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CLAUDE LÉVI-STRAUSS
Para o autor de "Tristes Trópicos", as culturas não desaparecem, mas
se misturam umas às outras
A diversidade humana
Éric Brochu
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O antropólogo Claude Lévi-Strauss no Laboratório de Antropologia Social do Collège de France, em Paris |
BEATRIZ PERRONE-MOISÉS
especial para a Folha
Claude Lévi-Strauss declarou, no
início deste ano, a um grupo reunido em sua homenagem no Collège
de France, sentir-se como um holograma fragmentado. Um holograma se forma na coincidência
entre uma imagem proveniente de
um objeto real e outra, virtual. O
"holograma Lévi-Strauss", segundo ele próprio, não está mais inteiro, porém, "como em todo holograma, cada parte restante conserva uma imagem e uma representação do todo". Um "eu" virtual teria
ainda projetos e seria capaz de
"conservar viva uma idéia do todo". Ao eu real, "extremamente
velho", reduzido a apenas uma
parte do que fora o homem -como acontece, dizia Montaigne,
com todos os que envelhecem-,
restaria esperar pelo fim. Lévi-Strauss disse ainda que vive atualmente nesse "diálogo estranhíssimo" entre seus dois eus.
Aos presentes na ocasião, ali reunidos para entregar-lhe um número especial da revista "Critique" a
ele dedicado, agradeceu, finalmente, pela rara possibilidade de fazer
cessar o diálogo, "permitindo a esses dois eus coincidir novamente"
("Le Monde", 29/01/99).
A imagem da (re)composição do
holograma descreve bem a sensação de entrevistar Lévi-Strauss.
Para quem entra no espaço de sua
sala no Laboratório de Antropologia Social do Collège de France, em
Paris, trata-se de ver tomar corpo a
imagem de um dos maiores pensadores do século 20. O corpo que se
vê é o de um homem velho, mas
surpreendentemente saudável para a idade que tem -quando o entrevistei, estava a alguns dias de
completar 90 anos.
Extremamente delicado, cortês e
acessível, Lévi-Strauss é um ancião
daqueles cuja sólida sabedoria torna, paradoxalmente, mais leve.
Um ancião que fala do presente
com desprendimento, como se já
não fosse deste mundo e estivesse
de fato apenas à espera de sua hora. Ele mesmo contou, certa vez,
que durante sua visita ao Japão, há
alguns anos, levou seus acompanhantes a comentarem que só se
interessava por coisas que não
existiam mais. O mesmo interesse
pelo Oriente e pelas coisas que já
não são, além da cortesia, estavam
na sugestão, feita após a entrevista,
de que eu visitasse a exposição de
raros e antigos objetos chineses
que se encontrava então no Grand
Palais.
Afastado do presente, Lévi-Strauss fala do passado com carinho e emoção. Conta as saudades
da juventude, o espírito curioso
que o trouxe ao Brasil, com a mesma voz trêmula e bela e a mesma
segurança no raciocínio e precisão
nos termos com que expressa a
tristeza de ver desaparecer a França em que cresceu e a esperança de
que as diferenças humanas permaneçam.
As palavras a seguir são parte de
uma entrevista, até agora inédita,
realizada em novembro de 1998,
por ocasião de um seminário dedicado à obra de Lévi-Strauss, promovido pelo departamento de antropologia da USP. A entrevista será publicada, na íntegra, na "Revista de Antropologia" (previsto para
agosto), em número especial dedicado a Lévi-Strauss, contendo as
comunicações apresentadas no seminário "Lévi-Strauss e os 90". As
palavras que aparecem em itálico
são aquelas que Lévi-Strauss disse
em português, com muita clareza e
naturalidade, aliás.
Pergunta - No início do "Prólogo"
a "Saudades do Brasil" o sr. se refere a uma memória olfativa das expedições pelo interior. De que outros odores o sr. se lembra?
Claude Lévi-Strauss - Como se
sabe, na época em que fui para o
Brasil (1935), viajávamos de navio,
não havia aviões, e os navios eram
também cargueiros e faziam muitas escalas (o navio partiu de Marselha e fez escala em Barcelona,
Cádiz, Argel, Casablanca e Dakar
antes de aportar em Santos). Nunca me esquecerei de que, ao chegar
-estávamos em alto-mar havia 19
dias, acho-, a primeira percepção
que tivemos do Novo Mundo
-ainda não se podia ver a costa-
foi um cheiro. Um cheiro difícil de
descrever, porque as associações
são fáceis demais: cheiro de tabaco, cheiro de pimenta... Enfim, tudo isso está ligado ao Novo Mundo, não sei se é exatamente isso.
Mas é sem dúvida uma das dimensões da natureza brasileira, que
não é apenas visual, ou tátil, é também olfativa.
Pergunta - E quais seriam esses
"odores do Brasil"?
Lévi-Strauss - Há muitos outros
odores, que emergem ao acaso.
Lembro, por exemplo, que, depois
dos Nambiquara, estávamos indo
na direção do Madeira -e ainda
não era a floresta amazônica, era
mais o campo, uma espécie de floresta seca- e de repente, montado
no cavalo, vi no solo um campo de
abacaxis selvagens. Bastava inclinar-se bem baixo, sem desmontar,
para arrancar os frutos e comê-los.
É uma das sensações gustativas e
olfativas que ficaram, porque não
era como o abacaxi que conhecemos, era um abacaxi com um cheiro de framboesa absolutamente
extraordinário. Há muitos e muitos outros cheiros, mencionei esse
apenas como um exemplo... há
ainda o cheiro do fumo, cheiro de
fumo de rolo em toda parte. Aliás,
era o que eu fumava, em folhas de
milho, que davam ao tabaco um
sabor e um cheiro muito, muito
particulares, que também ficou.
Há também a pinga...
Pergunta - O sr. gostava de pinga?
Lévi-Strauss - Ah, sim, gostava
muito! E me lembro também da fabricação, uma vez por semana, da
rapadura, nas fazendas do interior, para o consumo dos peões, de
seus filhos e de suas famílias; isso
também tinha um cheiro e um gosto muito especiais.
Pergunta - Durante as expedições, o sr. comia como os brasileiros, como a população regional?
Lévi-Strauss - Na verdade, não
havia população regional... Enfim,
havia, durante algum tempo, e, depois, mais ninguém. Tínhamos feito grandes provisões: arroz e feijão, claro, e algo que chamavam de
bolachas, que também constituem
uma lembrança bem clara... Ficavam duras como pedra... E também caçávamos...
Pergunta - O sr. era bom caçador?
Lévi-Strauss - Tenho vergonha de
dizer, porque atualmente sou um
opositor radical da caça, mas não
era um mau caçador... E, o que é
ainda mais lamentável, eu gostava
disso.
Pergunta - No ano anterior a essas expedições o sr. deu aulas na
então recém-criada Universidade
de São Paulo, integrando a segunda leva de professores estrangeiros. O que significam hoje para o
sr. os laços com a Universidade de
São Paulo?
Lévi-Strauss - Sabe, é difícil dizer,
porque sentimentos de tipos diferentes se mesclam. Era o tempo de
minha juventude e, naturalmente,
as pessoas são muito apegadas a
seus anos de juventude. Para mim,
o Brasil, São Paulo, são completamente indissociáveis de meus anos
de juventude, e eu já não saberia
separar as coisas. Mas, enfim, eu
diria que, para jovens professores,
que eram praticamente iniciantes
na carreira universitária, era antes
de mais nada uma oportunidade
extraordinária, era uma experiência única, porque, além de sermos
novos na carreira, tínhamos viajado pouquíssimo, por causa dos
exames, concursos e coisas desse
tipo. De modo que, por meio de
São Paulo, por meio do Brasil, era
um pouco o mundo inteiro que se
revelava, ou pelo menos uma face
diferente do mundo. Assim, tudo
isso representa um conjunto tão rico, tão farto, que eu não saberia o
que destacar.
Pergunta - A idéia de viajar para
tão longe era, em si, atraente?
Lévi-Strauss - Eu tinha vontade
de ver o mundo, de ir para bem
longe. Já na infância e na adolescência, eu montava várias pequenas expedições no campo francês...
Eu queria aventura, onde quer que
eu a encontrasse... Naturalmente,
quanto mais longe eu fosse, melhor.
Pergunta - Apesar da famosa declaração de "Tristes Trópicos"
-"odeio as viagens e os exploradores"-, o sr. gostava, então, de
viajar?
Lévi-Strauss - Ah, sim! Naquela
época eu gostava de viajar. É preciso lembrar que "Tristes Trópicos"
foi escrito 15 anos depois de minha
volta do Brasil, e eu não pensava
nas viagens daquela época, mas
nas viagens que poderia fazer no
momento em que escrevia.
Pergunta - O olhar distanciado
que, segundo o sr., caracteriza o
antropólogo, é algo que se aprende, que se constrói? É vocação ou
treinamento?
Lévi-Strauss - A expressão é de
Hami, que era um grande autor
dramático japonês. Ele dizia que,
para ser um bom ator, era preciso
olhar para si mesmo, o tempo todo, com os olhos afastados do espectador. Acho que o olhar distanciado pode ser aprendido, mas
acho também que é algo que se pode possuir desde o nascimento,
uma espécie de característica da
personalidade de cada um. No
meu caso, creio que se trata da segunda hipótese.
Pergunta - Se esse olhar é indispensável para fazer antropologia,
é melhor que seja uma vocação?
Lévi-Strauss - Acho que há muitos modos de ser antropólogo e de
tornar-se antropólogo. E há muitas moradas na casa do Senhor. A
vocação é um dos modos, há provavelmente outros.
Pergunta - Qual é seu ritmo de
trabalho, atualmente?
Lévi-Strauss - Já não trabalho
muito, não haverá mais nenhum
livro.
Pergunta - Pena!
Lévi-Strauss - Não, não é nenhuma pena, porque eles já não seriam
bons -supondo que algum dia o
tenham sido... Não... Escrevo coisas pequenas, artigos, prefácios.
Pergunta - Então o sr. continua
escrevendo...
Lévi-Strauss - Sim, escrevo e
leio... Muito menos...
Pergunta - O que o sr. lê?
Lévi-Strauss - Ah, leio coisas variadas: aquilo que me mandam,
principalmente os livros para os
quais devo escrever um prefácio. A
Academia Francesa dá prêmios, é
preciso ler os livros. De modo que
é, em parte, digamos, literatura, e
em parte profissional.
Pergunta - O sr. contou, certa
vez, que lia regularmente revistas
científicas, acompanhando o que
se faz nas ciências exatas e biológicas -que, aliás, forneceram imagens muito poderosas à sua obra.
O sr. continua lendo essas revistas?
Lévi-Strauss - Bem, nunca li tanto
assim. Sempre me inteirei dessas
questões por meio de revistas de
vulgarização científica, para grande público. Enfim, continuo lendo
regularmente a "Scientific American", a "Recherche". Tento ter
uma idéia muito vaga e muito ingênua do que está acontecendo.
Pergunta - Em seu discurso de recepção à Academia Francesa, em
1974, o sr. declarou que a cultura
francesa estava abalada, talvez até
condenada. O sr. diria o mesmo
hoje?
Lévi-Strauss - Sim, creio que a
cultura francesa está muito ameaçada. Continua muito ameaçada.
Pergunta - A ponto de correr o
risco de desaparecer?
Lévi-Strauss - As culturas não desaparecem nunca, elas se misturam com outras e dão origem a
uma outra cultura. Mas... bem...
Aquela que me formou e que me
foi ensinada, na escola e em casa, é
uma cultura à qual sou muito apegado, e não posso deixar de me entristecer ao vê-la se perder e se
transformar em outra coisa. O que
certamente acontecerá. Mas digo a
mim mesmo que, felizmente, não
estarei mais aqui.
Pergunta - Já em "Raça e História", o sr. alertava para a necessidade de preservar a diversidade
das culturas humanas e para a importância do intercâmbio cultural.
Posteriormente, demonstrou diversas vezes o temor de que um
"excesso de comunicação" pudesse levar a uma homogeneização
paralisante. Apesar de tudo, não
lhe parece que as culturas humanas têm demonstrado uma grande
vitalidade no sentido de criar diferenças?
Lévi-Strauss - Eu diria que é a
única esperança que nos resta, a de
que elas saberão refazer diferenças, o que permitirá aos antropólogos existir. Creio que isso acontecerá ou, pelo menos, espero que
sim. Este é um período crítico e,
sinceramente, espero que não dure. Fissuras haverão de ser reproduzidas... Naturalmente, não onde
estavam antes, e certamente não
onde poderíamos supor que surgissem. De qualquer modo, creio
que a humanidade permanecerá
diversa, essa é sua única chance.
As conclusões podem parecer pessimistas. Há décadas Lévi-Strauss
se mostra preocupado com o caráter demasiado rápido e impositivo
daquilo que, ao longo da história
da humanidade, fora um saudável
e indispensável intercâmbio cultural. Pois a falta de comunicação é
tão fatal para as culturas humanas
quanto o seu excesso.
Um aparente pessimismo e um
altivo distanciamento marcam,
aliás, numerosas passagens de sua
obra. Várias conclusões de seus livros indicam aquilo que ele mesmo chamou de sua "moral profunda": nada é, tudo passa e desaparece. "O mundo começou sem o homem e acabará sem ele. As instituições, hábitos e costumes que terei
passado a vida tratando de inventariar e compreender são uma eflorescência passageira de uma criação que não possui sentido algum,
a não ser talvez o de permitir que a
humanidade nela desempenhe o
seu papel", lê-se nas últimas páginas de "Tristes Trópicos".
Mas suas palavras carregam também a esperança, para a antropologia e, mais ainda, para os humanos, de que esse período crítico pelo qual passamos veja logo o seu
fim. A vasta obra de Lévi-Strauss
certamente terá contribuído para
convencer-nos de que a existência
de diferenças culturais é condição
do intercâmbio e, este, garantia de
preservação da capacidade humana de criação cultural.
Beatriz Perrone-Moisés é professora do departamento de antropologia da USP. Traduziu, de
Lévi-Strauss, "O Cru e o Cozido", "A Oleira Ciumenta" (ambos pela Brasiliense), "História de
Lince" e "Olhar, Escutar, Ler" (ambos pela Companhia das Letras).
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