São Paulo, Domingo, 27 de Junho de 1999
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"Livro de Ruth" reúne toda a poesia de Ives Gandra Martins
Jogo autêntico dos sentimentos

SAULO RAMOS
especial para a Folha

Era um tempo, e já faz muito, muito tempo, em que não havia televisão e as pessoas se reuniam à noite e conversavam, a família se conhecia, as noites enluaradas eram temas de poesia, porque os namorados gostavam, na verdade, da noite escura, dos cantos escondidos, sem ameaças e sobressaltos a não ser as batidas mais fortes dos corações que se pesquisavam, entre pecados leves, um tanto tímidos, e deslumbramentos emocionais nas primeiras sensações de que seriam eternos.
Naquele longínquo então, alguns poetas promoviam noites de poesia, os célebres recitais literários, designação que sempre achei imprópria, mas que hoje seriam, talvez, chamados de show -e continuaria sendo impróprio-, mas atraíam muita gente aos teatros onde existiam, ou aos clubes, ou a improvisados auditórios. Em São Paulo, eram patrocinados por mecenas generosos e, no interior do Estado, por secretarias de cultura das prefeituras municipais, com verbas modestas, mas jamais criticadas mesmo pela oposição mais ferrenha.
Uma dessas trupes era formada por Guilherme de Almeida, Paulo Bonfim, Eurícledes Formiga, Ives Gandra Martins, Pedro Oliveira Ribeiro, Selene de Medeiros e, como penetras, eu e outros. Revesadamente, cada qual entrava no palco e dizia seus versos. O "espetáculo" não tinha direção artística e, conforme o lugar, a gente improvisava um violão ou um pianista para quebrar um pouco o domínio das palavras ritmadas ou fazer o conveniente fundo musical, quando cabível. À saída vendíamos livros autografados. Ganhávamos um dinheirinho, miúdo, mas reconfortante, porque estávamos, em parte, muito pequena, vivendo de poesia, salvo o Guilherme, que já era o potentado da rua Macapá. Vivia de direitos autorais e de jornalismo. Era o único que tinha, em casa, várias marcas de uísque e suportava uma noitada com seus sedentos amigos, todos prontos. Prontos em tudo e para tudo.
Os jograis ainda não existiam e até hoje desconfio que o querido Rui Afonso teve a genial idéia de instituir aquele seu grupo em razão da nossa trupe, ao menos quando ensaiava na casa de Guilherme o coral dos tebanos, na peça "Antígona", traduzida pelo poeta de São Paulo. E ali deve ter ouvido as histórias de nossos recitais.
Essas aventuras nos fizeram amigos e, quando a vida nos apertou em busca de definição, Ives e eu resolvemos estudar direito e transformarmo-nos em advogados. Paulo Bonfim ingressou na faculdade e trancou a matrícula sob não sei qual mágica, mas bem feita, posto que a matrícula está trancada até hoje. Creio que deve ser a mágica das sete chaves.
Guilherme de Almeida, que era formado em direito havia muito tempo, não queria saber da advocacia, apesar de ser filho de um dos grandes causídicos paulistas, dr. Estevão de Almeida, responsável pelo encaminhamento profissional de Vicente Ráo. Não se opôs e nem desdenhou das vontades nossas, de Ives e minha. Pediu apenas que a gente não passasse a escrever difícil, como os complicados hermeneutas das ordenações. E, quando me formei, tramou e conseguiu enfiar-me na equipe de Vicente Ráo, com quem aprendi o direito e a vida dos direitos, descuidando dos hemistíquios, cesuras e rimas.
Na verdade, quando comecei a advogar, tratei de esconder a poesia. Tinha medo de que os clientes desconfiassem do poeta, aos seus olhos incorrigível sonhador, sem senso prático, e que, por isso, se não perdesse a causa, poderia perder o prazo.
Ives Gandra, ao contrário de mim, jamais escondeu a poesia. Transformou-se em grande advogado, em excepcional professor de direito, sem deixar um só instante a produção poética, inclusive sempre publicando suas excelentes criações, não privando as pessoas de participarem desses momentos de revelação. E provou-me que os clientes, por mais pragmáticos que sejam, respeitam o advogado poeta e, sobretudo, o poeta advogado.
Sabem separar as duas vocações e, mais do que isso, descobrem no advogado a maior facilidade para escrever e sustentar, com clareza, as teses de direito, extraindo dos embates humanos a linguagem mais convincente, que o poeta sabe dominar com facilidade incrível, sobretudo quando está obstinado por justiça.
Agora Ives Gandra publicou o "Livro de Ruth", no qual reúne todas as suas poesias anteriores, aliás, com enorme prevalência daquelas inspiradas por sua musa permanente em todos os tempos e fases, salvo nos muitos tempos, e antiquíssimos, quando indagava: "Se estou feliz, por que choro?". Depois, tudo é Ruth, "mãe de meus seis filhos, mulher de meu amor". Logo, preparem-se: o livro é um dilúvio de amor, um tornado de lírica.
Desde a antiga inquietação do decassílabo: "Eu faço versos, eu não sei por quê", nos momentos raros de libertação da forma clássica: "O poeta é o mensageiro da esperança, o poeta deve crer, eu creio", Ives passa por várias fases e domina todas. Tem clara preferência pelo verso clássico e pela rima, mas utiliza com facilidade a forma livre, mais difícil porque superiormente autêntica naquilo que Pessoa chamou de sensacionismo, isto é, a sensação prevalecendo sobre a forma.
Não consigo admitir, em poesia, o maneirismo pedante de discussão sobre "escolas" e, sobretudo, a mania recalcitrante de chamar de modernos, contemporâneos, pós-modernos, estilos ou preferências de agora, mas que irão envelhecer tanto ou mais que o parnasianismo, mesmo porque o agora, na poesia, é o sempre de todos os tempos sem apropriações possíveis. Nem me convence igualmente essa história de concretismo, dadaísmo e outros ismos, transportados para a expressão poética como exigência modal de verdade única, imposta às pessoas, que ficam obrigadas a entender ou não entender, a sentir ou não sentir, sempre por igual e de acordo com os especialistas que os "explicam".
É impossível submeter as maravilhas da vida, mesmo as dolorosas, a simples cenários e decorações da moda. Poesia não requer explicação. É ou não é.
Do repentista verboso e ágil no domínio da forma e das rimas, ao som da viola, ao verso clássico, medido e sonorizado, na estrofe disciplinada e elaborada a cinzel, na quadra, no terceto, no soneto, no haicai ou na libertação total da forma em busca do discurso ou da síntese, no concretismo prostático, apertado e pingado aos poucos, em tudo pode haver beleza, mensagem, revelações de mistérios, integrações íntimas ou universais, abstrações sonorizadas ou concreções coloridas, mas algo que tenha sido profundamente vivido ou imaginado e resultado em beleza para ser lida, ouvida, sentida, adivinhada. Tudo é poesia quando há poesia.
Sob um dos seus não-definitivos heterônimos, Fernando Pessoa escreveu: "De suave e aérea a hora era uma ara onde orar". Jogo de palavras? Sim, mas bonito e sensacionista. É poesia, pois na habilidade do jogo de palavras de semelhança morfológica existe a hipnótica condução sonora à abstração de um nada bonito e gostoso, e, para muitos, uma abstração mística e religiosa.
A poesia de Ives Gandra, agora toda reunida no "Livro de Ruth", não utiliza muito o jogo de palavras, e, sim, palavras para o jogo autêntico de seus sentimentos vivenciados ao longo de sua vida no amor, na fé, na religião, na justiça, no direito e, em cada fase, transcrito em versos na forma mais fiel ao momento revelado. Há muita poesia nesse livro. É a própria vida de Ives, que a viveu assim porque assim tinha que ser.



A OBRA
O Livro de Ruth - Ives Gandra Martins. Ed. Green Forest do Brasil (r. Manuel Dutra, 213, CEP 01328-010, SP, tel. 011/285-1835). 520 págs. R$ 40,00.



José Saulo Pereira Ramos é advogado em São Paulo. Foi consultor-geral da República e ministro da Justiça (governo Sarney).


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