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Hollywood e as duas faces da censura
Slavoj Zizek
No establishment multicultural
do mundo de hoje, os curadores são uma espécie de canibais
artísticos, cortando, preparando e consumindo a carne da obra dos artistas -portanto parece bastante apropriado que em "Hannibal", de Ridley
Scott, Hannibal Lecter seja agora um curador em Florença. Infelizmente "Hannibal" é um dos principais concorrentes
a pior filme do ano.
Após assisti-lo, só podemos nos perguntar com nostalgia onde estava a notória "Kulturindustrie" de Hollywood,
com suas regras impecáveis de manipulação emocional do espectador. Em relação à cena clímax do filme (na qual Hannibal abre o crânio do agente do FBI drogado, seu inimigo, corta um pedaço de
seu cérebro, frita-o com trufas e o oferece
ao próprio agente), somos tentados a depreender que talvez os autores do filme
tenham sido submetidos a esse procedimento pelo verdadeiro Hannibal, que teria cortado de seus cérebros a parte que
regula a criatividade artística...
A única figura levemente interessante
no filme é a do inspetor italiano que tenta
localizar Hannibal, interpretado por
Giancarlo Giannini: uma estranha, mas
comovente, personificação da decadência européia, cansada e resignada.
Bizarro final feliz
Mas é esse próprio fracasso completo do filme que nos
leva a fazer duas perguntas mais gerais
sobre a censura no cinema. Nos bons velhos tempos do código Hayes, o procedimento proverbial de Hollywood era mudar o final triste do filme para o obrigatório final feliz e otimista. Com o "Hannibal" de Ridley Scott de certa forma o círculo se fecha: é o romance de Thomas
Harris que termina com Hannibal Lecter
e a agente do FBI Clarice Sterling vivendo como casal em Buenos Aires, enquanto o filme censurou esse final, optando por outro mais aceitável.
Quando Ridley Scott aceitou dirigir
"Hannibal", imediatamente procurou
Harris. "O final era uma questão muito
delicada, por isso a primeira coisa que fiz
foi ligar para Tom Harris. Disse que realmente não acreditava naquilo. De repente havia um salto quântico dessa personagem (Clarice) que eu considerava incorruptível e imutável. Não era possível.
Essas qualidades eram o que a tornava
mais fascinante para Hannibal. Se ela o
tivesse aceitado, ele a teria matado." (Citado em "The Passions of Julianne Moore", "Vanity Fair", março de 2001.) O
que, então, é tão inadmissível nesse "final feliz mais bizarro na história da ficção
popular"? Seria realmente apenas psicologia, apenas o fato de que "essa resolução está completamente fora do personagem de Clarice"?
A resposta certa é a oposta: em "Hannibal" nos oferecem uma realização direta
do que Freud chamou de "fantasia fundamental": a cena de desejo mais íntima
de uma pessoa, que não pode ser admitida diretamente. É claro que Hannibal é
um objeto de intenso investimento libidinoso, de um verdadeiro envolvimento
passional -desde "O Silêncio dos Inocentes" nós (e, no casal Hannibal-Clarice, Clarice representa esse "nós", o espectador comum, o ponto de identificação) o amamos, ele é um sedutor absoluto. Hannibal fracassa precisamente porque no final do romance ele realiza diretamente essa fantasia que deve permanecer implícita -o resultado é portanto
"psicologicamente inconvincente" não
apenas porque é falso, mas porque se
aproxima demais de nosso núcleo fantasmático. Que uma garota seja devorada pela figura paternal, encantadora e
demoníaca não é o final feliz máximo, a
mãe de todos os finais felizes, como diriam no Iraque?
Em uma análise mais profunda, também seria interessante acompanhar as
transformações da figura de Hannibal
nos três romances e filmes. Em "The Red
Dragon", primeiro romance com Hannibal Lecter (e em "Dragão Vermelho", de
Michael Mann, o primeiro e até hoje o
melhor filme sobre Hannibal), ele é um
puro monstro impessoal, uma máquina
sem qualquer possibilidade de empatia.
A grande mudança ocorre com "O Silêncio dos Inocentes", o romance e, especialmente, o filme: o desempenho de
Anthony Hopkins, muito celebrado e
definitivamente supervalorizado, em última instância humaniza Hannibal,
transformando a fria e apática máquina
de matar em um encantador gênio do
mal. Consequentemente a relação entre
Hannibal e Clarice em "O Silêncio dos
Inocentes" é transformada em um intenso intercâmbio pessoal: Hannibal a ajuda
(a pegar o assassino serial "Buffalo Bill")
e o que ele quer em troca é que ela lhe
conte suas mais íntimas fantasias traumáticas (a que se refere o título "silêncio
dos inocentes"). Como não lembrar aqui
a irônica alusão de Jacques Lacan a Heidegger, quando ele define o que o analista faz a seu paciente? "Mange ton Dasein!" (Coma o seu estar-aqui!).
Em "O Silêncio", Lecter é portanto canibalístico não apenas em relação a suas
vítimas, mas talvez ainda mais em seu relacionamento com Clarice: em vez de comer sua carne, ele "come seu Dasein",
saboreando o próprio núcleo fantasmático de seu ser, suas fantasias mais íntimas e fundamentais.
A troca que Hannibal propõe a Clarice
é portanto: "Eu a ajudarei se você me deixar comer seu Dasein". Finalmente, em
"Hannibal", passamos da troca de fantasias para a realização direta da própria
fantasia -o aspecto censurado no filme,
em que o apelo emocional inicial é invertido: não é Clarice quem é fatalmente
atraída por Hannibal; é o próprio Hannibal quem "estende a mão", demonstrando seu amor por Clarice cortando sua
palma (no final do filme, quando já escutamos as sirenes da polícia se aproximando da casa, Clarice algema Hannibal
a si mesma para impedir que ele escape;
em vez de cortar a palma da mão dela para poder fugir, ele corta a sua própria,
dando a ela o proverbial pedaço de carne
como a prova máxima de amor).
Natureza em decomposição
Mas
há outro aspecto da censura que é completamente exercido em "Hannibal". Vamos examinar brevemente outro filme,
"Stalker": se esse filme é a obra-prima de
Tarkovski, é sobretudo por causa do impacto físico direto de sua textura. A paisagem da Zona é o descampado pós-industrial em que o mato cresce sobre fábricas abandonadas, túneis de concreto e
ferrovias cheias de água parada e vegetação, por onde vagam gatos e cães sem
dono. A natureza e a civilização industrial mais uma vez se sobrepõem aqui,
mas através de uma decadência comum
-a civilização em decadência está no
processo de ser novamente reclamada,
não pela harmoniosa natureza idealizada, mas pela natureza em decomposição.
A paisagem ideal de Tarkovski é a da
natureza úmida, um rio ou lagoa perto
de uma floresta, cheios de dejetos de artefatos humanos (velhos blocos de concreto ou pedaços de metal enferrujado).
Os próprios rostos dos atores, especialmente o de Stalker, são únicos em sua
mistura de rudeza, pequenos ferimentos,
manchas escuras ou brancas e outros sinais de decadência, como se tivessem sido expostos a algum produto químico
venenoso ou a substância radioativa, assim como irradiam uma bondade ingênua fundamental e confiança.
Embora a censura na União Soviética
não tenha sido menos severa que o infame código Hayes, ela permitiu um filme
tão árido em seu aspecto visual que jamais teria passado no teste do código
Hayes. Lembrem, como exemplo da censura em Hollywood, a representação da
morte por doença em "The Dark Victory" (1939), de Edmund Goulding, com
Bette Davis: o ambiente de classe média
alta, a morte indolor... O processo é privado de sua inércia material e transubstanciado em uma realidade etérea, livre
de maus odores e sabores.
O mesmo acontecia com os cortiços
-lembrem a famosa piada de Goldwyn,
quando um crítico se queixou de que os
cortiços em um de seus filmes pareciam
bonitos demais, sem sujeira real: "É melhor que sejam bonitos, porque custaram muito caro!".
A censura do código Hayes era extremamente sensível nesse ponto: quando
se exibiam cortiços, exigia-se que o cenário fosse construído de modo a não evocar sujeira real e mau cheiro no nível
mais elementar da materialidade sensorial do real; a censura em Hollywood era
portanto muito mais forte que na União
Soviética. E, apesar de todo o horror físico e da náusea, essa dimensão da inércia
material também é completamente censurada em "Hannibal", que transcorre
nos ambientes prototípicos de cartão-postal, seja no centro de Florença ou nos
subúrbios de Washington: Hannibal pode estar comendo o cérebro, mas esse cérebro realmente não tem cheiro. Aí reside a lição maior desse filme fracassado:
que, apesar das impressões enganosas
em contrário, a censura em Hollywood
está mais viva do que nunca!
Slavoj Zizek é filósofo esloveno, professor do Instituto de Sociologia da Universidade de Liubliana,
autor de "Eles Não Sabem o Que Fazem" e "Um
Mapa da Ideologia". Escreve mensalmente na seção "Autores", do Mais!.
Tradução Luiz Roberto Mendes Gonçalves.
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