São Paulo, Domingo, 27 de Junho de 1999
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POLÊMICA

Elogio da loucura

MARIA SYLVIA CARVALHO FRANCO
especial para a Folha

É patético que um títere do governo que reduziu a aplicação de recursos em ciência e tecnologia ao nível dos países mais atrasados do mundo, que arruinou empresas nacionais e concedeu bens públicos, em processos nada transparentes, a controladores estrangeiros -isto é, um governo que realiza meticulosamente o programa de d. Maria, a Louca, freando na colônia o desenvolvimento das coisas e do espírito- tente agredir quem se insurge contra esse desvario.
O sr. José Aníbal quis jogar com meu nome, aproximando-o da rainha portuguesa, mas transtornou o lance: o símile e o epíteto cabem a ele, não a mim. Ademais, não viu que sou também Sylvia, nome antigo, ligado à floresta, ao cerne da árvore, expressão de solidez e resistência, de obstáculo, ao mesmo tempo conotando a vida, uma potência com algo de rebelde, perigoso e forte, refratário ao domesticado, matéria e instrumento cortante: o bom machado de madeira vale tanto ou mais que o de metal. Esse inconformismo me ajudou, sempre, a enfrentar o estereotipado e pérfido.
Loucura é palavra polissêmica, indo desde a rara capacidade inventiva e poética, a mania dos antigos, passando pela sátira humanista contra a tolice do prosaísmo vil, pelo delírio criador do sonho romântico, até sua denotação vulgar, a única alcançada por Aníbal. Desses registros, um dos mais importantes para os nossos tempos é o recuperado por Erasmo, que recolhe o sentido de "moría", a sandice de quem pretende governar "desconhecendo os números em geral, incapaz de distinguir o dia da noite, ignorante do circuito do Sol, da Lua, das estrelas" (Platão, "Leis"). Matemática, geometria, astronomia: ciências propedêuticas de todas as artes, inclusive da mais alta, a do governo.
Não é de ontem que teoria e prática se enlaçam, mas minha ênfase nesse "fértil e feliz casamento" (Francis Bacon) foi treslida por Aníbal como seu oposto, a separação entre ambas. Estamos em pleno domínio da crítica erasmiana ao universo revirado: em sua diatribe, Loucura ilumina o que há de racional num mundo em que "a máscara vale mais que a verdade, a sombra, que a coisa, o simulado, que o natural, o fluido, que o sólido, o momentâneo, que o eterno. Com o tempo as opiniões ao revés geram uma terminologia às avessas, chamando-se humilde o excelso, doce o amargo, comum o precioso, chama-se de morte a vida" ("Sileni Alcibiadis"). Nunca será demais repisar tal alerta, nestes tempos invertidos: bem nesse clima, as mães da Praça de Maio, que lutavam por seus filhos e pela democracia, foram chamadas pelos Aníbal argentinos de loucas.
O governo atual alega "racionalizar" a administração; na verdade, o alvo é fugir às obrigações democráticas, maximizando os recursos para o poder pessoal dos governantes, para as finanças e negócios como as empreiteiras. Uma simbiose os vincula: nessa via de mão dupla, o partido do sr. Aníbal muito recebeu em suas nutridas campanhas (Folha, 6/6/99, "Eleições S.A."). Não admira que ele tanto queira ser democrático subtraindo os justos direitos "dos outros". Trinta anos de trabalho científico exclusivo e exigente são incomparáveis com as especialíssimas aposentadorias que auferiam os srs. parlamentares. Grande hipocrisia comanda o interesse igualizador de Aníbal pelos aposentados: por que votou pela contribuição dos inativos?
Diante do uso predatório do Estado, impõe-se aos universitários tomar posição contra o poder político, ao qual ligam-se, por múltiplas mediações, conhecimento e prática. Esse nexo foi posto por Bacon, sendo esse pensador o último que se poderia representar em torre de marfim. Continuam decisivas as suas reflexões sobre as bases necessárias ao progresso das ciências, entre as quais avulta a figura do professor: "Reprovo o ínfimo estipêndio atribuído aos preleitores em artes e profissões. Pois é necessário, para o avanço das ciências, que sejam excelentes e versados, que sua obra não se faça para uso transitório, mas para manter a sucessão do conhecimento através dos séculos. E isso não acontecerá, a menos que sua condição e recompensa sejam tais que (...) possam ficar, nessa arte, plenamente satisfeitos (...); os preleitores em ciências e artes têm a custódia de todo o estoque de conhecimentos que nutre a parte ativa e militante da ciência".
Entre nós, o trabalho acadêmico foi aviltado, as instituições produtoras do saber, degradadas, a formação do pessoal docente, preterida, a dos alunos, abreviada. A baixa qualidade do ensino é correlata ao desrespeito pelas pessoas nele envolvidas -professores e alunos-, que devem tornar-se meros reprodutores de opiniões, com frutos rapidamente comercializados. A qualidade do saber é, na raiz, de ordem ética e civil: sem dar valor a quem gera, transmite e recebe a cultura, não há esperanças de produção científica e técnica importante e útil. Ironicamente, num horizonte mesquinho e inerte, nem mesmo os circuitos do mercado, fim último dessa ideologia, podem ser satisfeitos.
O critério decisivo no programa sobre o avanço do conhecimento, definido por Bacon, não é exterior à ciência, mas determinado por sentidos inerentes a ela. Seu próprio núcleo se opõe a quem julga "o estudo da filosofia e as contemplações universais como inúteis e ociosas, desatentos ao fato que daí brota todo o suco, toda a força que se distribui às profissões e às artes". Dentre os "desatentos", que negligenciam a pesquisa, Bacon salienta o Estado que, nem mesmo para suas próprias tarefas, pode contar com quadros competentes: de seu descaso resulta que os governantes, precisando escolher ministros capazes, encontram ao seu redor apenas "um deserto de homens". Estivesse ele escrevendo nos dias de hoje e não seria mais feliz na maldição que lança sobre os poderes públicos: entre nós, nos postos mais elevados na República, não se vislumbra um único estadista empenhado na independência do país na área científica e técnica.
Esses personagens incluem-se, hoje, na desolada carência de engenhos exposta por Bacon, nutridos apenas por uma autoritária frente única ideológica. Da crítica a tais procedimentos desentranha-se a sua repulsa da popularidade como critério do saber:
"Toda a escravidão científica nada mais é que o efeito da audácia de um punhado de homens e da inércia de outros (...); cedo ou tarde eleva-se um engenho mais astucioso, que sabe tornar-se agradável, fazer uma reputação por meios abreviados, por simplificações que, em aparência, formam um corpo de arte (...). Se alguém se deixar atrair pelo consentimento unânime feito pelo tempo, saiba que nada é mais enganador e mais frágil do que essa razão sobre a qual se apóia".
Ou a universidade mantém-se alerta contra as imposições de grupos com reputações científicas pobres, como os que dirigem a educação no Brasil, ou dobra-se e destrói sua própria substância. Nem fuga do mundo nem reacionarismo, apenas requisitos para um labor sério, duradouro, livre e, por isso mesmo, útil: o patrimônio assim gerado é coletivo no mais amplo espectro e sua aquisição é lenta, a formação do cientista, longa, a disciplina, difícil. O projeto Genoma exigiu e exige muitos anos de preparo dos quadros, ao contrário do que supõe Aníbal em sua empiria de formiga (diria Bacon).
O quanto a imediatez é inimiga do pensar e agir, nos dá testemunho uma bela carta de Maquiavel a Francesco Vettori, na qual diz: "Ao cair da noite, volto para casa e entro em meu escritório; desde seu limiar retiro as vestes cotidianas cheias de vileza e lama e coloco roupas de aparato reais e pontifícias; assim vestido decentemente, entro na corte antiga dos homens antigos, onde, recebido por eles amorosamente, sacio-me do alimento que é por excelência meu e para o qual nasci; lá não me envergonho de lhes falar, de interrogá-los pelas razões de seus atos; eles, em virtude de sua humanidade, respondem-me; e por quatro horas não sinto nenhum enfado, não temo a pobreza, a morte não me assusta. E como Dante fala que a ciência não se faz sem reter o que se compreende, anotei aquilo que, pela sua conversação, julguei capital e compus um opúsculo, "De Principatibus" (...)." Maquiavel em torre de marfim?
Num universo definido pela ciência e pela técnica, dominado pelos centros hegemônicos do processo eufemisticamente dito "globalização", só haverá esperança para os que estiverem à altura desse complexo poderosíssimo. O trabalho da teoria, o acúmulo e uso judicioso do conhecimento, a prática desvinculada da imediatez são os instrumentos capazes de enfrentar a violência dos interesses lucrativos acoplados à cobiça dos poderes públicos. Enquanto isso, nossos governantes fecham o campo do saber, transpondo para nossa época o programa colonial de d. Maria, a Louca.
Aníbal me aponta como exemplo de corporativismo reacionário. Quem mais corporativista, no pior sentido, que o grupo alçado ao poder graças a fortíssimo "esprit de corps" que postou os "compagnons" nas posições-chave? Muitos deles -todos progressistas, alardeando lutar contra a ditadura- cuidaram atentamente, no Chile, de suas carreiras e ligações internacionais, ou trataram "bel et bien" de suas vidinhas em Paris. Passaram longe deles as vigílias para que colegas e estudantes não fossem presos sem deixar rastros, nunca deram aulas com o Dops presente, ou acudiram quem sofria nas prisões, ou tiveram de recolher e valorizar o que deles restava de dignidade, inteligência e esperança de trabalho, nada sabem do esforço diuturno para manter aberto um espaço de pensamento e crítica.
Voltando, não tiveram pejo em reunir-se ao que de mais retrógrado existe neste país, "flexibilizando" direitos, escondendo os escândalos que têm varrido o nosso cotidiano político. Quem gerou miséria? Quem perdeu os brios da liberdade? A quem falta consciência fraterna e igualitária? Reacionário quem, cara pálida?
Mário Covas anuncia programas sociais e alianças à esquerda. Mas, com Aníbal, o governador perde eleitores, eu entre muitos outros.


Maria Sylvia Carvalho Franco é professora titular de filosofia da Universidade Estadual de Campinas e autora de "Homens Livres na Ordem Escravocrata" (ed. Unesp).


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