Setembro, havia uma tentação de fazer tudo como uma fortaleza, sólido e fechado. Mas, na verdade, descobrimos que a transparência é mais segura que a opacidade, todo mundo pode ver o que está acontecendo."
Essa, segundo ele, é a abordagem que adotou em St. Giles. "O prédio não toca o chão. Um prédio em uma cidade intensa não deve ocupar totalmente o terreno, é como desafiar a gravidade. A urbanidade está nesse toque de mágica. Um espaço urbano é um espaço ritual para a cidade, em que as pessoas possam se livrar das diferenças, em que no melhor dos casos até o medo desapareça."
"Essa idéia de voar acima do local não é decoração, tem a ver com acelerar o ritual. Estamos no centro da cidade e as pessoas podem caminhar através do lugar, atravessá-lo; agora que o prédio foi erguido, tornou-se permeável. Essa não é apenas uma transparência psicológica, uma vitrine de loja, é física."
Ainda mais que, pela transparência, o novo edifício é definido por sua clara ruptura em uma série de fachadas de cores fortes. Piano descreveu o prédio como uma maçã, colorida e brilhante por fora, crocante e branca por dentro.
Menciono que, quando caminhei em direção ao local pela rua Denmark, o centro das lojas de guitarras em Londres, não pude deixar de fazer a conexão entre os corpos elétricos de cores fortes e as novas fachadas. Piano sorri. "Você tem razão.
A cor veio da observação das pequenas ruas ao redor, os fragmentos de cores vivas. A escala é obviamente diferente, mas nós tomamos a cor da súbita presença de luminosidade nessa parte da cidade -não é tão cinzenta quanto se poderia esperar. A cor acrescenta surpresa, ajuda na fragmentação; não acho que as cidades devam ser aborrecidas. Elas são uma espécie de milagre porque são cheias de surpresas... A cor é humor e magia."
Pergunto sobre o processo, as maquetes, como Piano desenha. "Nós chamamos este escritório de oficina. Meu pai foi um construtor, e eu cresci em obras e nunca abandonei a idéia de artesanato, de fazer um prédio melhor", diz.
"Sem o artesanato, só podemos fazer coisas falsas. As fachadas coloridas são de cerâmica, um material que vem da terra e retornará à terra. Olho para ele e me apaixono. A cor é real. Apenas naquela fachada amarela há 2.000 peças, e cada peça tem sua própria escala."

Forma com sentido
Enquanto falamos, Piano começa a falar da situação da arquitetura em geral. "Hoje os arquitetos estão obcecados pela forma e pelo desenho, todo mundo está obcecado pela criatividade", diz. "Não é difícil fazer novas formas, mas uma nova forma que tenha sentido é outra coisa. A tecnologia de computador torna muito fácil produzir absurdos. Basta apertar um botão e... ele aparece", afirma, gesticulando loucamente, fazendo formas absurdas com as mãos.
"Eu acredito na criatividade, mas detesto a idéia de estilo", acrescenta. "A idéia de que os arquitetos podem criar um estilo-assinatura, a repetição de suas próprias formas... É aí que se perde a liberdade."
Virtualmente toda conversa com um arquiteto hoje termina com a inevitável declaração que redime a culpa, o discurso da sustentabilidade. Piano é mais sutil que a maioria, inserindo-o em um contexto cultural e histórico mais amplo.
Ele fala sobre os jardins na cobertura e terraços que rompem o edifício de St. Giles em camadas e diz: "Se a arquitetura do século 19 fosse definida pela construção em metal -o Palácio de Cristal [em Londres] e assim por diante- e a do século 20, pelo despojamento modernista da decoração e a superfície limpa, então a arquitetura do século 21 deveria ser sobre humanismo, sobre a percepção de que estamos construindo em um mundo frágil. Sustentabilidade não tem a ver só com energia, mas com toda a história, a cidade".
Compreender isso exige trabalho a pé, além de manual. "Como eu disse, sou um grande caminhante. Preciso conhecer cada paralelepípedo entre meu apartamento e meu escritório."
"A parte mais bela de uma cidade é a pedra. Mas o detalhe na arquitetura é imensamente importante e o padrão da pavimentação é tão importante quanto o edifício. O motivo por que somos tão apaixonados pelos centros históricos é que eles não são projetados, mas construídos sobre um milhão de histórias."
Enquanto as escavadeiras trabalham em St. Giles, a próxima história está começando.


Este texto foi publicado no "Financial Times". Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves .


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