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POLÊMICA
Elogio da loucura
MARIA SYLVIA CARVALHO FRANCO
especial para a Folha
É patético que um títere do
governo que reduziu a aplicação
de recursos em ciência e tecnologia ao nível dos países mais
atrasados do mundo, que arruinou empresas nacionais e concedeu bens públicos, em processos nada transparentes, a controladores estrangeiros -isto é,
um governo que realiza meticulosamente o programa de d. Maria, a Louca, freando na colônia
o desenvolvimento das coisas e
do espírito- tente agredir
quem se insurge contra esse
desvario.
O sr. José Aníbal quis jogar
com meu nome, aproximando-o da rainha portuguesa, mas
transtornou o lance: o símile e o
epíteto cabem a ele, não a mim.
Ademais, não viu que sou também Sylvia, nome antigo, ligado
à floresta, ao cerne da árvore,
expressão de solidez e resistência, de obstáculo, ao mesmo
tempo conotando a vida, uma
potência com algo de rebelde,
perigoso e forte, refratário ao
domesticado, matéria e instrumento cortante: o bom machado de madeira vale tanto ou
mais que o de metal. Esse inconformismo me ajudou, sempre, a
enfrentar o estereotipado e pérfido.
Loucura é palavra polissêmica, indo desde a rara capacidade
inventiva e poética, a mania dos
antigos, passando pela sátira
humanista contra a tolice do
prosaísmo vil, pelo delírio criador do sonho romântico, até sua
denotação vulgar, a única alcançada por Aníbal. Desses registros, um dos mais importantes
para os nossos tempos é o recuperado por Erasmo, que recolhe
o sentido de "moría", a sandice
de quem pretende governar
"desconhecendo os números
em geral, incapaz de distinguir o
dia da noite, ignorante do circuito do Sol, da Lua, das estrelas" (Platão, "Leis"). Matemática, geometria, astronomia: ciências propedêuticas de todas as
artes, inclusive da mais alta, a do
governo.
Não é de ontem que teoria e
prática se enlaçam, mas minha
ênfase nesse "fértil e feliz casamento" (Francis Bacon) foi treslida por Aníbal como seu oposto, a separação entre ambas. Estamos em pleno domínio da crítica erasmiana ao universo revirado: em sua diatribe, Loucura
ilumina o que há de racional
num mundo em que "a máscara
vale mais que a verdade, a sombra, que a coisa, o simulado, que
o natural, o fluido, que o sólido,
o momentâneo, que o eterno.
Com o tempo as opiniões ao revés geram uma terminologia às
avessas, chamando-se humilde
o excelso, doce o amargo, comum o precioso, chama-se de
morte a vida" ("Sileni Alcibiadis"). Nunca será demais repisar tal alerta, nestes tempos invertidos: bem nesse clima, as
mães da Praça de Maio, que lutavam por seus filhos e pela democracia, foram chamadas pelos Aníbal argentinos de loucas.
O governo atual alega "racionalizar" a administração; na
verdade, o alvo é fugir às obrigações democráticas, maximizando os recursos para o poder pessoal dos governantes, para as finanças e negócios como as empreiteiras. Uma simbiose os vincula: nessa via de mão dupla, o
partido do sr. Aníbal muito recebeu em suas nutridas campanhas (Folha, 6/6/99, "Eleições
S.A."). Não admira que ele tanto
queira ser democrático subtraindo os justos direitos "dos
outros". Trinta anos de trabalho
científico exclusivo e exigente
são incomparáveis com as especialíssimas aposentadorias que
auferiam os srs. parlamentares.
Grande hipocrisia comanda o
interesse igualizador de Aníbal
pelos aposentados: por que votou pela contribuição dos inativos?
Diante do uso predatório do
Estado, impõe-se aos universitários tomar posição contra o
poder político, ao qual ligam-se,
por múltiplas mediações, conhecimento e prática. Esse nexo
foi posto por Bacon, sendo esse
pensador o último que se poderia representar em torre de marfim. Continuam decisivas as
suas reflexões sobre as bases necessárias ao progresso das ciências, entre as quais avulta a figura do professor: "Reprovo o ínfimo estipêndio atribuído aos
preleitores em artes e profissões. Pois é necessário, para o
avanço das ciências, que sejam
excelentes e versados, que sua
obra não se faça para uso transitório, mas para manter a sucessão do conhecimento através
dos séculos. E isso não acontecerá, a menos que sua condição
e recompensa sejam tais que (...)
possam ficar, nessa arte, plenamente satisfeitos (...); os preleitores em ciências e artes têm a
custódia de todo o estoque de
conhecimentos que nutre a parte ativa e militante da ciência".
Entre nós, o trabalho acadêmico foi aviltado, as instituições
produtoras do saber, degradadas, a formação do pessoal docente, preterida, a dos alunos,
abreviada. A baixa qualidade do
ensino é correlata ao desrespeito pelas pessoas nele envolvidas
-professores e alunos-, que
devem tornar-se meros reprodutores de opiniões, com frutos
rapidamente comercializados.
A qualidade do saber é, na raiz,
de ordem ética e civil: sem dar
valor a quem gera, transmite e
recebe a cultura, não há esperanças de produção científica e
técnica importante e útil. Ironicamente, num horizonte mesquinho e inerte, nem mesmo os
circuitos do mercado, fim último dessa ideologia, podem ser
satisfeitos.
O critério decisivo no programa sobre o avanço do conhecimento, definido por Bacon, não
é exterior à ciência, mas determinado por sentidos inerentes a
ela. Seu próprio núcleo se opõe a
quem julga "o estudo da filosofia e as contemplações universais como inúteis e ociosas, desatentos ao fato que daí brota
todo o suco, toda a força que se
distribui às profissões e às artes". Dentre os "desatentos",
que negligenciam a pesquisa,
Bacon salienta o Estado que,
nem mesmo para suas próprias
tarefas, pode contar com quadros competentes: de seu descaso resulta que os governantes,
precisando escolher ministros
capazes, encontram ao seu redor apenas "um deserto de homens". Estivesse ele escrevendo
nos dias de hoje e não seria mais
feliz na maldição que lança sobre os poderes públicos: entre
nós, nos postos mais elevados
na República, não se vislumbra
um único estadista empenhado
na independência do país na
área científica e técnica.
Esses personagens incluem-se, hoje, na desolada carência de
engenhos exposta por Bacon,
nutridos apenas por uma autoritária frente única ideológica.
Da crítica a tais procedimentos
desentranha-se a sua repulsa da
popularidade como critério do
saber:
"Toda a escravidão científica
nada mais é que o efeito da audácia de um punhado de homens e da inércia de outros (...);
cedo ou tarde eleva-se um engenho mais astucioso, que sabe
tornar-se agradável, fazer uma
reputação por meios abreviados, por simplificações que, em
aparência, formam um corpo de
arte (...). Se alguém se deixar
atrair pelo consentimento unânime feito pelo tempo, saiba que
nada é mais enganador e mais
frágil do que essa razão sobre a
qual se apóia".
Ou a universidade mantém-se
alerta contra as imposições de
grupos com reputações científicas pobres, como os que dirigem a educação no Brasil, ou
dobra-se e destrói sua própria
substância. Nem fuga do mundo nem reacionarismo, apenas
requisitos para um labor sério,
duradouro, livre e, por isso mesmo, útil: o patrimônio assim gerado é coletivo no mais amplo
espectro e sua aquisição é lenta,
a formação do cientista, longa, a
disciplina, difícil. O projeto Genoma exigiu e exige muitos anos
de preparo dos quadros, ao contrário do que supõe Aníbal em
sua empiria de formiga (diria
Bacon).
O quanto a imediatez é inimiga do pensar e agir, nos dá testemunho uma bela carta de Maquiavel a Francesco Vettori, na
qual diz: "Ao cair da noite, volto
para casa e entro em meu escritório; desde seu limiar retiro as
vestes cotidianas cheias de vileza e lama e coloco roupas de
aparato reais e pontifícias; assim vestido decentemente, entro na corte antiga dos homens
antigos, onde, recebido por eles
amorosamente, sacio-me do alimento que é por excelência meu
e para o qual nasci; lá não me
envergonho de lhes falar, de interrogá-los pelas razões de seus
atos; eles, em virtude de sua humanidade, respondem-me; e
por quatro horas não sinto nenhum enfado, não temo a pobreza, a morte não me assusta. E
como Dante fala que a ciência
não se faz sem reter o que se
compreende, anotei aquilo que,
pela sua conversação, julguei
capital e compus um opúsculo,
"De Principatibus" (...)." Maquiavel em torre de marfim?
Num universo definido pela
ciência e pela técnica, dominado
pelos centros hegemônicos do
processo eufemisticamente dito
"globalização", só haverá esperança para os que estiverem à altura desse complexo poderosíssimo. O trabalho da teoria, o
acúmulo e uso judicioso do conhecimento, a prática desvinculada da imediatez são os instrumentos capazes de enfrentar a
violência dos interesses lucrativos acoplados à cobiça dos poderes públicos. Enquanto isso,
nossos governantes fecham o
campo do saber, transpondo
para nossa época o programa
colonial de d. Maria, a Louca.
Aníbal me aponta como
exemplo de corporativismo reacionário. Quem mais corporativista, no pior sentido, que o grupo alçado ao poder graças a fortíssimo "esprit de corps" que
postou os "compagnons" nas
posições-chave? Muitos deles
-todos progressistas, alardeando lutar contra a ditadura- cuidaram atentamente, no
Chile, de suas carreiras e ligações internacionais, ou trataram "bel et bien" de suas vidinhas em Paris. Passaram longe
deles as vigílias para que colegas
e estudantes não fossem presos
sem deixar rastros, nunca deram aulas com o Dops presente,
ou acudiram quem sofria nas
prisões, ou tiveram de recolher e
valorizar o que deles restava de
dignidade, inteligência e esperança de trabalho, nada sabem
do esforço diuturno para manter aberto um espaço de pensamento e crítica.
Voltando, não tiveram pejo
em reunir-se ao que de mais retrógrado existe neste país, "flexibilizando" direitos, escondendo os escândalos que têm varrido o nosso cotidiano político.
Quem gerou miséria? Quem
perdeu os brios da liberdade? A
quem falta consciência fraterna
e igualitária? Reacionário quem,
cara pálida?
Mário Covas anuncia programas sociais e alianças à esquerda. Mas, com Aníbal, o governador perde eleitores, eu entre
muitos outros.
Maria Sylvia Carvalho Franco é professora
titular de filosofia da Universidade Estadual
de Campinas e autora de "Homens Livres na
Ordem Escravocrata" (ed. Unesp).
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