São Paulo, domingo, 27 de dezembro de 1998

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Um produto do sangue da terra


Comemorar o aniversário da Declaração dos Direitos não é um ato formal, mas um compromisso de luta


ANTONIO NEGRI
especial para a Folha

É estranho estarmos comemorando a Declaração Universal dos Direitos Humanos: estranho pois esse fato permite medir não somente a excepcional importância do evento, mas também o caráter aleatório dos eventos históricos.
Lembro-me de um texto, a famosa conferência sobre "Cidadania e Classe Social", proferida em 1949 pelo sociólogo Thomas Marshall, que, sob muitos aspectos, representa a forma com que a Declaração foi vivida, no interior do debate cultural e político do imediato pós-guerra, na Europa Ocidental e nos EUA. Nesse texto, que traduzia a inspiração da Declaração dos Direitos Humanos, toda a vicissitude política moderna era submetida a uma nova leitura do ponto de vista da inclusão progressiva, na cidadania, de sujeitos que, originariamente, eram dela excluídos, e do incessante e intensivo enriquecimento das determinações dos direitos dos cidadãos. Se o século 18 fora o do reconhecimento dos direitos civis e o século 19 o da determinação dos direitos políticos, o século 20 seria o século da fundação dos direitos sociais. "O impulso moderno em direção à igualdade social", sustentava Marshall, "é a última fase de uma evolução da cidadania, que esteve em progresso constante durante cerca de 250 anos".
A Declaração nascia, portanto, desse tipo de convicção. Ao dar início ao "New Deal", na década de 30, Roosevelt apostara tudo na "libertação das necessidades". Nesse sentido, os teóricos franceses, de Cassin a Monnet, tinham desenvolvido a herança das Declarações de Direitos Humanos da época revolucionária. E o próprio Hans Kelsen, que alinhavou o direito internacional das Nações Unidas, tinha expressado a sua convicção de que tal direito só poderia ser fundamentado na base da realização do Estado social.
A questão a ser colocada, hoje, 50 anos depois da Declaração, é por que o último quartel do século teria cancelado o impacto daquela Declaração. Essa virada, parece-me, está debaixo dos olhares de todos. Depois dos "gloriosos 30 anos" da reconstrução pós-bélica (1945-1975), a ação dos governos e o debate teórico-político voltaram à exaltação dos "direitos políticos", de modo independente, isso se não estiverem se colocando francamente contra a afirmação dos "direitos sociais". À Declaração de 1948 substituiu-se, a partir da metade da década de 70, o Relatório Trilateral "sobre os limites da democracia", que denunciava o excedente da demanda social e pedia aos governos que voltassem à "liberdade de mercado". A Declaração estava sendo rechaçada ao século 19. Com certo humor negro, poderia acrescentar que, ao comemorarmos a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a impressão que damos é a de um "Candide" pós-moderno, otimista após o terremoto de Lisboa. Realisticamente, só me resta concluir sobre o caráter aleatório do desenvolvimento histórico e do sentido dos eventos da história.
Só que essas reflexões resignadas não satisfazem. Que essa virada do sentido dos direitos do homem tenha se dado nos últimos 25 anos do século é inaceitável. Não somente do ponto de vista ético, mas, sobretudo, do ponto de vista político. A história do século 21 será marcada pela formal legitimação de um novo ordenamento jurídico global, o do Império. O processo avança com força enorme.
Logo (para que os bois já não tenham deixado o curral quando tomarmos consciência), deveremos nos perguntar sobre que base constitucional, sobre que tábua de direitos, o sistema jurídico da globalização será fundado: se na liberdade dos mercados ou então naquela continuidade dos direitos políticos e sociais propostos pela Declaração Universal. Desse ponto de vista, comemorar a Declaração não será ato formal e de dever, mas compromisso de luta. Uma luta concebida para dar uma resposta justa às multidões que levantam a exigência do reconhecimento de seu direito à vida e à solidariedade social.
Na base de qualquer tábua de direitos sempre há algo de sagrado, resplandescente, alto e terrível de uma só vez. Por trás da Declaração de 1948, a torná-la sagrada, havia duas guerras mundiais e a guerra civil que transpassava o mundo, no choque entre as nações e as classes sociais. Não trair aquela tábua dos direitos significa lembrar que a Declaração dos Direitos Humanos não é um pedaço de papel, mas o produto do sangue da terra.


Antonio Negri é cientista social italiano, autor de "A Anomalia Selvagem" (Ed. 34), entre outros; ele escreve mensalmente na Folha, na seção "Autores".
Tradução de Roberta Barni.




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