São Paulo, domingo, 27 de dezembro de 1998

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O maior colecionador de histórias do brasil



Câmara Cascudo buscou, em 144 livros, a permanência da cultura universal nas tradições brasileiras
MARIO CESAR CARVALHO
enviado especial a Natal e Recife


Esta é uma história de esquecimento. Havia nos arredores de Natal, nos anos 70, um prostíbulo que exibia a seguinte placa: "Vila Familiar Câmara Cascudo. Exigimos respeito". Câmara Cascudo, no caso, era ele mesmo, Luís, o maior etnólogo que o Brasil já teve, autor do clássico "A História da Alimentação no Brasil" (1967/68).
Em vida, Câmara Cascudo percorria de A a Z o espectro cultural, ia da aristocrática Universidade de Oxford, na Inglaterra, que lhe rendia homenagens, a lupanares, onde as prostitutas festejavam-no.
No ano do centenário de seu nascimento, a ser comemorado no próximo dia 30, Câmara Cascudo (1898-1986), porém, está no limbo. A casa onde viveu em Natal foi tombada e abandonada. O Memorial Câmara Cascudo, na mesma cidade, onde estão depositadas sua biblioteca de 15 mil volumes e 8.000 cartas, é uma espécie de lixão com estantes. Há poeira por todas as partes, pilhas de livros deteriorando num canto, cartas sem ordenação.
A sua situação no mercado não é melhor: dos 144 livros que escreveu, traduziu ou anotou, só 10 estão à venda nas livrarias. Há um único livro novo sobre ele, a ser lançado na próxima semana: a biografia "Câmara Cascudo - Um Homem Chamado Brasil", do jornalista Gildson Oliveira. O ator e compositor Antônio Nóbrega prestou seu tributo com uma das matérias que o etnólogo mais gostava: a música. O governo FHC fez um tributo pífio: dedicou-lhe um selo e um bilhete de loteria.
Eis a questão: por que um etnólogo do seu porte é jogado no limbo pela universidade? Câmara Cascudo é uma espécie de redescobridor do brasileiro, como diz Diógenes da Cunha Lima, seu secretário por 20 anos e autor de "Câmara Cascudo - Um Brasileiro Feliz". Seus estudos sobre alimentação, literatura oral, vaqueiros, folguedos e folclore deram uma nobreza sem paralelos a essa entidade romântica chamada povo brasileiro.
Foi Câmara Cascudo que encontrou traços egípcios nos velórios dos confins do sertão, que ouviu a voz de Sherazade das "Mil e Uma Noites" na preta analfabeta que lhe contava histórias, que vislumbrou ecos gregos nos desafios nordestinos, que rastreou a lenda medieval de Carlos Magno nos folhetos de cordel. Essa era sua matéria: a permanência da chamada cultura universal no mundo popular.
Seus métodos também têm um quê de pioneirismo. Recorria à história do cotidiano, dos bens materiais, à literatura oral -quase tudo que ele usava hoje faz parte do cânone universitário.
Por que, então, o limbo?
Adiante-se uma única resposta para não tirar o sabor da história. "Houve um patrulhamento ideológico muito forte contra papai porque ele foi ligado ao integralismo. Foi pior do que a lepra", diz o filho Fernando Luís da Câmara Cascudo, referindo-se ao movimento autoritário de extrema direita que fascinou parte da intelectualidade nos anos 30.
As outras respostas para o limbo e para a sua obra é melhor buscar na vida do etnólogo. Câmara Cascudo é, talvez, o intelectual brasileiro que mais se serviu de sua experiência pessoal para iluminar o Brasil pré-moderno, o grande tema de sua obra.
À vida, então.



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