São Paulo, Domingo, 27 de Junho de 1999
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CLAUDE LÉVI-STRAUSS
Para o autor de "Tristes Trópicos", as culturas não desaparecem, mas se misturam umas às outras
A diversidade humana

Éric Brochu
O antropólogo Claude Lévi-Strauss no Laboratório de Antropologia Social do Collège de France, em Paris


BEATRIZ PERRONE-MOISÉS
especial para a Folha

Claude Lévi-Strauss declarou, no início deste ano, a um grupo reunido em sua homenagem no Collège de France, sentir-se como um holograma fragmentado. Um holograma se forma na coincidência entre uma imagem proveniente de um objeto real e outra, virtual. O "holograma Lévi-Strauss", segundo ele próprio, não está mais inteiro, porém, "como em todo holograma, cada parte restante conserva uma imagem e uma representação do todo". Um "eu" virtual teria ainda projetos e seria capaz de "conservar viva uma idéia do todo". Ao eu real, "extremamente velho", reduzido a apenas uma parte do que fora o homem -como acontece, dizia Montaigne, com todos os que envelhecem-, restaria esperar pelo fim. Lévi-Strauss disse ainda que vive atualmente nesse "diálogo estranhíssimo" entre seus dois eus.
Aos presentes na ocasião, ali reunidos para entregar-lhe um número especial da revista "Critique" a ele dedicado, agradeceu, finalmente, pela rara possibilidade de fazer cessar o diálogo, "permitindo a esses dois eus coincidir novamente" ("Le Monde", 29/01/99).
A imagem da (re)composição do holograma descreve bem a sensação de entrevistar Lévi-Strauss. Para quem entra no espaço de sua sala no Laboratório de Antropologia Social do Collège de France, em Paris, trata-se de ver tomar corpo a imagem de um dos maiores pensadores do século 20. O corpo que se vê é o de um homem velho, mas surpreendentemente saudável para a idade que tem -quando o entrevistei, estava a alguns dias de completar 90 anos.
Extremamente delicado, cortês e acessível, Lévi-Strauss é um ancião daqueles cuja sólida sabedoria torna, paradoxalmente, mais leve. Um ancião que fala do presente com desprendimento, como se já não fosse deste mundo e estivesse de fato apenas à espera de sua hora. Ele mesmo contou, certa vez, que durante sua visita ao Japão, há alguns anos, levou seus acompanhantes a comentarem que só se interessava por coisas que não existiam mais. O mesmo interesse pelo Oriente e pelas coisas que já não são, além da cortesia, estavam na sugestão, feita após a entrevista, de que eu visitasse a exposição de raros e antigos objetos chineses que se encontrava então no Grand Palais.
Afastado do presente, Lévi-Strauss fala do passado com carinho e emoção. Conta as saudades da juventude, o espírito curioso que o trouxe ao Brasil, com a mesma voz trêmula e bela e a mesma segurança no raciocínio e precisão nos termos com que expressa a tristeza de ver desaparecer a França em que cresceu e a esperança de que as diferenças humanas permaneçam.
As palavras a seguir são parte de uma entrevista, até agora inédita, realizada em novembro de 1998, por ocasião de um seminário dedicado à obra de Lévi-Strauss, promovido pelo departamento de antropologia da USP. A entrevista será publicada, na íntegra, na "Revista de Antropologia" (previsto para agosto), em número especial dedicado a Lévi-Strauss, contendo as comunicações apresentadas no seminário "Lévi-Strauss e os 90". As palavras que aparecem em itálico são aquelas que Lévi-Strauss disse em português, com muita clareza e naturalidade, aliás.

Pergunta - No início do "Prólogo" a "Saudades do Brasil" o sr. se refere a uma memória olfativa das expedições pelo interior. De que outros odores o sr. se lembra?
Claude Lévi-Strauss -
Como se sabe, na época em que fui para o Brasil (1935), viajávamos de navio, não havia aviões, e os navios eram também cargueiros e faziam muitas escalas (o navio partiu de Marselha e fez escala em Barcelona, Cádiz, Argel, Casablanca e Dakar antes de aportar em Santos). Nunca me esquecerei de que, ao chegar -estávamos em alto-mar havia 19 dias, acho-, a primeira percepção que tivemos do Novo Mundo -ainda não se podia ver a costa- foi um cheiro. Um cheiro difícil de descrever, porque as associações são fáceis demais: cheiro de tabaco, cheiro de pimenta... Enfim, tudo isso está ligado ao Novo Mundo, não sei se é exatamente isso. Mas é sem dúvida uma das dimensões da natureza brasileira, que não é apenas visual, ou tátil, é também olfativa.

Pergunta - E quais seriam esses "odores do Brasil"?
Lévi-Strauss -
Há muitos outros odores, que emergem ao acaso. Lembro, por exemplo, que, depois dos Nambiquara, estávamos indo na direção do Madeira -e ainda não era a floresta amazônica, era mais o campo, uma espécie de floresta seca- e de repente, montado no cavalo, vi no solo um campo de abacaxis selvagens. Bastava inclinar-se bem baixo, sem desmontar, para arrancar os frutos e comê-los. É uma das sensações gustativas e olfativas que ficaram, porque não era como o abacaxi que conhecemos, era um abacaxi com um cheiro de framboesa absolutamente extraordinário. Há muitos e muitos outros cheiros, mencionei esse apenas como um exemplo... há ainda o cheiro do fumo, cheiro de fumo de rolo em toda parte. Aliás, era o que eu fumava, em folhas de milho, que davam ao tabaco um sabor e um cheiro muito, muito particulares, que também ficou. Há também a pinga...

Pergunta - O sr. gostava de pinga?
Lévi-Strauss -
Ah, sim, gostava muito! E me lembro também da fabricação, uma vez por semana, da rapadura, nas fazendas do interior, para o consumo dos peões, de seus filhos e de suas famílias; isso também tinha um cheiro e um gosto muito especiais.

Pergunta - Durante as expedições, o sr. comia como os brasileiros, como a população regional?
Lévi-Strauss -
Na verdade, não havia população regional... Enfim, havia, durante algum tempo, e, depois, mais ninguém. Tínhamos feito grandes provisões: arroz e feijão, claro, e algo que chamavam de bolachas, que também constituem uma lembrança bem clara... Ficavam duras como pedra... E também caçávamos...

Pergunta - O sr. era bom caçador?
Lévi-Strauss -
Tenho vergonha de dizer, porque atualmente sou um opositor radical da caça, mas não era um mau caçador... E, o que é ainda mais lamentável, eu gostava disso.

Pergunta - No ano anterior a essas expedições o sr. deu aulas na então recém-criada Universidade de São Paulo, integrando a segunda leva de professores estrangeiros. O que significam hoje para o sr. os laços com a Universidade de São Paulo?
Lévi-Strauss -
Sabe, é difícil dizer, porque sentimentos de tipos diferentes se mesclam. Era o tempo de minha juventude e, naturalmente, as pessoas são muito apegadas a seus anos de juventude. Para mim, o Brasil, São Paulo, são completamente indissociáveis de meus anos de juventude, e eu já não saberia separar as coisas. Mas, enfim, eu diria que, para jovens professores, que eram praticamente iniciantes na carreira universitária, era antes de mais nada uma oportunidade extraordinária, era uma experiência única, porque, além de sermos novos na carreira, tínhamos viajado pouquíssimo, por causa dos exames, concursos e coisas desse tipo. De modo que, por meio de São Paulo, por meio do Brasil, era um pouco o mundo inteiro que se revelava, ou pelo menos uma face diferente do mundo. Assim, tudo isso representa um conjunto tão rico, tão farto, que eu não saberia o que destacar.

Pergunta - A idéia de viajar para tão longe era, em si, atraente?
Lévi-Strauss -
Eu tinha vontade de ver o mundo, de ir para bem longe. Já na infância e na adolescência, eu montava várias pequenas expedições no campo francês... Eu queria aventura, onde quer que eu a encontrasse... Naturalmente, quanto mais longe eu fosse, melhor.

Pergunta - Apesar da famosa declaração de "Tristes Trópicos" -"odeio as viagens e os exploradores"-, o sr. gostava, então, de viajar?
Lévi-Strauss -
Ah, sim! Naquela época eu gostava de viajar. É preciso lembrar que "Tristes Trópicos" foi escrito 15 anos depois de minha volta do Brasil, e eu não pensava nas viagens daquela época, mas nas viagens que poderia fazer no momento em que escrevia.

Pergunta - O olhar distanciado que, segundo o sr., caracteriza o antropólogo, é algo que se aprende, que se constrói? É vocação ou treinamento?
Lévi-Strauss -
A expressão é de Hami, que era um grande autor dramático japonês. Ele dizia que, para ser um bom ator, era preciso olhar para si mesmo, o tempo todo, com os olhos afastados do espectador. Acho que o olhar distanciado pode ser aprendido, mas acho também que é algo que se pode possuir desde o nascimento, uma espécie de característica da personalidade de cada um. No meu caso, creio que se trata da segunda hipótese.

Pergunta - Se esse olhar é indispensável para fazer antropologia, é melhor que seja uma vocação?
Lévi-Strauss -
Acho que há muitos modos de ser antropólogo e de tornar-se antropólogo. E há muitas moradas na casa do Senhor. A vocação é um dos modos, há provavelmente outros.

Pergunta - Qual é seu ritmo de trabalho, atualmente?
Lévi-Strauss -
Já não trabalho muito, não haverá mais nenhum livro.

Pergunta - Pena!
Lévi-Strauss -
Não, não é nenhuma pena, porque eles já não seriam bons -supondo que algum dia o tenham sido... Não... Escrevo coisas pequenas, artigos, prefácios.

Pergunta - Então o sr. continua escrevendo...
Lévi-Strauss -
Sim, escrevo e leio... Muito menos...

Pergunta - O que o sr. lê?
Lévi-Strauss -
Ah, leio coisas variadas: aquilo que me mandam, principalmente os livros para os quais devo escrever um prefácio. A Academia Francesa dá prêmios, é preciso ler os livros. De modo que é, em parte, digamos, literatura, e em parte profissional.

Pergunta - O sr. contou, certa vez, que lia regularmente revistas científicas, acompanhando o que se faz nas ciências exatas e biológicas -que, aliás, forneceram imagens muito poderosas à sua obra. O sr. continua lendo essas revistas?
Lévi-Strauss -
Bem, nunca li tanto assim. Sempre me inteirei dessas questões por meio de revistas de vulgarização científica, para grande público. Enfim, continuo lendo regularmente a "Scientific American", a "Recherche". Tento ter uma idéia muito vaga e muito ingênua do que está acontecendo.

Pergunta - Em seu discurso de recepção à Academia Francesa, em 1974, o sr. declarou que a cultura francesa estava abalada, talvez até condenada. O sr. diria o mesmo hoje?
Lévi-Strauss -
Sim, creio que a cultura francesa está muito ameaçada. Continua muito ameaçada.

Pergunta - A ponto de correr o risco de desaparecer?
Lévi-Strauss -
As culturas não desaparecem nunca, elas se misturam com outras e dão origem a uma outra cultura. Mas... bem... Aquela que me formou e que me foi ensinada, na escola e em casa, é uma cultura à qual sou muito apegado, e não posso deixar de me entristecer ao vê-la se perder e se transformar em outra coisa. O que certamente acontecerá. Mas digo a mim mesmo que, felizmente, não estarei mais aqui.

Pergunta - Já em "Raça e História", o sr. alertava para a necessidade de preservar a diversidade das culturas humanas e para a importância do intercâmbio cultural. Posteriormente, demonstrou diversas vezes o temor de que um "excesso de comunicação" pudesse levar a uma homogeneização paralisante. Apesar de tudo, não lhe parece que as culturas humanas têm demonstrado uma grande vitalidade no sentido de criar diferenças?
Lévi-Strauss -
Eu diria que é a única esperança que nos resta, a de que elas saberão refazer diferenças, o que permitirá aos antropólogos existir. Creio que isso acontecerá ou, pelo menos, espero que sim. Este é um período crítico e, sinceramente, espero que não dure. Fissuras haverão de ser reproduzidas... Naturalmente, não onde estavam antes, e certamente não onde poderíamos supor que surgissem. De qualquer modo, creio que a humanidade permanecerá diversa, essa é sua única chance.

As conclusões podem parecer pessimistas. Há décadas Lévi-Strauss se mostra preocupado com o caráter demasiado rápido e impositivo daquilo que, ao longo da história da humanidade, fora um saudável e indispensável intercâmbio cultural. Pois a falta de comunicação é tão fatal para as culturas humanas quanto o seu excesso.
Um aparente pessimismo e um altivo distanciamento marcam, aliás, numerosas passagens de sua obra. Várias conclusões de seus livros indicam aquilo que ele mesmo chamou de sua "moral profunda": nada é, tudo passa e desaparece. "O mundo começou sem o homem e acabará sem ele. As instituições, hábitos e costumes que terei passado a vida tratando de inventariar e compreender são uma eflorescência passageira de uma criação que não possui sentido algum, a não ser talvez o de permitir que a humanidade nela desempenhe o seu papel", lê-se nas últimas páginas de "Tristes Trópicos".
Mas suas palavras carregam também a esperança, para a antropologia e, mais ainda, para os humanos, de que esse período crítico pelo qual passamos veja logo o seu fim. A vasta obra de Lévi-Strauss certamente terá contribuído para convencer-nos de que a existência de diferenças culturais é condição do intercâmbio e, este, garantia de preservação da capacidade humana de criação cultural.


Beatriz Perrone-Moisés é professora do departamento de antropologia da USP. Traduziu, de Lévi-Strauss, "O Cru e o Cozido", "A Oleira Ciumenta" (ambos pela Brasiliense), "História de Lince" e "Olhar, Escutar, Ler" (ambos pela Companhia das Letras).


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