São Paulo, domingo, 27 de dezembro de 1998

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A invenção do imperador


Estudo tenta reconstruir o imaginário monárquico durante o Segundo Reinado


MARCO ANTONIO VILLA
especial para a Folha

Um livro sobre d. Pedro 2º é sempre bem-vindo.
Em "As Barbas do Imperador", Lilia Moritz Schwarcz faz ousada tentativa de reconstruir e interpretar o imaginário monárquico durante o Segundo Reinado e a construção simbólica da figura do imperador.
A autora se propõe a "acompanhar passo a passo as trajetórias que envolveram a figura de d. Pedro 2º, que de órfão da nação se transforma em rei majestático; de imperador tropical e mecenas do movimento romântico vira rei cidadão, para finalmente se imortalizar no mártir exilado e em um mito depois da morte, com vista a recuperar não tanto a sua história, mas antes sua memória, ou melhor, a seleção de determinadas memórias nacionais" (pág. 21).
Este percurso, fartamente documentado, atravessa 19 capítulos, em que a autora, muito influenciada por Norbert Elias -sobretudo por "A Sociedade da Corte"-, interpreta a formação intelectual de Pedro 2º, a vida na corte, a nobreza tupiniquim, as residências imperiais, as festas, as viagens, a Guerra do Paraguai, a queda da monarquia, o golpe militar republicano e o exílio da família imperial na Europa. A formação do imperador e a construção do mito monárquico são inventariados no livro, par a par com a descrição de uma sociedade que tenta se desfazer de sua condição colonial, mantendo-se no entanto escravagista.
É um forte desafio, mas Lilia Schwarcz não chega a enfrentá-lo por completo, sobretudo porque não consegue decidir concretamente sobre qual seja o seu objeto de estudo: ora prioriza a descrição biográfica sobre o imperador, ora opta por fazer uma análise dos simbolismos agregados à imagem de Pedro 2º, em outros momentos resolve fazer crítica historiográfica.
Em nenhuma dessas situações acrescenta o que quer que seja de substancial ao que Heitor Lyra apresentou em sua obra-prima "História de D. Pedro 2º" (publicada em em três volumes, entre 1938 e 1940).
O apanhado historiográfico da autora padece do pouco domínio do período que possui. Por exemplo, ao afirmar que o Paraguai às vésperas da guerra tinha 318.144 habitantes (pág. 303) e perdeu no conflito "entre 800 mil e 1,3 milhão de habitantes" (pág. 312), não chega a desconfiar que cita cifras de correntes historiográficas distintas, e mesmo oponentes, que se dedicaram àquele episódio histórico.
Textos fundamentais que serviram de ataque ao imperador, produzidos ainda durante o Segundo Reinado, como "O Libelo do Povo", de Francisco de Sales Torres Homem, ou "A Conferência dos Divinos", de Antônio Ferreira Vianna, lhe passam em brancas nuvens.
No campo antropológico, que é o próprio da autora, pois este livro é originalmente uma tese de livre-docência no departamento de antropologia da USP, Lilia Schwarcz perde boas oportunidades de explorar as representações de d. Pedro e do Brasil. Inexplicavelmente, não identifica símbolo tão corriqueiro como o barrete frígio, reproduzido em diversas imagens, omite o apoio do imperador à fundação da colônia anarquista Cecília e o seu papel como hebraísta.
A ação dos saudosistas do império durante as primeiras décadas da República é analisada muito superficialmente: Carlos de Laet é ignorado, assim como Afonso Celso, chamado pela autora de Antônio Celso (pág. 480).
Historicamente, a autora faz questão de detalhar um sem-número de acontecimentos, o que é absolutamente desnecessário para a sua tese, e então comete alguns erros, como ao afirmar que Simón Bolívar teria proposto uma Constituição autoritária para a Bolívia em 1862 (pág. 562), quando o "Libertador da América" morreu antes da data apresentada, em 1830.
No desenvolvimento do livro, chama a atenção o uso da bibliografia sobre o período. É inegável a contribuição de José Murilo de Carvalho. Este autor é citado 35 vezes, enquanto Emília Viotti da Costa é praticamente ignorada, o que no mínimo provoca no leitor uma certa estranheza.
A omissão de clássicos sobre o período também prejudica o livro. Será possível deixar, assim, meio de lado "Do Império à República", o segundo tomo de "O Brasil Monárquico", de Sérgio Buarque de Holanda (citado duas vezes, sem qualquer comentário) ou "O Cativeiro da Terra", de José de Souza Martins, quando se trata da imigração européia no período?

A OBRA
As Barbas do Imperador - Lilia Moritz Schwarcz. Companhia das Letras (r. Bandeira Paulista, 702, conjunto 72, CEP 04532-002, SP, tel. 011/866-0801). 552 págs. R$ 32,00.



A iconografia do livro é vastíssima: são mais de 400 imagens. Isso possibilita ao leitor ter uma ampla visão do Brasil do Segundo Reinado e do imperador. Por outro lado, o excesso iconográfico banaliza a observação, sem contar que muitas das imagens estão reproduzidas em tamanho muito pequeno, simplesmente ilustrativo, prejudicando a exatidão do olhar, especialmente nas charges de Angelo Agostini.
Fora isso, nem sempre as legendas e os textos são exatos. Por exemplo, no quadro de François-René Moreaux (pág. 308), que retrata d. Pedro visitando um hospital de coléricos, a referência do pintor não é, como diz a autora, o santo padroeiro do imperador -São Pedro de Alcântara-, mas o quadro "Napoleão no Petisfério de Jaffa", de Baron de Gros, que associa Bonaparte à tradição dos reis taumaturgos franceses, iniciada com São Luís.
A ocorrência de alguns outros equívocos talvez possa ser compreensível em um livro extenso e que trata de mais de 50 anos da história do Brasil. Mas listarei alguns deles:
1) d. Pedro 2º não foi o primeiro príncipe "a nascer em território nacional" (pág. 45). Em 1822 tinha morrido D. João Carlos Borromeu, filho de d. Pedro 1º com a princesa Leopoldina, de apenas alguns meses de vida;
2) d. Pedro não poderia estar preocupado com a opinião de José de Alencar em 1880 (pág. 134), porque o escritor e político cearense havia morrido em 1877;
3) Luis Felipe não foi derrubado em 1840 (pág. 322), mas em 1848, após a revolução de fevereiro;
4) d. Pedro 2º nunca foi maçom, como informa a autora (pág. 456), confundindo-o com seu pai;
5) Bernardo Pereira de Vasconcelos morreu em 1850 e não nos anos 1880 (pág. 428);
6) Rui Barbosa não foi chefe do gabinete de ministros (pág. 461), pois a nossa República era presidencialista;
7) Segundo a autora, as teorias de Gobineau "repercutiram, no período, mais no Brasil que no exterior" (pág. 595). Esta afirmação é absolutamente incorreta, pois a repercussão das teses racistas de Gobineau na Europa do final do século 19 foi enorme, bastando recordar "O Ariano", de Vacher de Lapouge.
Esses deslizes acabam diminuindo a importância do livro e a contribuição de Lilia Moritz Schwarcz para a compreensão do Segundo Reinado e da figura de d. Pedro 2º. Demonstram também que o século 19 brasileiro ainda é pouco conhecido, sendo um desafio para os historiadores, antropólogos, sociólogos e cientistas políticos.
Em tempo: a Companhia das Letras, que levou o mercado editorial brasileiro a um novo patamar de qualidade, desta vez merece censura: há vários erros de revisão que acabam prejudicando a autora.
Exemplos: o quadro retratando a entrega da mensagem do governo com a ordem de banimento ao imperador é reproduzido duas vezes; o subtítulo do livro "Visão do Paraíso" está erroneamente anotado como "os nativos edênicos no descobrimento e colonização do Brasil", quando o correto é os "motivos edênicos..."; a cronologia do volume, informa que em 1924 ocorreu a "Revolta do Encouraçado em São Paulo". É óbvio que a autora escreveu que naquele ano havia se passado a revolta do Encouraçado São Paulo.


Marco Antonio Villa é professor de história do departamento de ciências sociais e do programa de pós-graduação em ciências sociais da Universidade Federal de São Carlos e autor de "A Queda do Império" e "O Nascimento da República", entre outros.



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