São Paulo, domingo, 27 de dezembro de 1998

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CÂMARA CASCUDO
O brasileiro que construiu a ciência do povo


Leitura de Câmara Cascudo desbarata o preconceito em relação à palavra folclore


GILBERTO VASCONCELLOS
especial para a Folha

País singular, "ignoto Deo", como o denominou Luís da Câmara Cascudo, referindo-se ao conhecimento etnográfico sobre a gente brasileira. Em Natal circula o epíteto "um brasileiro feliz". Quem não queria isso para si como epitáfio? É o brasileiro feliz de que falava o poeta russo Maiakowski, sem ter no entanto jamais ouvido falar do maior folclorista do mundo e da ciência antidemagógica da cultura popular.
Escreveu o monumental "Dicionário do Folclore Brasileiro", direto à máquina de escrever, epígrafe extraída do padre Antônio Vieira: "É uma história nova sem nenhuma novidade, e uma perpétua novidade sem nenhuma cousa de novo". Folclore é língua. Mas a palavra vem depois do gesto. Ninguém, por mais criativo que seja, é capaz de inventar gesto novo. Luís da Câmara Cascudo observa, sentado na cadeira de balanço, seus netinhos com gestos anteriores ao dilúvio. Detalhe: ele demorou 50 anos para escrever "História dos Nossos Gestos".
Curiosamente, Luís da Câmara Cascudo não foi ainda estudado como estilo, escritor dotado de uma prosa original e inigualável na literatura brasileira. Basta este exemplo tirado de sua "História do Rio Grande do Norte": "A mulher casada usava os cabelos presos, tranças enroladas, cocó ou totó (o "titulus' romano). A solteira podia andar de cabelo solto. Era o velho direito consuetudinário ainda vivo e corrente no século 18. Noivados escolhidos pelos pais. Mesmo assim, muitas fugas e raptos. Quando o galo cantava fora de hora era sinal de moça fugida".
Ele despertou, na década de 20, ciúmes autorais em Mário de Andrade, hóspede de Cascudo em Natal, de onde lhe veio a inspiração para a rapsódia "Macunaíma", depois de fechar o corpo num catimbó, empolgado com a prosódia de um cantador de coco, de que resultou a pesquisa "Pancada no Ganzá". Nesse momento delineia-se a diferença de rumo e conduta, aliás determinante para o futuro da cultura brasileira: Cascudo vai da experiência vivida do folclore à biblioteca, enquanto Mário vai da biblioteca ao folclore.
Daí o falso quiproquó entre o erudito e popular, o blablablá esquizofrênico que acabaria mais tarde por legitimar a ditadura da indústria cultural. Na crueldade, o gerente substitui o feitor. Ressentindo-se do saber de experiência feito na área da cultura popular, Mário de Andrade tinha horror de ser chamado de professor. Ele ficou com inveja da gaia ciência de Cascudinho, recriminando-o por perder tempo pesquisando comes e bebes e Conde d'Eu, escrevendo de pijama na rede de dormir.
A nacionalização começa pelo paladar. "O melhor produto do Brasil ainda é o brasileiro", no dizer magistral e atualíssimo de Cascudo, no momento em que o Brasil está à venda. Contudo Mário de Andrade não se conteve de admiração diante do estupendo livro musical "Vaqueiros e Cantadores", publicado em 1937.
Luís da Câmara Cascudo fixou a seguinte escala etnológica para a cultura popular no Brasil: cinco, português; três, indígena; e um, africano. Até prova expressa em contrário, a base e a cúpula da cultura popular brasileira é euro-ibérica. Em todos os aspectos da cultura: língua, comida, música, morte, mito etc.
Em "Sociologia do Açúcar", que é tão indispensável quanto "Casa Grande e Senzala", de Gilberto Freyre, o mestre potiguar escreve: "Sabemos todos que as altas hierarquias dos candomblés pedem extrema-unção, encomendação e sepultamentos católicos". E o ebó, a macumba, o catimbó? Ainda aqui o predomínio euro-ibérico, pois não se deduza negro o feitiço porque feito por mãos negras.
Mantendo-se ao largo do modernismo, dos vanguardismos europeus, do marxismo, do existencialismo, do "new criticism", do estruturalismo, dos popismos contraculturais, Luís da Câmara Cascudo, com mais de 150 livros, centenas de plaquetes e milhares de cartas, pagou o preço de estudar a cultura funcional do cotidiano popular, sendo excluído dos currículos universitários desde meados dos anos 30. Pasmem os desocupados leitores: nenhuma tese, de mestrado ou doutorado, lhe foi consagrada. Vingou a política literária da panelinha universitária, embora Cascudo tivesse sido professor de direito internacional durante 30 anos em Natal.
Tenho para mim que um dos motivos psicológicos desse boicote da chamada moderna inteligência é o fato de Cascudo ser um pesquisador, cientista rigoroso que escreve bem. Isso não se perdoa. Sobretudo porque, em sua prosa, até hoje ninguém apontou um erro, um deslize, um "cochilo de Homero" que fosse. Compondo sozinho seus livros, sem secretária e sem ajudantes, ele não teve nenhum prurido em parecer categórico e afirmativo nas coisas essenciais. Malandro é filho de escravo na cidade. Fazendo ginástica para não trabalhar. Cuscuz é árabe. A cuíca também. O rebolado das nossas donas é produto de importação (África), o gesto de dar banana é europeu, o índio não beijava nem fazia serenata, o beijo veio da Ásia, o cigarro é depois da guerra do Paraguai, o sertanejo brasileiro não bebia leite, o índio não dava para ser vaqueiro. Leite de coco veio da Índia. O cheiro, carícia olfativa nas crianças, é chinês. A jangada indígena não tinha vela e nem bolina. O beliscão foi trazido por d. João 6º. Dar adeus não tem idade. Tudo isto pertence ao folclore.
Exímio historiador, entre os melhores que nós temos; no entanto, Cascudo viajou no tempo sem história: crono sem clio. Há novidades que contam 23 mil anos. À época de Adão, Cascudo recorre sempre, mas coloca o reinado da musácea, isto é, da banana, a pacova, afirmando que "a maçã é pomologicamente impossível no paraíso". Trazendo colaboração africana ao Gênesis, sem esquecer que o nome brasileiro vem da banana. "A fruta que a Eva comeu não foi a maçana; foi a banana!" Luís da Câmara Cascudo resumiu assim sua biografia: "Ensinou e escreveu. Nada mais lhe sucedeu".
Não tenho dúvida de que ele é um dos poucos autores do século 20 que será lido e consultado lá para os anos 3500. Neste frenético século 20, ainda não nos desbaratamos do preconceito em relação à palavra folclore, tratando-o de modo superficial e pejorativo. Para Cascudo, folclore é o milênio na atualidade, a solução popular na vida civilizada. Cito-o, regalando-me com esta citação: "Que é folclore? É a reunião residual de todas as culturas, desde o paleolítico ao avião de jato. No folclore nascemos, vivemos e morremos. É o clima natural , orgânico, diário, familiar. É a ciência do povo. Saber mais do que o povo é privilégio do Espírito Santo".
A cultura letrada, sob influência do Iluminismo, do marxismo e da Escola de Frankfurt, comete o equívoco de encaixar o folclore na prateleira do obscurantismo e do irracionalismo, colocando a antítese irremovível entre as "luzes" e a superstição. Ora, superstição não é necessariamente sinônimo de atraso mental. Para Cascudo, "só o jumento não tem superstição". Não há momento na história do mundo sem a presença da superstição, que é o fundamento da cultura popular. Superstição significa aquilo que sobrevive no tempo: sobrevivência de cultos desaparecidos. Na boca dos patrícios marxistas e weberianos, a palavra folclore, quando não é sinônimo de fofoca, aparece como ideologia conservadora que zela pela tradição das sesmarias regionais. Bobagem. O homem é fisiologicamente universal, mas psicologicamente é regional: unidade psicológica, não étnica.
O depoimento pessoal de Cascudo é uma obra-prima da nossa literatura. "Como fui filho único, doente e triste, amamentou-me o leite de todas as crendices populares. Rezas-fortes, banhos-de-cheiro, mezinhas serenadas, cascas de tronco do lado-que-o-sol-nasce; velhas praieiras esconjurando, como na Caldéia, os demônios das febres incontáveis. Padeci todas as enfermidades folclóricas, espinhela caída, cobreiro, dormir com os olhos abertos, como os coelhos, mijo de maritaca, dentada de caranguejeira, frieira por ter pisado em cururu, verruga por apontar estrelas."
Saindo desta para melhor em 1986, Câmara Cascudo é o único cientista brasileiro que nos oferece uma vivência profunda dos tempos antes do automóvel, das rodovias e do avião. O passado vive em nós. "Se os portugueses deram ao brasileiro o sangue supersticioso, tê-lo-iam recebido, em maior percentagem, do romano dominador." A biblioteca não o explica, mas sim a convivência íntima com o povo. "Indígenas e africanos negros acreditavam na imortalidade da alma, mas não em sua intervenção no quotidiano social. O português é quem trouxe a vivência do morto para o Brasil."
Não conheço outro intelectual que tivesse tido tanto amor pelo povo brasileiro, possuidor de uma erudição admirável, lendo em todas línguas do mundo. "Ouvir o povo vale uma universidade." Essa frase ilumina o que há de mais característico em sua personalidade intelectual: 60% aprendeu de ouvido, 40% aprendeu lendo. Coisas vistas e ouvidas. Em Luís da Câmara Cascudo a função precípua do ouvido exige toda uma metafísica. Cristo saiu do seio da Virgem como ele entrou: pelo ouvido. É impressionante a sensibilidade acústica de Cascudo, ficando no final da vida surdo que nem Beethoven. "Não ouço mais música, penso-a." Segundo Cascudo, a arte dos sons no Brasil estava tipificada entre dois polos: Haeckel Tavares e Villa Lobos. Lá em sua casa, rua Junqueira Aires, Natal, Villa Lobos ia com frequência visitar o "templum" do folclore, conversando muito, embora sem nunca falar de música.
Em 1983, a primeira vez em que lá estive, conversamos sobre Noel Rosa e Villa Lobos. O diálogo tinha de ser feito por escrito, porque ele já estava surdo. E quase cego. Lendo com auxílio de lupa. Às tantas, ele me mandou olhar, pregado na parede, a seguinte dedicatória: "Que boa testa para levar um Cascudo". Assinado: Villa Lobos. Mantive-me em silêncio e respeito religioso. Minha vontade era falar da emoção de estar ali. Minha fala no entanto seria inútil. O diálogo tinha de ser no papel com minha letra horrível. De repente, afável, dirigindo-se a mim, aumentou o volume da voz: "Lápis miserável!". A Deusa Notoriedade Meninos, eu ouvi. Sabendo que Cascudo não gostava de bajulação coreográfica, saí jubilosamente atordoado da casa dele, pensando no montão de bobagens que a minha geração havia entabulado sobre a tal fusão ou separação do erudito e do popular na cultura, quando na verdade ali no folclore de Cascudo estava a verdadeira unidade de Castor e Pollux.
Para Cascudo, todas as crenças convergem em Cristo, essência da questão cultural e religiosa. A mentalidade popular reproduz a catequese cristã iniciada no século 16. Essa catequese cristã foi aceita pelos pretos africanos sem contestação, e não apenas por causa da repressão imanente ao processo colonizador: "Indígenas e negros não defenderam os santos de seu sangue e dor. Não houve mártires da fé, esculpidos em bronze e ébano. Mantiveram as defesas mágicas e não os atos programáticos do culto tribal". É um mistério o processo de aculturação no Brasil, o encontro feliz do velho com o novo. A máxima intensidade da religião cristã no nascimento da mentalidade popular. Cascudo e Roger Bastide citam-se mutuamente, ao contrário de Sérgio Buarque de Holanda, que pouco cita o folclorista potiguar. Idem Florestan Fernandes, Celso Furtado, Gilberto Freyre e Caio Prado Júnior, parcimoniosos na admiração.
O que no horizonte existe, depois dele, é a necessidade de erradicar o abismo entre ciência do povo e política. Desde Sílvio Romero, comentado e anotado deliciosamente por Luís da Câmara Cascudo, temos a denúncia da disjunção estéril entre o folclore e o poder do Estado. Sílvio Romero sublinha o lugar privilegiado da cultura oral, popular e universal na sociedade brasileira: o folclore é o destino político da nossa grei, ou seja, não há outro modelo de desenvolvimento nacional que seja popular. O folclore continua sendo definido como um saber não oficial, mas nada impede que possa vir a ser materializado no Estado e nas instituições. A alternativa "folkpolis". A "polis" da ciência do povo. Então, a palavra de ordem revolucionária é esta: folclore no poder!


Gilberto Felisberto Vasconcellos é professor de ciências sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora (MG) e autor de "O Príncipe da Moeda" (Ed. Espaço e Tempo), entre outros.



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