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Novo romance de Silviano Santiago acompanha a decadência de uma família
Imaginação do desastre
JOSÉ MARIA CANÇADO
especial para a Folha
Ao contrário da abertura de
Tolstói em "Ana Karenina" -segundo a qual "todas as famílias felizes se parecem, e as infelizes são
infelizes cada uma à sua maneira",
nas novelas de Silviano Santiago as
famílias infelizes o são de uma maneira acabrunhadamente igual. É
como se o princípio da diferenciação e a marca do particular que
agem no chamado romance de decadência familiar -da moscovita
do conde Leon Tolstói à burguesa e
hanseática de Thomas Mann-
não se vissem impelidos a agir da
mesma forma nessa também perfeita novela da decadência que é
"De Cócoras" (como já o era "Uma
História de Família", do mesmo autor).
Como se nelas (e assim
também em
muitos dos
melhores romances pertencentes à família "crônica
da casa assassinada" da literatura
brasileira), o fim e a decadência
confluíssem não para a diferenciação, mas para uma mesma figura
acanhada, o mesmo rosto, a mesma infantilização regressiva e o
mesmo agachamento histórico.
Não é que falte "imaginação do
desastre" a Silviano Santiago e aos
outros escritores dessa família. Silviano Santiago a tem de sobra e sua
índole literária e intelectual é de ir
com ela até o último furo. É que
nas casas assassinadas que há por
aqui (como o casarão do Catete
dessa novela), a situação de pós-tudo própria dos romances nos revela não uma nova identidade entrevista no limite, mas uma rigidez
progressiva e monstruosa de traços. E isso por força do acanhamento do quadro histórico e social
em que aquelas casas surgem, desmoronam, elaboram seu luto e fazem seu inventário. A configuração e o destino do que deixou de
existir são uma questão de futuro.
Assim o Antônio dessa novela,
de cócoras debaixo da mesa de jantar do casarão do Catete onde é velado o corpo da sua mãe -uma
dessas mulheres cujo desconforto
existencial de classe manifesta-se
sob a forma de desmazelo, auto-exílio no quarto de dormir e penhoar escuro diuturnamente usado. Dessa posição Antônio nunca
parece ter saído, tendo a morte da
sua mulher nordestina (capaz pelo
menos de dar
algum contraste à sua vida,
um pouco de
barulho e um
lado definido
na cama de casal) a confirmado medonhamente: sozinho na casa
de Laranjeiras (a novela acompanha também um certo movimento
de regressão do Rio), ele se parece
com um ídolo acocorado, sujo de
fezes, e cada vez mais deleitado
com a imobilidade e o nenhum
contato com o mundo.
Este só lhe chega por meio das visitas repudiadas do irmão mais velho, com a sua barulheira, seu ressentimento social-guanabarino de
todo o tamanho, sua histeria lacerdista aplicada a cada canto do Rio
da década de 90. Esse parece ser o
máximo de mundo público que o
grupo social de Antônio e do seu
irmão ainda dá conta de esboçar.
Tanto melhor que Silviano Santiago faça uma novela completamente não-engalanada. Talvez
porque o mundo de que trata escorre inapelavelmente pelo ralo. O
perfil da sua novela é baixo mesmo, a linguagem antiexpletiva, o
desenho do relato é antilegendário, o teor final do sentido é anticatártico, a contagem dos mortos é
anti-ressurreição. Já é assim em
"Uma História de Família", já o
era, embora num sentido um tanto
experimental, em "Em Liberdade"
(Rocco), é assim nos poemas de
"Cheiro Forte", de 1995 (Rocco).
Não por nada: Silviano Santiago
é um escritor que tem como poucos o sentido de "moralidade da
forma". Mesmo que seja para usar
aquela que parece ser a forma de
menos. Essa moralidade, no caso
do também autor de "Uma Literatura nos Trópicos", é no fundo
uma moralidade da literatura. Para ele, esta não tem nada a ver com
uma espécie de mais-valia cerimonial e simbólica a expropriar o
mundo para encher o balão do sujeito literário. Não tem medo, ao
contrário, de pôr esse sujeito para
andar no prejuízo e arrumar para
ele, "desprestigiosamente", muitas
faces. Tirando a ênfase por demais
sacrificial que haveria no quadro,
tem um quê de são Sebastião meio
programático em Silviano Santiago.
Se essa moralidade da literatura é
dura com o sujeito literário, ela
não o é com suas figuras e suas
criações. Tanto assim que, no final
de "De Cócoras", Antônio deixa de
ser o ídolo senil, de coisa nenhuma, emporcalhado numa casa das
Laranjeiras, para voltar, como no
poema famoso, a ser voluptuosamente menino. Caímos de compaixão. Fazer o quê? Não é pouco
como efeito da literatura, esse mover-se no deficitário.
A OBRA
De Cócoras - Silviano Santiago.
Ed. Rocco (r. Rodrigo Silva, 26, 5º
andar, CEP 20011-040, RJ, tel. 021/
507-2000). 120 págs. R$ 16,00.
José Maria Cançado é jornalista, autor de "Os
Sapatos de Orfeu", biografia de Carlos Drummond de Andrade.
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