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Em "A Sociedade contra o Social", Renato Janine Ribeiro discute o papel da filosofia no Brasil de hoje
O xadrez da modernidade
Denis L. Rosenfield
especial para a Folha
Não deixa de ser curioso fazer a
resenha de um livro cujo autor
afirma: "Não nos citamos, e sobretudo não citamos os brasileiros. Dá para citar e reconhecer um filósofo morto, ou um comentador estrangeiro, mas não um nosso par". A minha
própria escritura poderia ser vista como
contraditória, pois ou ela não se sustenta
pelo fato de eu ser brasileiro ou o livro de
Renato Janine Ribeiro procura dizer outra coisa.
E o que ele procura dizer é da maior relevância, a saber, a ausência de uma verdadeira comunidade filosófica entre nós.
Esta se caracteriza, basicamente, pela
discussão de idéias entre os próprios
membros dessa comunidade, o que faz
com que as idéias germinem com traços
próprios, contribuindo, decisivamente,
para que o pensamento se desenvolva
com parâmetros auto-referidos. É o que
fazem, aliás, os americanos, os ingleses,
os franceses e os alemães. Nós que, para
sermos desenvolvidos, necessitamos nos
aparentar a eles, fazendo algo, no entanto, diferente do que eles fazem.
Mas, para que a filosofia finque realmente raízes entre nós, é necessário fazer
o que o livro "A Sociedade contra o Social" tem por meta: sair dos muros universitários, confrontar-se com os problemas da sociedade e do Estado, da "polis",
diriam os gregos. A filosofia sempre viveu de sua confrontação com -e de seu
enraizamento em- os problemas das
diferentes sociedades às quais pertenceu
no transcurso da história. O modelo de
filosofia reinante no Brasil, pois, e nisso
não estamos sozinhos, é o modelo atual
dos países desenvolvidos, é aquele que
corresponde somente a um pequeno período do século 20. A filosofia nunca foi
essencialmente universitária, embora alguns filósofos fossem universitários. Entretanto ser
universitário não significava ficar recluso na academia.
Neste sentido, o livro de
Renato Janine Ribeiro
procura resgatar essa função originária da filosofia
e o faz retomando, ampliando e reescrevendo uma série de artigos originariamente publicados em jornais. A sua
preocupação poderia ser traduzida da
seguinte maneira: inscrever a filosofia na
sociedade à qual pertence. O que é uma
forma de contribuir diferentemente para
o debate de idéias entre nós. Ressaltaria,
a esse respeito, que o autor maneja, numa escritura ágil e clara, os problemas
atuais da sociedade brasileira, sobretudo
em suas formas simbólicas, a partir de
uma reflexão ancorada em filósofos políticos como Maquiavel, Hobbes, Locke e
Mandeville.
Realidade dos discursos
E, quando digo formas simbólicas, refiro-me ao
modo mediante tais discursos têm realidade, têm eficácia na constituição das sociedades, sobretudo modernas, pois fracas em virtudes, em valores de tipo comunitário. Símbolo é o "real", nome de
uma moeda. A análise feita pelo autor
mostra a sua equivocidade e como esse
amplo leque semântico foi também importante para o "plano" econômico que
porta este nome. A sua leitura da sociedade brasileira é atenta aos seus matizes
e especificidades, como a que diz respeito às figuras animais estampadas na nova moeda. A filosofia faculta, assim, um
determinado enfoque, visando descortinar novos horizontes de uma realidade
que se caracteriza por boa dose de opacidade. Uma sociedade que gosta de se
apresentar sempre como um novo começo, como se ela pudesse fazer a economia da história, de sua própria história.
Se tivesse que apresentar a idéia-guia
do livro ou, em todo caso, a que me pareceu mais interessante, não hesitaria em
dizer que ela se articula às relações entre
os valores, às regras de conduta e à política. Mais concretamente, ela diz respeito
às condições de instauração -ou não-
de virtudes republicanas no Brasil. O seu
ponto teórico de partida consiste no que
ele chama de duas aberturas, no sentido do jogo de
xadrez, da modernidade
política: Maquiavel e
Mandeville.
Segundo o primeiro,
um Estado se institui pela
ação política, que prescinde de distinções morais,
pois os parâmetros do bem e do mal são
dados pela própria ação. O alvo desta reside na estabilidade das instituições políticas, outro nome da conservação do poder por aqueles que o conquistaram.
Conforme o segundo, as virtudes de um
Estado são transpostas para a sociedade,
pois decorrentes do jogo do mercado.
Este se caracteriza pela procura do benefício particular, situando-se na esfera do
privado e das relações socioeconômicas.
O seu lema é: "Vícios privados, virtudes
públicas".
Essas duas aberturas são, depois, recortadas por uma terceira, a de Montesquieu, graças ao seu conceito de virtude
republicana, extraída de sua análise dos
romanos. Uma república assenta-se em
virtudes, o que implica que as pessoas,
em suas ações, devam pôr as instituições
comuns acima dos interesses particulares. As virtudes republicanas residem em
atos de abnegação, dificilmente reprodutíveis em sociedades como a nossa, baseadas na busca incessante do lucro e do
proveito privados.
Via barata e via custosa
No Brasil,
teríamos recortes dessas diferentes posições sem que, com elas, logremos, por
exemplo, uma certa separação entre a esfera do privado e a do público, como
ocorre nos Estados Unidos. Refiro-me,
especificamente, ao extremo rigor com
que aquele país trata as questões de malversação de dinheiro público, corrente
entre nós. O autor escrutina, operando
um deslocamento dessas posições clássicas e testando a sua pertinência, o que ele
denomina de uma via "barata", tipo
Mandeville, de nossas relações sociais,
políticas e privadas. Essa é a condição necessária da vida moderna, aí compreendendo a brasileira.
A via "custosa", tipo Montesquieu, é
aquela que situa o coletivo acima do particular. Ela é, sob as condições de uma
sociedade capitalista, cada vez mais difícil, haja vista o enfraquecimento dos valores que esta sociedade produz, e produziu, entre nós. Acrescentem-se a isso
as condições lamentáveis da educação
pública para que tenhamos o quadro
completo desse desmoronamento.
Renato Janine Ribeiro repensa as relações entre ética e política não apenas em
termos da honestidade dos governantes -virtude que encontramos na esfera
privada-, mas também em termos de
tratamento da coisa pública, o que implica a não-apropriação privada do público
e, sobretudo, a canalização do público
para aqueles que mais o necessitam.
A legalidade dos atos é uma face da
moeda, a outra é o direcionamento da
sociedade para a coisa pública.
Este redesenho, por outro lado, possibilita uma releitura do domínio privado,
das relações humanas, da sexualidade,
daquilo que muitas vezes estimamos como o contato e a afetividade brasileiros.
O domínio da satisfação pessoal, do contato com o próximo, é uma outra vertente, representativa de como essa esfera do
contentamento humano é, ela mesma,
por um outro viés, decorrente desse desmoronamento dos valores. O seu resultado é o enfraquecimento dos laços mais
rígidos da religiosidade ou de costumes
tidos por imemoriais. O que, para nós, é
uma grande conquista, um novo valor, é
consequência da dissolução de determinados padrões de conduta. Estes estipulavam certos comportamentos e pensamentos a eles correspondentes que ora
nos penalizavam na transgressão objetiva, ora nos culpabilizavam por nossas intenções. Se hoje somos mais livres, é como decorrência de uma adesão de menor intensidade a virtudes coletivamente
estabelecidas. Resgata-se, assim, o que é
a tarefa mesma da filosofia política, o que
é o propósito mesmo deste livro.
A Sociedade contra o Social
232 págs., R$ 25,50
de Renato Janine Ribeiro. Companhia das Letras (r. Bandeira
Paulista, 702, conjunto 72, CEP
04532-002, SP, tel. 0/xx/11/
3846-0801).
Denis L. Rosenfield é professor da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, autor de "Política e
Liberdade em Hegel" (Ática), entre outros.
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