São Paulo, domingo, 27 de maio de 2001

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Hollywood e as duas faces da censura

Slavoj Zizek

No establishment multicultural do mundo de hoje, os curadores são uma espécie de canibais artísticos, cortando, preparando e consumindo a carne da obra dos artistas -portanto parece bastante apropriado que em "Hannibal", de Ridley Scott, Hannibal Lecter seja agora um curador em Florença. Infelizmente "Hannibal" é um dos principais concorrentes a pior filme do ano. Após assisti-lo, só podemos nos perguntar com nostalgia onde estava a notória "Kulturindustrie" de Hollywood, com suas regras impecáveis de manipulação emocional do espectador. Em relação à cena clímax do filme (na qual Hannibal abre o crânio do agente do FBI drogado, seu inimigo, corta um pedaço de seu cérebro, frita-o com trufas e o oferece ao próprio agente), somos tentados a depreender que talvez os autores do filme tenham sido submetidos a esse procedimento pelo verdadeiro Hannibal, que teria cortado de seus cérebros a parte que regula a criatividade artística... A única figura levemente interessante no filme é a do inspetor italiano que tenta localizar Hannibal, interpretado por Giancarlo Giannini: uma estranha, mas comovente, personificação da decadência européia, cansada e resignada.

Bizarro final feliz
Mas é esse próprio fracasso completo do filme que nos leva a fazer duas perguntas mais gerais sobre a censura no cinema. Nos bons velhos tempos do código Hayes, o procedimento proverbial de Hollywood era mudar o final triste do filme para o obrigatório final feliz e otimista. Com o "Hannibal" de Ridley Scott de certa forma o círculo se fecha: é o romance de Thomas Harris que termina com Hannibal Lecter e a agente do FBI Clarice Sterling vivendo como casal em Buenos Aires, enquanto o filme censurou esse final, optando por outro mais aceitável. Quando Ridley Scott aceitou dirigir "Hannibal", imediatamente procurou Harris. "O final era uma questão muito delicada, por isso a primeira coisa que fiz foi ligar para Tom Harris. Disse que realmente não acreditava naquilo. De repente havia um salto quântico dessa personagem (Clarice) que eu considerava incorruptível e imutável. Não era possível. Essas qualidades eram o que a tornava mais fascinante para Hannibal. Se ela o tivesse aceitado, ele a teria matado." (Citado em "The Passions of Julianne Moore", "Vanity Fair", março de 2001.) O que, então, é tão inadmissível nesse "final feliz mais bizarro na história da ficção popular"? Seria realmente apenas psicologia, apenas o fato de que "essa resolução está completamente fora do personagem de Clarice"? A resposta certa é a oposta: em "Hannibal" nos oferecem uma realização direta do que Freud chamou de "fantasia fundamental": a cena de desejo mais íntima de uma pessoa, que não pode ser admitida diretamente. É claro que Hannibal é um objeto de intenso investimento libidinoso, de um verdadeiro envolvimento passional -desde "O Silêncio dos Inocentes" nós (e, no casal Hannibal-Clarice, Clarice representa esse "nós", o espectador comum, o ponto de identificação) o amamos, ele é um sedutor absoluto. Hannibal fracassa precisamente porque no final do romance ele realiza diretamente essa fantasia que deve permanecer implícita -o resultado é portanto "psicologicamente inconvincente" não apenas porque é falso, mas porque se aproxima demais de nosso núcleo fantasmático. Que uma garota seja devorada pela figura paternal, encantadora e demoníaca não é o final feliz máximo, a mãe de todos os finais felizes, como diriam no Iraque? Em uma análise mais profunda, também seria interessante acompanhar as transformações da figura de Hannibal nos três romances e filmes. Em "The Red Dragon", primeiro romance com Hannibal Lecter (e em "Dragão Vermelho", de Michael Mann, o primeiro e até hoje o melhor filme sobre Hannibal), ele é um puro monstro impessoal, uma máquina sem qualquer possibilidade de empatia. A grande mudança ocorre com "O Silêncio dos Inocentes", o romance e, especialmente, o filme: o desempenho de Anthony Hopkins, muito celebrado e definitivamente supervalorizado, em última instância humaniza Hannibal, transformando a fria e apática máquina de matar em um encantador gênio do mal. Consequentemente a relação entre Hannibal e Clarice em "O Silêncio dos Inocentes" é transformada em um intenso intercâmbio pessoal: Hannibal a ajuda (a pegar o assassino serial "Buffalo Bill") e o que ele quer em troca é que ela lhe conte suas mais íntimas fantasias traumáticas (a que se refere o título "silêncio dos inocentes"). Como não lembrar aqui a irônica alusão de Jacques Lacan a Heidegger, quando ele define o que o analista faz a seu paciente? "Mange ton Dasein!" (Coma o seu estar-aqui!). Em "O Silêncio", Lecter é portanto canibalístico não apenas em relação a suas vítimas, mas talvez ainda mais em seu relacionamento com Clarice: em vez de comer sua carne, ele "come seu Dasein", saboreando o próprio núcleo fantasmático de seu ser, suas fantasias mais íntimas e fundamentais. A troca que Hannibal propõe a Clarice é portanto: "Eu a ajudarei se você me deixar comer seu Dasein". Finalmente, em "Hannibal", passamos da troca de fantasias para a realização direta da própria fantasia -o aspecto censurado no filme, em que o apelo emocional inicial é invertido: não é Clarice quem é fatalmente atraída por Hannibal; é o próprio Hannibal quem "estende a mão", demonstrando seu amor por Clarice cortando sua palma (no final do filme, quando já escutamos as sirenes da polícia se aproximando da casa, Clarice algema Hannibal a si mesma para impedir que ele escape; em vez de cortar a palma da mão dela para poder fugir, ele corta a sua própria, dando a ela o proverbial pedaço de carne como a prova máxima de amor).

Natureza em decomposição
Mas há outro aspecto da censura que é completamente exercido em "Hannibal". Vamos examinar brevemente outro filme, "Stalker": se esse filme é a obra-prima de Tarkovski, é sobretudo por causa do impacto físico direto de sua textura. A paisagem da Zona é o descampado pós-industrial em que o mato cresce sobre fábricas abandonadas, túneis de concreto e ferrovias cheias de água parada e vegetação, por onde vagam gatos e cães sem dono. A natureza e a civilização industrial mais uma vez se sobrepõem aqui, mas através de uma decadência comum -a civilização em decadência está no processo de ser novamente reclamada, não pela harmoniosa natureza idealizada, mas pela natureza em decomposição.
A paisagem ideal de Tarkovski é a da natureza úmida, um rio ou lagoa perto de uma floresta, cheios de dejetos de artefatos humanos (velhos blocos de concreto ou pedaços de metal enferrujado). Os próprios rostos dos atores, especialmente o de Stalker, são únicos em sua mistura de rudeza, pequenos ferimentos, manchas escuras ou brancas e outros sinais de decadência, como se tivessem sido expostos a algum produto químico venenoso ou a substância radioativa, assim como irradiam uma bondade ingênua fundamental e confiança.
Embora a censura na União Soviética não tenha sido menos severa que o infame código Hayes, ela permitiu um filme tão árido em seu aspecto visual que jamais teria passado no teste do código Hayes. Lembrem, como exemplo da censura em Hollywood, a representação da morte por doença em "The Dark Victory" (1939), de Edmund Goulding, com Bette Davis: o ambiente de classe média alta, a morte indolor... O processo é privado de sua inércia material e transubstanciado em uma realidade etérea, livre de maus odores e sabores.
O mesmo acontecia com os cortiços -lembrem a famosa piada de Goldwyn, quando um crítico se queixou de que os cortiços em um de seus filmes pareciam bonitos demais, sem sujeira real: "É melhor que sejam bonitos, porque custaram muito caro!".
A censura do código Hayes era extremamente sensível nesse ponto: quando se exibiam cortiços, exigia-se que o cenário fosse construído de modo a não evocar sujeira real e mau cheiro no nível mais elementar da materialidade sensorial do real; a censura em Hollywood era portanto muito mais forte que na União Soviética. E, apesar de todo o horror físico e da náusea, essa dimensão da inércia material também é completamente censurada em "Hannibal", que transcorre nos ambientes prototípicos de cartão-postal, seja no centro de Florença ou nos subúrbios de Washington: Hannibal pode estar comendo o cérebro, mas esse cérebro realmente não tem cheiro. Aí reside a lição maior desse filme fracassado: que, apesar das impressões enganosas em contrário, a censura em Hollywood está mais viva do que nunca!


Slavoj Zizek é filósofo esloveno, professor do Instituto de Sociologia da Universidade de Liubliana, autor de "Eles Não Sabem o Que Fazem" e "Um Mapa da Ideologia". Escreve mensalmente na seção "Autores", do Mais!.
Tradução Luiz Roberto Mendes Gonçalves.



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