São Paulo, domingo, 27 de setembro de 1998

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LIVROS
"Poesia Completa de Raul Bopp" reúne produção do autor de "Cobra Norato" e parte de sua fortuna crítica
A vertente primitiva

ALCIDES VILLAÇA
especial para a Folha

A poesia de Raul Bopp (1898-1984), como a de vários poetas de sua geração, viveu a passagem de um lirismo sentimental, retoricamente tocado pelo gosto do precioso, para a expressão modernista do "primitivo". O termo não pode vir sem aspas, para que não esqueçamos a conformação intelectual, o caráter de programa e a forçosa estilização, nele implicados. Tais atributos, em si mesmos, não debilitam a poesia, sobretudo a moderna, que pode extrair sua força justamente das restrições que sabe interiorizar. Que força específica ainda conservariam, para nós, aqueles atributos, tão atuantes na obra do poeta?
A oportunidade dessa avaliação se reabre com a recente edição da "Poesia Completa de Raul Bopp", que Augusto Massi organizou, introduziu e comentou. O par Raul Bopp/"Cobra Norato" costuma fundir-se numa chapa datada, ilustrando uma vertente do modernismo. Será muito proveitoso, pois, partir dos "Versos Antigos", atravessar o poema célebre e alcançar os "Parapoemas", passando por "Urucungo", "Poemas Brasileiros" e "Diábolus" -as seções poéticas do livro, no qual se respeitou o critério de agrupamento aceito (sugerido?) pelo próprio poeta para o volume de "Putirum" (1969), generosa seleção de Macedo Miranda.
Além dos versos, vejam-se as curiosas anotações telegráficas de "Como Se Vai de São Paulo a Curitiba" (até então esquecidas em revista de 1928) e alguns momentos fortes da fortuna crítica de Bopp, exercitada por Carlos Drummond de Andrade, Murilo Mendes, Augusto Meyer, Sérgio Buarque de Holanda, Cavalcanti Proença, José Paulo Paes e Antonio Hohlfeldt. Será sugestivo o confronto entre os acolhimentos francamente entusiasmados (como o de Murilo Mendes, por exemplo) e a admiração mais problematizada de José Paulo Paes.
A poesia de Bopp encontra sua matéria básica nas narrativas populares, esteja ela numa lenda amazônica ou num relato de mãe preta. É essa a matéria que o poeta submeterá a seu tão característico processo de segmentação, adotando o "corte" cinematográfico, preferindo as estrofes curtas e justapostas a um encadeamento rítmico de maior fôlego. Com isso, obtém um andamento quebradiço, no qual cada cena é uma aparição, cada fala tem algo de inopinado, cada refrão ou onomatopéia surge como pontuação percussiva. A preferência pela ordem direta, pela coordenação ou mesmo pelo atropelamento sintático ajuda muito no efeito de oralidade; o léxico, colado aos localismos (amazônicos, por exemplo), submete seu "exótico" a um tom de fala com poesia natural.
Tudo somado, Bopp teria cumprido a particular "aventura" que o antropófago Oswald de Andrade lhe reconheceu: "Trazer o Brasil nos dentes". Mas o Brasil não cabe em tal apresamento; o próprio autor de "Urucungo" (poemas negros que, como outros, ficaram injustamente à sombra de "Cobra Norato") reconheceria depois: "A Arca antropofágica encalhou em São Paulo, com esse material a bordo. Urubu foi ver se as águas já tinham baixado. Não voltou mais. Houve imprevistos na descida. Os planos de reação e renovação ficaram num deixa-estar ou acomodaram-se em variantes cosmopolitas. E a "Antropofagia' ficou nisso, provavelmente anotada no obituário de uma época" (nota à edição de 1951 de "Cobra Norato", Bloch Editores).
Tal avaliação nunca impediu, no entanto, que Bopp continuasse a dispensar à sua obra os cuidados de uma sempre rigorosa reescritura, a tal ponto que Macedo Miranda chegou a se esquecer de que os homens são mortais: "Jamais desfrutaremos uma edição definitiva dos poemas de Raul Bopp". Esta edição da poesia completa, ainda que não atenda formalmente "aos parâmetros de uma edição crítica", como lembra Massi, coloca-se como a mais abrangente e criteriosa entre todas. E recoloca, como eu dizia no início desta resenha, a questão do valor de permanência destes poemas.
A poesia defende-se, creio, com a vitalidade inventiva de suas imagens e seus ritmos -vitalidade que, muito intensa num contexto, pode ser muito menor em outro. Aos olhos do leitor de hoje que ainda se entregue a livros de versos e de aspirações, a poesia de Bopp continua a traduzir a desconfiança de que este país guarda em si mesmo, na expressão do poeta, uma "floresta cifrada". Tomada esta imagem num sentido muito amplo, creio que ela pode apontar para além do nosso umbigo mítico: indicará a convicção (também compartilhada por cientistas sociais, políticos e humanistas consequentes) de que o Brasil merece ser compreendido a partir do reconhecimento de suas forças próprias, para não se converter de vez na risonha caricatura de modernidade -aquela que a antropofagia globalizada lhe apresenta como retrato objetivo e destino histórico.

A OBRA

Poesias Completas de Raul Bopp - Organização de Augusto Massi. Edusp (av. Prof. Luciano Gualberto, travessa J, 374, CEP 05508-900, Cidade Universitária , SP, tel. 011/818-4008). 343 págs. R$ 29,80.


Alcides Villaça é professor de literatura brasileira na USP.



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