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A voz ausente
Influenciado por Borges e Cortázar, "Os Detetives Selvagens" retrata a busca de dois traficantes por uma poeta desaparecida no deserto mexicano
MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA
Quantos poetas ou
pseudopoetas de
vanguarda haveria
na Cidade do México, no começo
dos anos 1970? Uns 500, talvez
mil. A impressão que se tem é
que boa parte deles acaba aparecendo em alguma página de
"Os Detetives Selvagens".
O longo romance de Roberto
Bolaño (1953-2003) acompanha, de modo fragmentado, as
vagabundagens, aventuras,
amores e projetos literários de
dois amigos, Ulises Lima e Arturo Belano. Este último, como
o autor, nasceu no Chile, mas
passa a adolescência e o início
da juventude na Cidade do México, antes de perder-se pelo
mundo.
Inicialmente engajados num
movimento de vanguarda poética de princípios vagos e conduta sectária, o "real-visceralismo", Lima e Belano tiram
modesto sustento do tráfico de
drogas -maconha e cogumelos- até se lançarem a uma
busca das mais infrutíferas:
atravessando obscuros vilarejos do deserto de Sonora, procuram o paradeiro de uma poeta vanguardista do início do século 20, Cesárea Tinajero.
Ela é a autora de um enigmático poema na revista "Caborca", que encontrará nas mãos
dos dois poetas-detetives uma
decifração bastante arbitrária e
medianamente divertida.
Não tão divertida é a circunstância de que Cesárea Tinajero
se alinhava numa corrente
"real-visceralista", cuja ressurreição nos anos 70, sob a égide
de Lima e Belano, provavelmente indica -como tantos
outros episódios desse romance-, a constante ameaça de esterilidade e de frustração que
ronda a vida dos literatos latino-americanos.
Bem mais sério e real é o outro motivo que leva os dois
poetas a fugirem pelas solidões
do México: são ameaçados por
um cafetão, que quer matar a
prostituta Lupe, que os acompanha na viagem.
O livro adquire, na sua parte
final, o caráter de um "road
movie", dissolvendo em tintas
de tragédia o retrato, tão sarcástico quanto ressentido, de
uma camada de literatos que
vive entre a pequena delinqüência e o emprego público,
entre a autofagia e o rancor
unânime contra Octavio Paz.
Há passagens sinistramente
engraçadas, como a que reproduz a idiossincrática tipologia
literária elaborada por um certo Ernesto San Epifanio. "Dentro do imenso oceano da poesia, distinguia várias correntes:
bichonas, bichas, bicharocas,
bichas-loucas, bonecas, borboletas, ninfos e bâmbis. Walt
Whitman, por exemplo, era um
poeta bichona. Pablo Neruda,
um poeta bicha (...), Borges era
bâmbi, quer dizer, de repente
podia ser bichona e de repente
simplesmente assexuado. Cernuda, o querido Cernuda, era
um ninfo e, em ocasiões de
grande amargura, um poeta bichona, enquanto Guillén, Aleixandre e Alberti podiam ser
considerados bicharoca, boneca e bicha, respectivamente."
A listagem continua por mais
três páginas, e há outras em
que a profusão de nomes próprios não alcança efeitos humorísticos tão bons.
Páginas igualmente virtuosísticas são dedicadas a algumas cenas de sexo, especialmente as que envolvem Juán
García Madero, o narrador da
primeira parte do romance.
Se "Os Detetives Selvagens"
se eleva acima da mediocridade
sufocante das rusgas literárias
de poetas sem talento, isso se
deve à avalanche de bons personagens secundários, como o
arquiteto Joaquín Font, a estudante meio hippie Mary Watson ou o escritor Amadeo Salvatierra, que ocupam por momentos o centro da narrativa,
em meio a desconexos depoimentos sobre Lima e Belano.
A complexa arquitetura do
livro se compõe, com efeito, de
fragmentos alternados entre
múltiplos narradores, que nos
dão notícias nem sempre exatas a respeito das andanças dos
dois personagens principais.
Da Libéria a Israel, passando
pela Catalunha e por Paris, o
amor e a disponibilidade existencial impõem a Belano e Lima viagens cada vez mais sombrias pelo angustiante labirinto
mental dos anos 70.
"Meu Impala tinha ido embora", constata um dos narradores. "Eu, de maneira que não
conseguia compreender, também tinha ido. Meu Impala havia voltado à minha mente. Eu
havia voltado à minha mente.
Soube então, com humildade,
com perplexidade, num arroubo de mexicanidade absoluta,
que éramos governados pelo
acaso e que nessa tormenta todos nós nos afogaríamos."
Vale encerrar com outra citação. "Há uma literatura para
quando se está alegre", diz Joaquín Font; "há uma literatura
para quando se está ávido de
conhecimento. E há uma literatura para quando se está desesperado. Foi esta última que
Ulises Lima e Belano quiseram
fazer". A descrição se aplica a
"Os Detetives Selvagens", e não
é garantia de que este livro encontre recepção entusiástica.
OS DETETIVES SELVAGENS
Autor: Roberto Bolaño
Tradução: Eduardo Brandão
Editora: Companhia das Letras (tel.
0/ xx/11/3707-3500)
Quanto: R$ 59,50 (624 págs.)
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