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A mundo dos grotões e o dândi de Natal
do enviado especial
O apego de Luís da Câmara Cascudo às crendices e ao sertão vem
do berço. Ele nasceu a 30 de dezembro de 1898, em Natal. Seu pai,
Francisco, era coronel, perseguidor de cangaceiros e o maior comerciante da cidade nos anos 10 e
20 -vendia de carros da Ford a
louças francesas. Da mãe, Anna,
herdaria o viés aristocrático, o
gosto pela música e pelo francês.
Filho único, foi criado numa espécie de redoma, porque os pais já
haviam perdido três filhos. "Fui
menino magro, pálido, enfermiço,
cercado de deitas e restrições alimentares. Não corria. Não saltava.
Nunca pisei areia nem andei descalço. Jamais subi a uma árvore.
Cuidado com fruta quente, sereno, vento encanado! Brincava com
meninas", relata no livro de memórias "O Tempo e Eu" (1968).
O sertão, que dissecaria em seus
ensaios, Câmara Cascudo só descobriu na adolescência. Em "Vaqueiros e Cantadores", ele narra a
experiência: "Vivi no sertão típico, agora desaparecido. Cortei
macambira e xiquexique para o
gado nas secas. Banhei-me nos
córregos no inverno. Persegui tatus de noite, com fachos e cachorros amestrados".
O mundo encantado do sertão
teria de esperar até 1939 para estrear na obra de Câmara Cascudo,
exatamente com "Vaqueiros e
Cantadores".
Seus primeiros textos foram publicados no jornal do pai, "A Imprensa", em 1918, numa coluna
batizada "Bric à Brac". Eram críticas literárias provincianas, quase
crônicas, sobre escritores do Rio
Grande do Norte, que ele reuniria
em seu primeiro livro, "Alma Patrícia" (1922).
Nessa fase jornalística, Câmara
Cascudo era o dândi de Natal, segundo Vicente Serejo, professor
de jornalismo da Universidade Federal do Rio Grande do Norte e
pesquisador da obra cascudiana.
Andava de polaina, monóculos e
bengala de cana-da-índia. Como o
escritor e repórter João do Rio,
aventurava-se pelo submundo da
cidade. Com os lanceiros da polícia, participava de batidas em centros de macumba e prostíbulos.
"Essa fase marcou Cascudo para sempre", diz Serejo. "Ele é,
acima de tudo, um repórter". Faz
sentido. Câmara Cascudo fugia
dos conceitos como o diabo da
cruz. Como um barroco tardio,
preferia as imagens. É um colecionador de histórias, como notou o
crítico Múcio Leão: "Se de repente um cataclismo sobreviesse em
nossa terra, e do que foi o Brasil só
restassem os livros desse escritor,
seria possível aos estudiosos do futuro reconstruir tudo o que somos
hoje". O "hoje" de Múcio Leão, é
claro, trata do Brasil pré-industrial.
Nos anos 20, Câmara Cascudo
estudou medicina em Salvador e
no Rio, com intenções de ganhar
um laboratório do pai e tornar-se
pesquisador como Pasteur e Oswaldo Cruz. Mas acabou formando-se na Faculdade de Direito de
Recife em 1928. Aí, sua obra sofre
uma guinada para a história. Escreve sobre a província -a história do Rio Grande do Norte- e é
editado em São Paulo por Monteiro Lobato.
A intencionalidade do descobrimento do Brasil, López do Paraguay e Conde d'Eu são objetos de
seus livros. O escritor Mário de
Andrade (1893-1945), com quem
Câmara Cascudo se correspondia
desde 1924 e que passaria o verão
de 1928/29 em Natal, reprovou essas obras. Em 1939, Mário enviou
uma "carta-bomba" a Cascudinho, como era chamado. Na carta,
classificava os personagens dos livros de Câmara Cascudo de
"príncipes vazios". E pedia que
ele deixe de lado seu "ânimo aristocrático", descesse da rede onde
escrevia e olhasse "a riqueza folclórica" que passava logo ali na
rua.
Foi o maior baque literário que
Câmara Cascudo sofreu em vida.
"Não sou capaz de escrever coisa
alguma depois de sua carta", responde a Mário. É também o pulo
do gato de sua obra. Nasce ali o
verdadeiro Câmara Cascudo. O
"ânimo aristocrático", porém,
ele jamais abandonaria -é uma
das chaves para entender sua obra.
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