São Paulo, domingo, 27 de setembro de 2009

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CASAL EM CRISE

Relação financeira simbiótica entre EUA e China foi posta em xeque; analistas advogam maior aproximação política

SÉRGIO DÁVILA
DE WASHINGTON

A melhor definição para a relação econômica simbiótica e por vezes conflituosa entre China e Estados Unidos repousa num neologismo, criado pelo historiador Niall Ferguson e pelo economista Moritz Schularick: "Chimerica". É ao mesmo tempo a junção dos nomes dos dois países e a noção de que tal associação é uma fantasia, uma incoerência: uma quimera.
Esse "país", escreveram os professores respectivamente de Harvard e da Universidade Livre de Berlim na publicação "International Finance", ocupa 13% da superfície terrestre, tem um quarto de sua população, responde por um terço do PIB mundial e bancou metade do crescimento econômico do planeta entre 2002 e 2008.
Mantém uma relação cujo destino interessa ao mundo, uma relação que o presidente dos EUA, Barack Obama, disse que "moldará o século 21" e que estudiosos batizaram simplesmente de G2 -no sentido de que nenhum outro agrupamento de países será mais importante que esse.
"Sem o G2, o G20 vai desapontar", escreveu Justin Li, economista-chefe do Banco Mundial, referindo-se ao grupo das vinte economias mais ricas do mundo, Brasil inclusive, que se reuniram pela segunda vez no ano no fim da semana, em Pittsburgh, na Pensilvânia.
Obama e o presidente chinês, Hu Jintao, já se encontraram duas vezes bilateralmente desde a posse do democrata, em janeiro, e a primeira viagem ao exterior feita pela secretária de Estado obamista, Hillary Clinton, foi para a Ásia. A nova administração se esforça para retomar as rédeas de uma relação que sofreu arranhões causados pela crise econômica.
"Por um tempo, essa foi uma relação simbiótica que parecia ideal", escreveu o britânico Ferguson, que trata do assunto em "The Ascent of Money - A Financial Story of the World" (A Ascensão do Dinheiro - Uma História Financeira do Mundo, Penguin, 2008). "Dito de maneira simples, uma metade cuidava de guardar enquanto a outra só fazia gastar."
Segundo seus cálculos, a poupança dos americanos em relação ao PIB foi de pouco mais de 5% no meio da década de 90 para virtualmente zero em 2005; no mesmo período, a chinesa pulou de 30% para 45% do PIB. O que Pequim fez com todo esse dinheiro?
Em setembro do ano passado, o Tesouro norte-americano soltou seu relatório periódico sobre a situação das reservas do país. Nos números, a resposta: pela primeira vez na história, a China passou o Japão como o maior credor dos Estados Unidos. Hoje, de cada dez dólares que o governo americano deve, um é para Pequim.
A dependência preocupa a Casa Branca e Wall Street, ainda mais num tempo de crise, em que o modelo econômico norte-americano, fortemente baseado em consumo e endividamento, é repensado e questionado não só pelos locais como pelo Politburo chinês.

Engajamento maior
Na última quinta-feira, o Center For a New American Security, "think-tank" centrista baseado em Washington, lançou um dos mais amplos estudos recentes da relação entre os dois países e seu futuro.
Com 184 páginas e intitulado "China's Arrival - A Strategic Framework for a Global Relationship" (A Chegada da China - Um Plano Estratégico para uma Relação Global), trata da simbiose à luz de segurança energética, mudança climática, estratégia naval, proliferação nuclear e controle de armas, entre outros tópicos.
A conclusão: para fazer funcionar a relação, os EUA terão de ser "estratégicos e assertivos na maneira de engajar a China". Para que isso aconteça, de acordo com o relatório, o país não pode ser encarado como uma ameaça.
Quem teme o outro tende a isolá-lo, argumenta Richard Armitage, ex-subsecretário de Estado (2001-05), e tudo de que os EUA não precisam é uma China isolada. Os EUA têm também de estender sua influência para organismos multilaterais regionais em que a China é tratada como a superpotência, continua o texto.
Por fim, como nos casamentos em crise, os EUA precisam procurar novos parceiros -no caso, velhos parceiros desprezados pela ascensão chinesa. "Japão, Coreia do Sul, Tailândia e Austrália -aliados e amigos dos americanos que compartilham valores e interesses estratégicos- vão continuar fundamentais para a presença dos EUA na Ásia".
Preocupa especialmente os analistas a entrada do país em zonas de influência tradicionalmente norte-americanas, como a América Latina e partes da África, ou em regiões em que o sentimento antiamericano é muito forte, como o Oriente Médio. Essa penetração se dá principalmente com investimento e empréstimos, que ganham importância óbvia na situação econômica atual.
"É assim que o equilíbrio de poder muda silenciosamente em tempos de crise", escreve David Rothkopf, especialista em política externa americana e estratégia econômica do Carnegie Endowment for International Peace. "Os empréstimos são um exemplo do poder do talão de cheques no mundo se movendo para novos lugares, com os chineses se tornando mais ativos."
Nas palavras de Niall Ferguson, "a Chimerica está em crise, o casamento não vai bem". O resto do mundo acompanha interessado a novela.


Texto Anterior: O líder que a economia enterrou
Próximo Texto: "Diplomacia do pingue-pongue" ajudou a "détente"
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.