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LIVROS
"Poesia Completa de Raul Bopp" reúne produção do autor de "Cobra Norato" e
parte de sua fortuna crítica
A vertente primitiva
ALCIDES VILLAÇA
especial para a Folha
A poesia de Raul Bopp
(1898-1984), como a de vários poetas de sua geração, viveu a passagem de um lirismo sentimental,
retoricamente tocado pelo gosto
do precioso, para a expressão modernista do "primitivo". O termo
não pode vir sem aspas, para que
não esqueçamos a conformação
intelectual, o caráter de programa
e a forçosa estilização, nele implicados. Tais
atributos, em
si mesmos, não
debilitam a
poesia, sobretudo a moderna, que pode
extrair sua força justamente
das restrições
que sabe interiorizar. Que
força específica ainda conservariam, para nós,
aqueles atributos, tão atuantes na
obra do poeta?
A oportunidade dessa avaliação
se reabre com a recente edição da
"Poesia Completa de Raul
Bopp", que Augusto Massi organizou, introduziu e comentou. O
par Raul Bopp/"Cobra Norato"
costuma fundir-se numa chapa
datada, ilustrando uma vertente
do modernismo. Será muito proveitoso, pois, partir dos "Versos
Antigos", atravessar o poema célebre e alcançar os "Parapoemas", passando por "Urucungo", "Poemas Brasileiros" e
"Diábolus" -as seções poéticas
do livro, no qual se respeitou o critério de agrupamento aceito (sugerido?) pelo próprio poeta para o
volume de "Putirum" (1969), generosa seleção de Macedo Miranda.
Além dos versos, vejam-se as curiosas anotações telegráficas de
"Como Se Vai de São Paulo a Curitiba" (até então esquecidas em
revista de 1928) e alguns momentos fortes da fortuna crítica de
Bopp, exercitada por Carlos
Drummond de
Andrade, Murilo Mendes,
Augusto Meyer, Sérgio
Buarque de
Holanda, Cavalcanti
Proença, José
Paulo Paes e
Antonio Hohlfeldt. Será sugestivo o confronto
entre os acolhimentos francamente entusiasmados (como o de Murilo Mendes, por exemplo) e a admiração mais problematizada de
José Paulo Paes.
A poesia de Bopp encontra sua
matéria básica nas narrativas populares, esteja ela numa lenda
amazônica ou num relato de mãe
preta. É essa a matéria que o poeta
submeterá a seu tão característico
processo de segmentação, adotando o "corte" cinematográfico,
preferindo as estrofes curtas e justapostas a um encadeamento rítmico de maior fôlego. Com isso,
obtém um andamento quebradiço, no qual cada cena é uma aparição, cada fala tem algo de inopinado, cada refrão ou onomatopéia
surge como pontuação percussiva.
A preferência pela ordem direta,
pela coordenação ou mesmo pelo
atropelamento sintático ajuda
muito no efeito de oralidade; o léxico, colado aos localismos (amazônicos, por exemplo), submete
seu "exótico" a um tom de fala
com poesia natural.
Tudo somado, Bopp teria cumprido a particular "aventura"
que o antropófago Oswald de Andrade lhe reconheceu: "Trazer o
Brasil nos dentes". Mas o Brasil
não cabe em tal apresamento; o
próprio autor de "Urucungo"
(poemas negros que, como outros, ficaram injustamente à sombra de "Cobra Norato") reconheceria depois: "A Arca antropofágica encalhou em São Paulo, com
esse material a bordo. Urubu foi
ver se as águas já tinham baixado.
Não voltou mais. Houve imprevistos na descida. Os planos de reação e renovação ficaram num deixa-estar ou acomodaram-se em
variantes cosmopolitas. E a "Antropofagia' ficou nisso, provavelmente anotada no obituário de
uma época" (nota à edição de
1951 de "Cobra Norato", Bloch
Editores).
Tal avaliação nunca impediu, no
entanto, que Bopp continuasse a
dispensar à sua obra os cuidados
de uma sempre rigorosa reescritura, a tal ponto que Macedo Miranda chegou a se esquecer de que os
homens são mortais: "Jamais desfrutaremos uma edição definitiva
dos poemas de Raul Bopp". Esta
edição da poesia completa, ainda
que não atenda formalmente "aos
parâmetros de uma edição crítica", como lembra Massi, coloca-se como a mais abrangente e
criteriosa entre todas. E recoloca,
como eu dizia no início desta resenha, a questão do valor de permanência destes poemas.
A poesia defende-se, creio, com
a vitalidade inventiva de suas imagens e seus ritmos -vitalidade
que, muito intensa num contexto,
pode ser muito menor em outro.
Aos olhos do leitor de hoje que
ainda se entregue a livros de versos
e de aspirações, a poesia de Bopp
continua a traduzir a desconfiança
de que este país guarda em si mesmo, na expressão do poeta, uma
"floresta cifrada". Tomada esta
imagem num sentido muito amplo, creio que ela pode apontar para além do nosso umbigo mítico:
indicará a convicção (também
compartilhada por cientistas sociais, políticos e humanistas consequentes) de que o Brasil merece
ser compreendido a partir do reconhecimento de suas forças próprias, para não se converter de vez
na risonha caricatura de modernidade -aquela que a antropofagia
globalizada lhe apresenta como
retrato objetivo e destino histórico.
A OBRA
Poesias Completas de
Raul Bopp - Organização de
Augusto Massi. Edusp (av. Prof.
Luciano Gualberto, travessa J,
374, CEP 05508-900, Cidade
Universitária , SP, tel.
011/818-4008). 343 págs. R$
29,80.
Alcides Villaça é professor de literatura brasileira na USP.
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