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"Livro de Ruth" reúne toda a poesia de Ives Gandra Martins
Jogo autêntico dos sentimentos
SAULO RAMOS
especial para a Folha
Era um tempo, e já faz muito,
muito tempo, em que não havia televisão e as pessoas se reuniam à
noite e conversavam, a família se
conhecia, as noites enluaradas
eram temas de poesia, porque os
namorados gostavam, na verdade,
da noite escura, dos cantos escondidos, sem ameaças e sobressaltos
a não ser as batidas mais fortes dos
corações que se pesquisavam, entre pecados leves, um tanto tímidos, e deslumbramentos emocionais nas primeiras sensações de
que seriam eternos.
Naquele longínquo então, alguns
poetas promoviam noites de poesia, os célebres recitais literários,
designação que sempre achei imprópria, mas que hoje seriam, talvez, chamados de show -e continuaria sendo impróprio-, mas
atraíam muita gente aos teatros
onde existiam, ou aos clubes, ou a
improvisados auditórios. Em São
Paulo, eram patrocinados por mecenas generosos e, no interior do
Estado, por secretarias de cultura
das prefeituras municipais, com
verbas modestas, mas jamais criticadas mesmo pela oposição mais
ferrenha.
Uma dessas trupes era formada
por Guilherme de Almeida, Paulo
Bonfim, Eurícledes Formiga, Ives
Gandra Martins, Pedro Oliveira
Ribeiro, Selene de Medeiros e, como penetras, eu e outros. Revesadamente, cada qual entrava no palco e dizia seus versos. O "espetáculo" não tinha direção artística e,
conforme o lugar, a gente improvisava um violão ou um pianista para quebrar um pouco o domínio
das palavras ritmadas ou fazer o
conveniente fundo musical, quando cabível. À saída vendíamos livros autografados. Ganhávamos
um dinheirinho, miúdo, mas reconfortante, porque estávamos,
em parte, muito pequena, vivendo
de poesia, salvo o Guilherme, que
já era o potentado da rua Macapá.
Vivia de direitos autorais e de jornalismo. Era o único que tinha, em
casa, várias marcas de uísque e suportava uma noitada com seus sedentos amigos, todos prontos.
Prontos em tudo e para tudo.
Os jograis ainda não existiam e
até hoje desconfio que o querido
Rui Afonso teve a genial idéia de
instituir aquele seu grupo em razão da nossa trupe, ao menos
quando ensaiava na casa de Guilherme o coral dos tebanos, na peça "Antígona", traduzida pelo poeta de São Paulo. E ali deve ter ouvido as histórias de nossos recitais.
Essas aventuras nos fizeram amigos e, quando a vida nos apertou
em busca de definição, Ives e eu resolvemos estudar direito e transformarmo-nos em advogados.
Paulo Bonfim ingressou na faculdade e trancou a matrícula sob não
sei qual mágica, mas bem feita,
posto que a matrícula está trancada até hoje. Creio que deve ser a
mágica das sete chaves.
Guilherme de Almeida, que era
formado em direito havia muito
tempo, não queria saber da advocacia, apesar de ser filho de um dos
grandes causídicos paulistas, dr.
Estevão de Almeida, responsável
pelo encaminhamento profissional de Vicente Ráo. Não se opôs e
nem desdenhou das vontades nossas, de Ives e minha. Pediu apenas
que a gente não passasse a escrever
difícil, como os complicados hermeneutas das ordenações. E,
quando me formei, tramou e conseguiu enfiar-me na equipe de Vicente Ráo, com quem aprendi o direito e a vida dos direitos, descuidando dos hemistíquios, cesuras e
rimas.
Na verdade, quando comecei a
advogar, tratei de esconder a poesia. Tinha medo de que os clientes
desconfiassem do poeta, aos seus
olhos incorrigível sonhador, sem
senso prático, e que, por isso, se
não perdesse a causa, poderia perder o prazo.
Ives Gandra, ao contrário de
mim, jamais escondeu a poesia.
Transformou-se em grande advogado, em excepcional professor de
direito, sem deixar um só instante
a produção poética, inclusive sempre publicando suas excelentes
criações, não privando as pessoas
de participarem desses momentos
de revelação. E provou-me que os
clientes, por mais pragmáticos que
sejam, respeitam o advogado poeta e, sobretudo, o poeta advogado.
Sabem separar as duas vocações
e, mais do que isso, descobrem no
advogado a maior facilidade para
escrever e sustentar, com clareza,
as teses de direito, extraindo dos
embates humanos a linguagem
mais convincente, que o poeta sabe dominar com facilidade incrível, sobretudo quando está obstinado por justiça.
Agora Ives Gandra publicou o
"Livro de Ruth", no qual reúne todas as suas poesias anteriores,
aliás, com enorme prevalência daquelas inspiradas por sua musa
permanente em todos os tempos e
fases, salvo nos muitos tempos, e
antiquíssimos, quando indagava:
"Se estou feliz, por que choro?".
Depois, tudo é Ruth, "mãe de meus
seis filhos, mulher de meu amor".
Logo, preparem-se: o livro é um
dilúvio de amor, um tornado de lírica.
Desde a antiga inquietação do
decassílabo: "Eu faço versos, eu
não sei por quê", nos momentos
raros de libertação da forma clássica: "O poeta é o mensageiro da esperança, o poeta deve crer, eu
creio", Ives passa por várias fases e
domina todas. Tem clara preferência pelo verso clássico e pela rima,
mas utiliza com facilidade a forma
livre, mais difícil porque superiormente autêntica naquilo que Pessoa chamou de sensacionismo, isto
é, a sensação prevalecendo sobre a
forma.
Não consigo admitir, em poesia,
o maneirismo pedante de discussão sobre "escolas" e, sobretudo, a
mania recalcitrante de chamar de
modernos, contemporâneos, pós-modernos, estilos ou preferências
de agora, mas que irão envelhecer
tanto ou mais que o parnasianismo, mesmo porque o agora, na
poesia, é o sempre de todos os tempos sem apropriações possíveis.
Nem me convence igualmente essa
história de concretismo, dadaísmo
e outros ismos, transportados para
a expressão poética como exigência modal de verdade única, imposta às pessoas, que ficam obrigadas a entender ou não entender, a
sentir ou não sentir, sempre por
igual e de acordo com os especialistas que os "explicam".
É impossível submeter as maravilhas da vida, mesmo as dolorosas, a simples cenários e decorações da moda. Poesia não requer
explicação. É ou não é.
Do repentista verboso e ágil no
domínio da forma e das rimas, ao
som da viola, ao verso clássico,
medido e sonorizado, na estrofe
disciplinada e elaborada a cinzel,
na quadra, no terceto, no soneto,
no haicai ou na libertação total da
forma em busca do discurso ou da
síntese, no concretismo prostático,
apertado e pingado aos poucos,
em tudo pode haver beleza, mensagem, revelações de mistérios, integrações íntimas ou universais,
abstrações sonorizadas ou concreções coloridas, mas algo que tenha
sido profundamente vivido ou
imaginado e resultado em beleza
para ser lida, ouvida, sentida, adivinhada. Tudo é poesia quando há
poesia.
Sob um dos seus não-definitivos
heterônimos, Fernando Pessoa escreveu: "De suave e aérea a hora
era uma ara onde orar". Jogo de
palavras? Sim, mas bonito e sensacionista. É poesia, pois na habilidade do jogo de palavras de semelhança morfológica existe a hipnótica condução sonora à abstração
de um nada bonito e gostoso, e, para muitos, uma abstração mística e
religiosa.
A poesia de Ives Gandra, agora
toda reunida no "Livro de Ruth",
não utiliza muito o jogo de palavras, e, sim, palavras para o jogo
autêntico de seus sentimentos vivenciados ao longo de sua vida no
amor, na fé, na religião, na justiça,
no direito e, em cada fase, transcrito em versos na forma mais fiel ao
momento revelado. Há muita poesia nesse livro. É a própria vida de
Ives, que a viveu assim porque assim tinha que ser.
A OBRA
O Livro de Ruth - Ives Gandra
Martins. Ed. Green Forest do Brasil
(r. Manuel Dutra, 213, CEP 01328-010, SP, tel. 011/285-1835). 520
págs. R$ 40,00.
José Saulo Pereira Ramos é advogado em São
Paulo. Foi consultor-geral da República e ministro da Justiça (governo Sarney).
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