São Paulo, domingo, 27 de dezembro de 1998

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ABC DO BRASIL SEGUNDO CASCUDO


Beijo

Surgiu, ou melhor, vulgarizou-se na Ásia Menor. Nos cultos orgiásticos de Vênus. (...) Antes dos espanhóis e portugueses as Américas desconheciam o Beijo. Não sei se os pretos africanos sabiam beijar. Creio que não, antes dos mouros, ou os negros da terra mediterrânea, sem o exemplo de Cartago e das legiões de Roma. O indígena brasileiro não beijava. Langsdorff explicava que o tambetá, adorno labial, impossibilitava o ósculo. Dezenas e dezenas de povos não sabiam o que era o beijo. (...) O maori da Nova Zelândia esfrega o nariz no nariz da namorada e vice-versa. (...) O filema grego e o ósculo romano viveram muito parcimoniosamente nas bocas mestiças do Brasil colonial. (...)

Da "História de Nossos Gestos"

Cachaça

Aguardente de mel de cana ou de borra de mel, destilada. É a bebida tradicional e popular no Brasil, com uma sinonímia incontável. Seus bebedores, da camada popular, guardam ritos especiais para degustá-la, dependendo da ocasião e pessoa, havendo fórmulas velhas para convidar, beber, repetir, agradecer. Quase sempre ainda mantêm traço da "libatio" romana, deitando uma pequenina parte ao solo. (...) Provém do castelhano "cachaza", vinho de borras. É a única bebida do mundo que sinonimiza hábito, costume, vício, mania. (....)

Do "Dicionário do Folclore Brasileiro"

Café-com-leite

Saint-Hilaire, viajando do Rio de Janeiro para São Paulo, em Juruoca, março de 1822, serviu-se de café-com-leite pelo jantar e manhã. Seria influência do chá com leite que já se bebia na Europa elegante na segunda metade do século 18. Bates, no Amazonas de 1850, lembra, pela manhã, "a infalível xícara de café forte depois da qual todos iam para suas ocupações". Há uma tradição letrada apontando Johan Nieuhof como inventor da mistura do café-com-leite. Nieuhof deixou o Brasil em julho de 1649 e o café nos veio em 1727, trazidas as sementes da Caiena por Francisco de Melo Palheta, recebidas da senhora d'Orvilliers e plantadas no Pará. A elaboração inicial da média verificar-se-á fora das fronteiras do Brasil seiscentista. Possivelmente em Amsterdã, onde se bebia café desde 1637... O café encerrando a refeição seria uma solução brasileira sem maior exemplo português. (...)

Da "História da Alimentação no Brasil"

Dormir
Durante o sono a alma deixa o corpo e viaja. Fica também à mercê das forças inimigas. Pode ser tentada e afastar-se definitivamente. A pessoa não acordará mais. É a morte de muita gente, cujo diagnóstico os doutores explicam de formas complicadas. Para evitar os assaltos do maldito às almas desprotegidas, há orações para recitar, em voz alta ou mentalmente, antes de adormecer. Recomenda-se a alma a Deus. Dormir é desarmar-se perante o mistério. Gonçalves Fernandes reuniu alguns desses monitórios que previnem o perigo: não dormir com sede, porque o anjo da guarda levanta-se de noite para beber água e pode afogar-se no pote; não dormir com a casa sem água, pode a alma ter sede e ir beber nas cacimbas, nos rios etc e, se cair dentro d'água, o corpo morre; não dormir em cima da mesa, porque é agouro, e não dormir com os pés para a porta da rua, pelo mesmo motivo. (...)

Do "Dicionário do Folclore Brasileiro"


Maconha

Diamba, liamba, riamba, mariguana, rafi, fininho, baseado, morrão, cheio, fumo brabo, gongo, malva, fêmea, maricas (Canabis sativa), cânhamo, herbácea de origem asiática, vinda para o Brasil com os escravos negros africanos, segundo a maioria estudiosa. Ópio do pobre, fumam as folhas secas como cigarros, morrão com dois gramas, baseado com um e setenta, fininho, com um grama. Há também o maricas, que no Maranhão chamam boi, cachimbo feito com uma garrafa, um cabaço (lagenaria) ou feito de barro cozido, como tenho visto, com recipiente para água, lavando a fumaça, como o narguilé turco. Estimulante, dando a impressão de euforia, deixa forte depressão, a lomba, que só desaparece com superalimentação. (...)

Do "Dicionário do Folclore Brasileiro"

Nudez

O estado de nudez possui alta expressão mágica. O corpo inteiramente despido representa submissão completa aos poderes dos entes invocados e, por ambivalência, intimida-os, obrigando-os a atender aos desejos do devoto. Há a crença do efeito apotropaico da nudez, explicado pela exibição dos órgãos sexuais, afastadores dos demônios da esterilidade e inibição fecundadora ou vital. Certos "despachos" do catimbó são feitos nas encruzilhadas, estando o operador despido totalmente. Assim, frequentemente as bruxas clássicas o sabat infernal. Os candidatos à forma de lobisomem devem despir-se previamente. Feitiço não alcança uma pessoa nua, isto é, feitiço por contato. A nudez é isolante. (...)

Do "Dicionário do Folclore Brasileiro"

Feijoada


A feijoada, simples ou "completa" (sempre incompleta, no julgamento dos entendidos), é o primeiro prato brasileiro, para os brasileiros em geral. Inútil tentar divulgá-la como atração turística. Será o mesmo que oferecer caracóis e rãs a um sertanejo velho. Demasiadamente nutritiva, indigesta, estarrecedora. Certos alimentos exigem a capacidade conterrânea do consumo e do gosto, intransmissível ao estrangeiro, mesmo curioso de originalidades anômalas. (...) O paladar não é tão universal como a fome. Há distinções, resistências, peculiaridades, imposições misteriosas para o entendimento. A feijoada é uma dessas obras-primas, obrigando iniciação nacionalizante. Certas iguarias do Japão e da sábia China necessitam de cinco gerações de solidariedades residenciais para o ingurgitamento consciente. Toda a gente pode mandar servir no Maranhão um pato ao tucupi ou um arroz-de-cuxá. Mas nem todos sabem comê-los na lentidão valorizadora que eles merecem. (...) A feijoada não constitui um acepipe, mas um cardápio inteiro. Ali se condensam fauna e flora num plano de seleção e resultados inestimáveis de pressão atmosférica e graduação calorífera de alta precisão sensível. É preciso saber corresponder a essas "categorias". (...)

Da "História da Alimentação no Brasil"


Fome

Os sertanejos do Nordeste personalizam a fome numa figura esquelética de velha, enorme, com um chapéu imenso. Chamam-na mesmo "A Velha do Chapéu Grande" (....). A malesuada "fames virgiliana" ("Eneida', 6, 276) é representada por uma velha, porque a velha é, em todos os cultos agrários, o símbolo da esterilidade, da infecundidade, das forças improdutivas ou malévolas. (...)

Do "Dicionário do Folclore Brasileiro"

Velório

Preparado o corpo, disposto no caixão, acesas as velas, queimando-se incenso, guardam os amigos e a família o morto durante as horas que antecedem ao sepultamento. Atravessam esse período conversando em voz baixa, servindo-se café, biscoitos, massas secas. Se o velório é noturno, leva-se o amigo que está "fazendo quarto ao defunto" para uma ligeira refeição sólida, sanduíches, torradas. A guarda ao morto é velha tradição oriental e começaria da fase pastoril onde o cadáver seria vigiado pelos da tribo para não ser roubado pelos inimigos, roubado para restituição com pagamento ou por vingança, impossibilitando a suprema e decisiva deposição na sepultura. Os alimentos, bebidas frias ou quentes são os vestígios do banquete fúnebre, diante do morto, que o Egito iniciou e divulgou.(....)

De "Anúbis e Outros Ensaios"



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