São Paulo, domingo, 27 de agosto de 2006

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A voz ausente

Influenciado por Borges e Cortázar, "Os Detetives Selvagens" retrata a busca de dois traficantes por uma poeta desaparecida no deserto mexicano

MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA

Quantos poetas ou pseudopoetas de vanguarda haveria na Cidade do México, no começo dos anos 1970? Uns 500, talvez mil. A impressão que se tem é que boa parte deles acaba aparecendo em alguma página de "Os Detetives Selvagens". O longo romance de Roberto Bolaño (1953-2003) acompanha, de modo fragmentado, as vagabundagens, aventuras, amores e projetos literários de dois amigos, Ulises Lima e Arturo Belano. Este último, como o autor, nasceu no Chile, mas passa a adolescência e o início da juventude na Cidade do México, antes de perder-se pelo mundo. Inicialmente engajados num movimento de vanguarda poética de princípios vagos e conduta sectária, o "real-visceralismo", Lima e Belano tiram modesto sustento do tráfico de drogas -maconha e cogumelos- até se lançarem a uma busca das mais infrutíferas: atravessando obscuros vilarejos do deserto de Sonora, procuram o paradeiro de uma poeta vanguardista do início do século 20, Cesárea Tinajero. Ela é a autora de um enigmático poema na revista "Caborca", que encontrará nas mãos dos dois poetas-detetives uma decifração bastante arbitrária e medianamente divertida. Não tão divertida é a circunstância de que Cesárea Tinajero se alinhava numa corrente "real-visceralista", cuja ressurreição nos anos 70, sob a égide de Lima e Belano, provavelmente indica -como tantos outros episódios desse romance-, a constante ameaça de esterilidade e de frustração que ronda a vida dos literatos latino-americanos. Bem mais sério e real é o outro motivo que leva os dois poetas a fugirem pelas solidões do México: são ameaçados por um cafetão, que quer matar a prostituta Lupe, que os acompanha na viagem. O livro adquire, na sua parte final, o caráter de um "road movie", dissolvendo em tintas de tragédia o retrato, tão sarcástico quanto ressentido, de uma camada de literatos que vive entre a pequena delinqüência e o emprego público, entre a autofagia e o rancor unânime contra Octavio Paz. Há passagens sinistramente engraçadas, como a que reproduz a idiossincrática tipologia literária elaborada por um certo Ernesto San Epifanio. "Dentro do imenso oceano da poesia, distinguia várias correntes: bichonas, bichas, bicharocas, bichas-loucas, bonecas, borboletas, ninfos e bâmbis. Walt Whitman, por exemplo, era um poeta bichona. Pablo Neruda, um poeta bicha (...), Borges era bâmbi, quer dizer, de repente podia ser bichona e de repente simplesmente assexuado. Cernuda, o querido Cernuda, era um ninfo e, em ocasiões de grande amargura, um poeta bichona, enquanto Guillén, Aleixandre e Alberti podiam ser considerados bicharoca, boneca e bicha, respectivamente." A listagem continua por mais três páginas, e há outras em que a profusão de nomes próprios não alcança efeitos humorísticos tão bons. Páginas igualmente virtuosísticas são dedicadas a algumas cenas de sexo, especialmente as que envolvem Juán García Madero, o narrador da primeira parte do romance. Se "Os Detetives Selvagens" se eleva acima da mediocridade sufocante das rusgas literárias de poetas sem talento, isso se deve à avalanche de bons personagens secundários, como o arquiteto Joaquín Font, a estudante meio hippie Mary Watson ou o escritor Amadeo Salvatierra, que ocupam por momentos o centro da narrativa, em meio a desconexos depoimentos sobre Lima e Belano. A complexa arquitetura do livro se compõe, com efeito, de fragmentos alternados entre múltiplos narradores, que nos dão notícias nem sempre exatas a respeito das andanças dos dois personagens principais. Da Libéria a Israel, passando pela Catalunha e por Paris, o amor e a disponibilidade existencial impõem a Belano e Lima viagens cada vez mais sombrias pelo angustiante labirinto mental dos anos 70. "Meu Impala tinha ido embora", constata um dos narradores. "Eu, de maneira que não conseguia compreender, também tinha ido. Meu Impala havia voltado à minha mente. Eu havia voltado à minha mente. Soube então, com humildade, com perplexidade, num arroubo de mexicanidade absoluta, que éramos governados pelo acaso e que nessa tormenta todos nós nos afogaríamos." Vale encerrar com outra citação. "Há uma literatura para quando se está alegre", diz Joaquín Font; "há uma literatura para quando se está ávido de conhecimento. E há uma literatura para quando se está desesperado. Foi esta última que Ulises Lima e Belano quiseram fazer". A descrição se aplica a "Os Detetives Selvagens", e não é garantia de que este livro encontre recepção entusiástica.


OS DETETIVES SELVAGENS
Autor: Roberto Bolaño
Tradução: Eduardo Brandão
Editora: Companhia das Letras (tel. 0/ xx/11/3707-3500)
Quanto: R$ 59,50 (624 págs.)



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