São Paulo, domingo, 27 de maio de 2001

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+ brasil 502 d.c.

O socialismo sem lugar

José Arthur Giannotti


É notável que no início do século 19 também as utopias substituam o bom governo baseado na boa vontade pelo bom governo inspirado na ciência


A utopia, o não-tópico, é o lugar onde se depositam as esperanças de um mundo melhor, no passado ou no futuro, sem as agruras e as vicissitudes do presente. Difícil encontrar uma sociedade onde não ocorra esse procedimento, embora sob formas diferentes. Os guaranis, por exemplo, acreditavam na existência de uma terra sem mal para onde tentavam emigrar quando as pressões do cotidiano se tornavam insuportáveis. Mas, de nosso ponto de vista, esse além do lugar é um mito, pois eles acreditavam na sua existência. O Ocidente, por sua vez, confirma essa regra, imprimindo à transcendência formas diferentes. A Antiguidade grega acreditava no mito da idade de ouro, em que os homens viveriam livres do trabalho e da propriedade privada, mas o Evangelho prega distância dos afazeres terrestres, propondo como exemplo os lírios do campo, que não fiam e não tecem, estando aos cuidados da Providência divina. De um modo ou de outro, paira no horizonte de nossa civilização a vaga idéia de uma organização sem trabalho, um comunismo originário.

Nova transcendência
Numa nova sociedade cujo início é marcado por turbilhões no campo e revoltas urbanas, quando, além do mais, se descobre o Novo Mundo, terras e povos nunca dantes imaginados, era de esperar que essa transcendência ganhasse novas formas. Num intervalo de pouco mais de um século três grandes obras foram produzidas: "A Utopia" (1516), de Thomas Morus, "A Nova Atlântida" (1626), de Francis Bacon, e "A Cidade do Sol" (1623), de Tommaso Campanella, todas elas inspiradas em "A República", de Platão, mas criando as regras de um novo gênero literário. Se, de um lado, esses textos trazem uma carga crítica muito forte, censurando costumes e pondo em xeque a estruturação do poder, convém não perder de vista seu lado conservador, pois todas essas utopias ainda são pensadas no quadro de uma cidade precisamente no momento em que se estabelece o Estado-nação. Antes de tudo é o governo que há de ser reformado, a cidade, reestruturada, para que a justiça e a felicidade possam reinar nela. Por certo os problemas sociais não são desconhecidos, Morus registra o drama daqueles que, sendo expulsos do campo, não encontram emprego na cidade, mas toda a ênfase desses reformadores cai na idéia de bom governo, mesmo que, para seu funcionamento, se instale uma prisão modelar, como é o caso de "A Cidade do Sol". Daí o caráter voluntarista do gênero utopia. Para que na cidade da "Utopia" as coisas pudessem estar no devido lugar, Morus imagina um sistema produtivo baseado na escravidão. Como, porém, conciliá-la com a dignidade humana? O escravo deveria ser, pois, o inimigo vencido a quem a vida era poupada. Morus, contudo, nem se pergunta se o volume da produção escrava seria suficiente para fazer funcionar a cidade sem crises na produção e no consumo. Para ele não há leis regulando o fluxo da riqueza social. Não pensa de maneira muito parecida com certos críticos de hoje, que, sem atentar para essas proporcionalidades do sistema produtivo, tudo imaginam fazer brotar da vontade política? O modelo da cidade utópica, além de indicar certa percepção dos gargalos de uma sociedade e uma forma de superá-los, traz informações preciosas a respeito do que os contemporâneos consideravam como possível. Quando se imagina uma formação social sem as vicissitudes do mal e da contingência, também se desenha o que o autor considera possível de ser realizado. O pensamento utópico na época dos descobrimentos lança luz sobre o próprio modo de ser do social naqueles tempos. Os homens de 1541, observa Lucien Febvre, no seu clássico livro sobre a descrença no século 16, acreditavam que tudo era possível, a não ser o discurso contraditório, noto eu. Não sabiam duvidar da possibilidade de qualquer fato. Para eles uma noção tirânica, absoluta, coercitiva de lei natural ou social não limitava a potência infinita de uma natureza criadora e protetora, livre de qualquer peia. A isso se associava uma concepção de lei social cuja base só poderia ser dual, relação entre duas pessoas entre si. Platão e Aristóteles consideravam a amizade como o visgo da cidade antiga. No entanto, mesmo um autor rebelde, como Protágoras, embora considere o homem nascendo isolado na natureza, ao fazer a sociabilidade resultar da justiça e do respeito temeroso, dádiva que os deuses ofertaram a um ser tão desprovido de defesas naturais, não estaria pensando a amizade em negativo? Desse modo me parece ter cabimento afirmar que os gregos em geral reduziam a sociabilidade à amizade, espelhamento do ego no outro. Essa forma dual da sociabilidade, aliás, só desaparece, salvo engano meu, no século 19; ainda para Hobbes, no estado de natureza, quando o homem era o lobo do homem, predominaria o medo, isto é, a "philia" invertida, e para Rousseau a piedade era atributo do bom selvagem. Depois que se instala a sociedade industrial o contrato social adquire outras propriedades. Em primeiro lugar os contratantes são socius, aqueles que se ligam associativamente no cumprimento de uma tarefa. O outro, antes de estar ligado pela amizade o está pela companhia (cum+panis), é o comedor do mesmo pão ou do mesmo lucro, sendo justas aquelas leis que distribuem equitativamente dons e riquezas segundo contratos previamente estabelecidos. A dualidade do contrato fica assim mediada pelo objeto em vista do qual as pessoas se relacionam, e as relações de trabalho, estudadas pela nascente economia política, podem ser vistas como base de nova forma de sociabilidade. P.J. Proudhon, por exemplo, filósofo sapateiro que marcou profundamente o socialismo francês do século 19, explicita sua teoria do contrato social contrapondo-a àquela de Rousseau. Este inicia a segunda parte de seu "Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade Humana" afirmando que o fundador da sociedade civil teria sido aquele que cercou um terreno, que disse "isto é meu" e encontrou alguém bastante simples para acreditar nisso. A propriedade se exercita, pois, em dois tempos, primeiramente alguém toma posse de um objeto, depois outro acredita nisso e obedece, isto é, reconhece o direito do outro. A dificuldade está, pois, em descobrir como isso foi possível. Mas a intermediação do terreno não altera a forma dual da sociabilidade, pois as duas pessoas estão criando um vínculo de lei, legal, de obediência, independentemente do objeto mediador. Se a posse é a expressão do desejo de um sujeito, a propriedade consiste no estabelecimento de uma regra legitimadora do processo. Difícil se torna então explicar o funcionamento dessa desigualdade no interior do corpo político da cidade.

Legitimidade e roubo
Proudhon, ao contrário, ilumina o papel do objeto mediador. Para explicar como a propriedade é roubo, precisa partir do exemplo da escravidão como assassinato. Não são necessárias muitas palavras, diz ele, para explicar que o poder de tirar de alguém seu pensamento, sua vontade, sua personalidade é de vida e morte, o qual, nas mãos do senhor, converte a propriedade do escravo num homicídio. Desse modo, quando, em vez de acusar a posse, a mera exteriorização da propriedade, acusa esta mesma propriedade de vir ser roubo, está questionando o próprio sentido da norma, o caráter da lei que, se mostrando equânime, esconde as diferenças provocadas pelo exercício da posse.
Daí as características do novo contrato social: 1) deixa livre os contratantes para que se obriguem apenas mutuamente, sem nenhuma referência a uma lei universal; 2) deve poder ser estendido ao gênero humano na medida em que todos se obrigam ao respeito mútuo; 3) deve assegurar a justiça e o bem estar de cada um, de sorte que a posse da coisa privada ou pública não há de provocar a desigualdade entre os homens. Em suma, o sócio vem a ser o mútuo conforme se apropria das coisas sem que isso lhe faculte a apropriação do excedente produzido mediante elas. A propriedade é roubo quando vem a ser apropriação legítima da coisa na sua qualidade de produtora de excedente da riqueza social. O ato legitimado pelo direito se torna ilegítimo socialmente na medida em que é fonte de injustiça, de sorte que o Estado de direito consiste numa forma de encobrir uma desigualdade social. Compreende-se por que Proudhon propõe a dissolução do governo no organismo econômico, a abolição do Estado a fim de que a sociedade possa se exercer como mutualidade, envolvendo "o indivíduo e a família, a corporação e a cidade, a venda e a compra, o crédito, a seguridade, o trabalho, a instrução e a propriedade", como escreve ele no seu livro "Sistema das Contradições Econômicas ou Filosofia da Miséria", publicado em 1846.


Não são necessárias muitas palavras, diz Proudhon, para explicar que o poder de tirar de alguém seu pensamento, sua vontade, sua personalidade, é de vida e morte, o qual, nas mãos do senhor, converte a propriedade do escravo num homicídio


Deus e economia
É difícil percorrer esse livro por inteiro, mas felizmente cada capítulo traz um resumo ao seu final. Mas é ainda possível ter acesso a Proudhon em coletâneas de textos, como aquela organizada por J. Lajugie, de que me sirvo. Pensa oceanicamente como muitos autores do século 19. Seus textos fazem dormir como o "Curso de Filosofia Positiva" de Augusto Comte, mas de repente fazem brilhar uma luz no meio da cerração. Contra o positivismo dirá, influenciado pela filosofia alemã e particularmente pelo jovem Marx, que tudo é contraditório, mas, no fundo, partilha com ele a mesma idéia de lei positiva, regra que os fatos, inclusive humanos, devem seguir. E, do mesmo modo que Comte, para o qual a função crítica da sociologia regeneraria o sistema das ciências, instalando assim as bases de uma política positiva, Proudhon acredita que a crítica da economia política permitirá uma nova engenharia social. Esses autores estão todos eles desenvolvendo um novo modo de pensar a realidade do social. As relações sociais passam a ser mediadas por uma espécie de massa que lhes permite ser compreendidas do ponto de vista das ciências positivas. Para Comte essa massa é o hábito, para Proudhon, um contrato social mediado pelo valor econômico. Até que ponto, entretanto, não estão eles caindo no mito do cientificismo? É notável que no início do século 19 também as utopias substituam o bom governo baseado na boa vontade pelo bom governo inspirado na ciência. Uma nova sociedade mercantil e industrial, cada vez mais dependente do desenvolvimento tecnológico, haveria de ser organizada cientificamente. No projeto do conde de Saint-Simon, o rei filósofo de Platão é substituído por um colegiado, o Conselho de Newton, formado por três representantes dos principais ramos das ciências e das artes. Conservava-se a propriedade privada, mas seus frutos deveriam prover as classes mais numerosas e mais pobres. Mas já Charles Fourier e Robert Owen tratam de criar ilhas socialistas no corpo da sociedade industrial nascente. Contra a progressiva desigualdade era preciso instalar conventos produtivos de bens e de justiça social. Mas esse socialismo nascente, ao fazer da ciência o instrumento da reforma social, por conseguinte ao atribuir à lei social estatuto próximo da lei física, indiferente aos desígnios humanos, não ficaria prisioneiro de uma reflexão crítica a respeito de uma forma particular de sociabilidade? O socialismo nasce, pois, transformando o mito do comunismo primitivo numa proposta de nova sociedade ao criticar de modo racional a sociedade presente, vale dizer, orientada pela ciência positiva que, por sua vez, considera a relação social existente como vínculo entre pessoas mediante algo que, embora seja trocado de forma aparentemente justa, traz em si uma fonte de desigualdade. Mas em que termos se processa essa crítica científica? Proudhon mistura Deus e economia política, elabora um sistema que não passa de samba do crioulo doido. Como se explica que tenha tido tal influência no socialismo francês? No século 19 a crítica literária se associa a movimentos sociais efetivos, pretende manifestar as aspirações duma classe que se pretende nascente, o proletariado. O texto escrito consiste, pois, numa proposta política de organização social a ser adotada por um grupo ou por um partido. Em outras palavras, sua verdade é mais prática do que teórica. Mas essa prática fica influenciada pelas formas da crítica do presente. Ora, essa crítica, para os novos socialistas, é racional porque científica. Marx explicita esse pressuposto ao afirmar que toda a crítica anterior, nomeadamente a alemã, depende de uma análise da razão prática, vale dizer, da vontade racional. A ciência há de desvendar os processos de mudança da realidade social, a história, como ciência da evolução humana, deve presidir à compreensão das mudanças sociais que se movem como se fossem planetas em torno do Sol.

Bastião inimigo
A dificuldade é que cada grupo adota uma concepção de ciência de acordo com suas práticas, de sorte que a visão de ciência desenvolvida pelo adversário se converte num bastião inimigo a ser conquistado por todas as armas possíveis. Esse duelo de visões científicas, ligado à prática política da contestação, mas desligado do efetivo gerenciamento do poder, torna-se ainda mais feroz quando os grupos adversários compartilham pressupostos comuns. De nosso ponto de vista, o legado científico de Marx, suas teses que suportaram a contraprova do jogo teórico e das práticas de organização social, nem pode ser comparado ao legado de Proudhon. Mas ambos compartilham da mesma visão ternária da sociabilidade. É natural que essa proximidade os levasse, como adversários, a um combate renhido. Marx e Engels não poupam injúrias para desqualificar Proudhon.
Essa polêmica, porém, nos ensina, em primeiro lugar, que a visão ternária da sociabilidade, que faculta seu estudo de um ponto de vista pretensamente científico, está associada à redução do político ao econômico. O Estado, como afirma Marx, consiste no resumo, no apanhado, na com-apreensão ("Zusammenfassung") dos conflitos da sociedade civil. Essa perspectiva estimula uma extraordinária geografia do inferno do sistema capitalista, mas limita substancialmente o exame dos instrumentos políticos de sua superação. Não haveria nesse sistema o germe de sua destruição, assim como a estrutura da macieira está predeterminada na sua semente?
Em segundo lugar, que a esperança da abolição do Estado desenha seu caminho obedecendo a dois limites: de um lado, a destruição negativa da dominação política, seu ensimesmamento na prática social; de outro, a destruição positiva dessa dominação por meio da exasperação do político, do partido que se propõe como o Estado. Desse modo, anarquismo e marxismo se apresentam como faces de uma mesma moeda, ambos muito atentos à perversidade do capitalismo, ambos se distanciando de uma concepção política que reconheça uma distância entre os movimentos sociais e os procedimentos políticos. O que significa, então, da parte deles, constantemente reafirmar a fé na democracia?


José Arthur Giannotti é filósofo, professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e presidente do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), autor de, entre outros, "Certa Herança Marxista" (Companhia das Letras). Ele escreve mensalmente na seção "Brasil 502 d.C.".



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