São Paulo, domingo, 27 de agosto de 2006

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Feira

Em crônicas agora reunidas, João do Rio escancara o comércio de crenças no Brasil na virada do século 19 ao 20

LUIZ FELIPE PONDÉ
ESPECIAL PARA A FOLHA

Religião é um assunto que está sempre em moda, seja pela beleza e sentido que alguns nela encontram, seja pelo horror e pela ignorância que outros nela identificam. Muitos pensam que a época atual se caracteriza por um mosaico contraditório e promíscuo de crenças religiosas, misturando o que comumente chamamos de seres de outros planetas, orixás, fantasmas, bruxas, Jesus e Buda, permeados pela vaga palavra "energia", cujo campo semântico se despedaça na mesma medida em que se vulgariza. Consultórios de psicoterapeutas são visitados por espíritos e por seres vindos de Andrômeda. Figuras híbridas se misturam, entre o pastor e o pai-de-santo, a fim de aliviar o cotidiano esmagado pela evidente infelicidade da vida: entre a fé e o destino, a frustração determina o preço da crença e o custo da desilusão.

Fama e vil metal
A risível crença positiva num mundo racionalmente possível se mistura com o terror diante dos demônios que podem penetrar sexualmente os corpos de homens e mulheres, submetendo a alma. No neopaganismo (essa figura mítica entre a história e o pesadelo dos infantis) o fetiche da revolta encanta os ressentidos como um modo chique de construção da subjetividade. Desde um judaísmo barato até o cristianismo, essa "Maria Louca do Ocidente" para muitos críticos, tudo tem lugar nesse trópico triste que é o Brasil. Com pequenos ajustes de época, essa feira de artigos religiosos em que vivemos hoje não é muito distante daquela descrita pelo nosso Oscar Wilde, João do Rio, nos seus artigos publicados na "Gazeta de Notícias", do Rio de Janeiro, em 1904, e agora lançados (uma excelente notícia). Trata-se de uma obra que transita entre uma antropologia leve (não necessariamente científica) e um jornalismo investigativo. Crônicas (quase didáticas, quase sarcásticas) de como a pulsão religiosa se apresenta ao comércio dos espíritos e dos corpos, materializada socialmente no Rio de Janeiro da virada do século 19 para o 20. A pretensa "objetividade neutra" das ciências sociais militantes não sobrevive sob o bisturi de nosso dândi carioca.

Vaivém
João do Rio descreve o ruidoso vaivém das variadas comunidades religiosas de então ao mesmo tempo em que nos leva aos escritórios sagrados nos quais "santos", entre dois ou três tipos de deuses guardados em suas gavetas, adoram mesmo é o vil metal ou a fama, ganhos em troca da "revelação" feita, fruto de seu dom sobrenatural ou de uma teoria recém-descoberta. Nosso jornalista ainda vivia numa época anterior à ideologização da crítica (essa asfixia da razão), por isso é muitas vezes visto como um traidor impiedoso das vítimas de plantão. Trata-se de uma diatribe que merece ser lida tanto por religiosos quanto por especialistas e jornalistas.


LUIZ FELIPE PONDÉ é professor da pós-graduação em ciências da religião e do departamento de teologia da Pontifícia Universidade Católica (SP) e da Faculdade de Comunicação da Fundação Armando Alvares Penteado. É autor de, entre outros, "O Homem Insuficiente" (Edusp).
AS RELIGIÕES NO RIO
Autor: João do Rio
Editora: José Olympio
Quanto: R$ 30 (308 págs.)


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