São Paulo, domingo, 27 de dezembro de 1998

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A mundo dos grotões e o dândi de Natal

do enviado especial

O apego de Luís da Câmara Cascudo às crendices e ao sertão vem do berço. Ele nasceu a 30 de dezembro de 1898, em Natal. Seu pai, Francisco, era coronel, perseguidor de cangaceiros e o maior comerciante da cidade nos anos 10 e 20 -vendia de carros da Ford a louças francesas. Da mãe, Anna, herdaria o viés aristocrático, o gosto pela música e pelo francês.
Filho único, foi criado numa espécie de redoma, porque os pais já haviam perdido três filhos. "Fui menino magro, pálido, enfermiço, cercado de deitas e restrições alimentares. Não corria. Não saltava. Nunca pisei areia nem andei descalço. Jamais subi a uma árvore. Cuidado com fruta quente, sereno, vento encanado! Brincava com meninas", relata no livro de memórias "O Tempo e Eu" (1968).
O sertão, que dissecaria em seus ensaios, Câmara Cascudo só descobriu na adolescência. Em "Vaqueiros e Cantadores", ele narra a experiência: "Vivi no sertão típico, agora desaparecido. Cortei macambira e xiquexique para o gado nas secas. Banhei-me nos córregos no inverno. Persegui tatus de noite, com fachos e cachorros amestrados".
O mundo encantado do sertão teria de esperar até 1939 para estrear na obra de Câmara Cascudo, exatamente com "Vaqueiros e Cantadores".
Seus primeiros textos foram publicados no jornal do pai, "A Imprensa", em 1918, numa coluna batizada "Bric à Brac". Eram críticas literárias provincianas, quase crônicas, sobre escritores do Rio Grande do Norte, que ele reuniria em seu primeiro livro, "Alma Patrícia" (1922).
Nessa fase jornalística, Câmara Cascudo era o dândi de Natal, segundo Vicente Serejo, professor de jornalismo da Universidade Federal do Rio Grande do Norte e pesquisador da obra cascudiana. Andava de polaina, monóculos e bengala de cana-da-índia. Como o escritor e repórter João do Rio, aventurava-se pelo submundo da cidade. Com os lanceiros da polícia, participava de batidas em centros de macumba e prostíbulos.
"Essa fase marcou Cascudo para sempre", diz Serejo. "Ele é, acima de tudo, um repórter". Faz sentido. Câmara Cascudo fugia dos conceitos como o diabo da cruz. Como um barroco tardio, preferia as imagens. É um colecionador de histórias, como notou o crítico Múcio Leão: "Se de repente um cataclismo sobreviesse em nossa terra, e do que foi o Brasil só restassem os livros desse escritor, seria possível aos estudiosos do futuro reconstruir tudo o que somos hoje". O "hoje" de Múcio Leão, é claro, trata do Brasil pré-industrial.
Nos anos 20, Câmara Cascudo estudou medicina em Salvador e no Rio, com intenções de ganhar um laboratório do pai e tornar-se pesquisador como Pasteur e Oswaldo Cruz. Mas acabou formando-se na Faculdade de Direito de Recife em 1928. Aí, sua obra sofre uma guinada para a história. Escreve sobre a província -a história do Rio Grande do Norte- e é editado em São Paulo por Monteiro Lobato.
A intencionalidade do descobrimento do Brasil, López do Paraguay e Conde d'Eu são objetos de seus livros. O escritor Mário de Andrade (1893-1945), com quem Câmara Cascudo se correspondia desde 1924 e que passaria o verão de 1928/29 em Natal, reprovou essas obras. Em 1939, Mário enviou uma "carta-bomba" a Cascudinho, como era chamado. Na carta, classificava os personagens dos livros de Câmara Cascudo de "príncipes vazios". E pedia que ele deixe de lado seu "ânimo aristocrático", descesse da rede onde escrevia e olhasse "a riqueza folclórica" que passava logo ali na rua.
Foi o maior baque literário que Câmara Cascudo sofreu em vida. "Não sou capaz de escrever coisa alguma depois de sua carta", responde a Mário. É também o pulo do gato de sua obra. Nasce ali o verdadeiro Câmara Cascudo. O "ânimo aristocrático", porém, ele jamais abandonaria -é uma das chaves para entender sua obra.



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