São Paulo, domingo, 27 de agosto de 2000


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Em "A Sociedade contra o Social", Renato Janine Ribeiro discute o papel da filosofia no Brasil de hoje
O xadrez da modernidade

Denis L. Rosenfield
especial para a Folha

Não deixa de ser curioso fazer a resenha de um livro cujo autor afirma: "Não nos citamos, e sobretudo não citamos os brasileiros. Dá para citar e reconhecer um filósofo morto, ou um comentador estrangeiro, mas não um nosso par". A minha própria escritura poderia ser vista como contraditória, pois ou ela não se sustenta pelo fato de eu ser brasileiro ou o livro de Renato Janine Ribeiro procura dizer outra coisa.
E o que ele procura dizer é da maior relevância, a saber, a ausência de uma verdadeira comunidade filosófica entre nós. Esta se caracteriza, basicamente, pela discussão de idéias entre os próprios membros dessa comunidade, o que faz com que as idéias germinem com traços próprios, contribuindo, decisivamente, para que o pensamento se desenvolva com parâmetros auto-referidos. É o que fazem, aliás, os americanos, os ingleses, os franceses e os alemães. Nós que, para sermos desenvolvidos, necessitamos nos aparentar a eles, fazendo algo, no entanto, diferente do que eles fazem.
Mas, para que a filosofia finque realmente raízes entre nós, é necessário fazer o que o livro "A Sociedade contra o Social" tem por meta: sair dos muros universitários, confrontar-se com os problemas da sociedade e do Estado, da "polis", diriam os gregos. A filosofia sempre viveu de sua confrontação com -e de seu enraizamento em- os problemas das diferentes sociedades às quais pertenceu no transcurso da história. O modelo de filosofia reinante no Brasil, pois, e nisso não estamos sozinhos, é o modelo atual dos países desenvolvidos, é aquele que corresponde somente a um pequeno período do século 20. A filosofia nunca foi essencialmente universitária, embora alguns filósofos fossem universitários. Entretanto ser universitário não significava ficar recluso na academia.
Neste sentido, o livro de Renato Janine Ribeiro procura resgatar essa função originária da filosofia e o faz retomando, ampliando e reescrevendo uma série de artigos originariamente publicados em jornais. A sua preocupação poderia ser traduzida da seguinte maneira: inscrever a filosofia na sociedade à qual pertence. O que é uma forma de contribuir diferentemente para o debate de idéias entre nós. Ressaltaria, a esse respeito, que o autor maneja, numa escritura ágil e clara, os problemas atuais da sociedade brasileira, sobretudo em suas formas simbólicas, a partir de uma reflexão ancorada em filósofos políticos como Maquiavel, Hobbes, Locke e Mandeville.

Realidade dos discursos
E, quando digo formas simbólicas, refiro-me ao modo mediante tais discursos têm realidade, têm eficácia na constituição das sociedades, sobretudo modernas, pois fracas em virtudes, em valores de tipo comunitário. Símbolo é o "real", nome de uma moeda. A análise feita pelo autor mostra a sua equivocidade e como esse amplo leque semântico foi também importante para o "plano" econômico que porta este nome. A sua leitura da sociedade brasileira é atenta aos seus matizes e especificidades, como a que diz respeito às figuras animais estampadas na nova moeda. A filosofia faculta, assim, um determinado enfoque, visando descortinar novos horizontes de uma realidade que se caracteriza por boa dose de opacidade. Uma sociedade que gosta de se apresentar sempre como um novo começo, como se ela pudesse fazer a economia da história, de sua própria história.
Se tivesse que apresentar a idéia-guia do livro ou, em todo caso, a que me pareceu mais interessante, não hesitaria em dizer que ela se articula às relações entre os valores, às regras de conduta e à política. Mais concretamente, ela diz respeito às condições de instauração -ou não- de virtudes republicanas no Brasil. O seu ponto teórico de partida consiste no que ele chama de duas aberturas, no sentido do jogo de xadrez, da modernidade política: Maquiavel e Mandeville.
Segundo o primeiro, um Estado se institui pela ação política, que prescinde de distinções morais, pois os parâmetros do bem e do mal são dados pela própria ação. O alvo desta reside na estabilidade das instituições políticas, outro nome da conservação do poder por aqueles que o conquistaram. Conforme o segundo, as virtudes de um Estado são transpostas para a sociedade, pois decorrentes do jogo do mercado. Este se caracteriza pela procura do benefício particular, situando-se na esfera do privado e das relações socioeconômicas. O seu lema é: "Vícios privados, virtudes públicas".
Essas duas aberturas são, depois, recortadas por uma terceira, a de Montesquieu, graças ao seu conceito de virtude republicana, extraída de sua análise dos romanos. Uma república assenta-se em virtudes, o que implica que as pessoas, em suas ações, devam pôr as instituições comuns acima dos interesses particulares. As virtudes republicanas residem em atos de abnegação, dificilmente reprodutíveis em sociedades como a nossa, baseadas na busca incessante do lucro e do proveito privados.

Via barata e via custosa
No Brasil, teríamos recortes dessas diferentes posições sem que, com elas, logremos, por exemplo, uma certa separação entre a esfera do privado e a do público, como ocorre nos Estados Unidos. Refiro-me, especificamente, ao extremo rigor com que aquele país trata as questões de malversação de dinheiro público, corrente entre nós. O autor escrutina, operando um deslocamento dessas posições clássicas e testando a sua pertinência, o que ele denomina de uma via "barata", tipo Mandeville, de nossas relações sociais, políticas e privadas. Essa é a condição necessária da vida moderna, aí compreendendo a brasileira.
A via "custosa", tipo Montesquieu, é aquela que situa o coletivo acima do particular. Ela é, sob as condições de uma sociedade capitalista, cada vez mais difícil, haja vista o enfraquecimento dos valores que esta sociedade produz, e produziu, entre nós. Acrescentem-se a isso as condições lamentáveis da educação pública para que tenhamos o quadro completo desse desmoronamento.
Renato Janine Ribeiro repensa as relações entre ética e política não apenas em termos da honestidade dos governantes -virtude que encontramos na esfera privada-, mas também em termos de tratamento da coisa pública, o que implica a não-apropriação privada do público e, sobretudo, a canalização do público para aqueles que mais o necessitam.
A legalidade dos atos é uma face da moeda, a outra é o direcionamento da sociedade para a coisa pública.
Este redesenho, por outro lado, possibilita uma releitura do domínio privado, das relações humanas, da sexualidade, daquilo que muitas vezes estimamos como o contato e a afetividade brasileiros. O domínio da satisfação pessoal, do contato com o próximo, é uma outra vertente, representativa de como essa esfera do contentamento humano é, ela mesma, por um outro viés, decorrente desse desmoronamento dos valores. O seu resultado é o enfraquecimento dos laços mais rígidos da religiosidade ou de costumes tidos por imemoriais. O que, para nós, é uma grande conquista, um novo valor, é consequência da dissolução de determinados padrões de conduta. Estes estipulavam certos comportamentos e pensamentos a eles correspondentes que ora nos penalizavam na transgressão objetiva, ora nos culpabilizavam por nossas intenções. Se hoje somos mais livres, é como decorrência de uma adesão de menor intensidade a virtudes coletivamente estabelecidas. Resgata-se, assim, o que é a tarefa mesma da filosofia política, o que é o propósito mesmo deste livro.



A Sociedade contra o Social
232 págs., R$ 25,50
de Renato Janine Ribeiro. Companhia das Letras (r. Bandeira Paulista, 702, conjunto 72, CEP 04532-002, SP, tel. 0/xx/11/ 3846-0801).




Denis L. Rosenfield é professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, autor de "Política e Liberdade em Hegel" (Ática), entre outros.


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