São Paulo, domingo, 27 de agosto de 2000


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Ponto de fuga

O "bricoleur" da história

Jorge Coli
especial para a Folha

O dicionário "Aurélio" incorporou a palavra "bricolagem", que vem do francês. Ela se refere a trabalhos manuais, a artesanato doméstico feito de modo aproximativo e com as ferramentas que se têm à mão. A arte de Cildo Meireles nasce desse gesto "bricoleur". Ela projetou-se no cenário internacional. A mostra atual do MAM (Museu de Arte Moderna de São Paulo) retoma, em parte, a exposição antes organizada no New Museum of Contemporary Art, de Nova York. Lá, na Broadway, ela parecia mais dramática, superposta em três andares labirínticos. Aqui, no espaço contínuo do MAM, o clima de surpresas diminui. Mas sua importância é evidente.
Postas na perspectiva do tempo, muitas obras trazem a marca de suas datas. É assim o "Desvio para o Vermelho", que estava em Nova York, mas que não veio para o MAM. Todo um ambiente doméstico, do sofá à geladeira, à vitrola e seus discos, à água que corre na torneira, revestido de um tom rubro intenso, partia de uma intenção subversiva. Eram os anos da ditadura, e a cor funcionava como símbolo das torturas sangrentas. A repressão estimulava o ato criador pelo avesso; o artista, como os antigos românticos, exprimia seu protesto visceral; os espectadores consolavam-se com a manifestação de recusa ao poder, e também se sentiam, é possível, um pouquinho heróicos.
Tais resistência e heroísmo, está claro, exerciam um papel muito menos atuante nos fatos do que em sentimentos e estados de alma. Hoje, "Desvio para o Vermelho" guarda a memória das sensações de outra época e adquire uma nova dimensão, divertida e leve.

Flor da pele - Cildo Meireles, depois dos anos tenebrosos, partiu em busca de novas percepções. Mas os dispositivos do "bricoleur" nem sempre atingem a eficácia das sensações propostas. Caminhar num túnel de vento, derretendo um gelinho doce ou salgado na boca, indica uma idéia mais sugestiva do que sua realização.
O mais importante Cildo Meireles talvez esteja mesmo na apropriação de objetos. Numa outra mostra, apresentada pelo Itaú Cultural (SP) e intitulada "Investigações", encontram-se vários deles, recentes, concebidos na melhor tradição dadaísta. Nascem de um engenho capaz de insights e achados formidáveis, prenhes de poesia insólita.

Vôo - A exposição do Itaú Cultural reúne, além de Meireles, vários artistas de primeira água. São eles: Ernesto Neto, Nuno Ramos, Carmela Gross, Iole de Freitas, Carlos Fadon Vicente, Eduardo Kac. Obras atuais pontuam um percurso de inesperados e de seduções. Estão bem expostas, bem iluminadas. Alguns monitores falam com empenho, clareza e convicção, desses imaginários que parecem ter asas.

Barbas - Leitores reclamaram que o título do álbum de Laerte, mencionado em nota de outro domingo, não ficara explícito. Vai aqui: "Deus segundo Laerte", publicado pela Editora Olho d'Água.
Outros leitores comentaram o crapô (ou "crapaud"), que o Deus de Laerte sabe jogar. Mas o evocaram com a nostalgia das coisas que se foram: um jogo de avós. É uma pena. O crapô pede a inteligência combinatória do enxadrista, à qual se acrescenta uma atenção sem repouso, por causa das sequências aleatórias introduzidas nas cartas. Pode ser que existam ainda muitos praticantes, ou mesmo associações especializadas; pelas mensagens, no entanto, não parece. Com o perdão do neologismo: crapodistas do mundo inteiro, uni-vos!

Nessun dorma - Basta que se fale de ópera para que apaixonados se assanhem, escrevendo, opinando, discutindo. Não há gênero artístico que desperte entusiasmo mais arrebatado.
Uma nota desta coluna, noutro domingo, assinalou o notável catálogo da coleção "Opera d'Oro". Uma porção de mensagens, meio aflitas, perguntaram como conseguir esses discos. O melhor é ir diretamente ao site www.allegro-music.com.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br



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