São Paulo, domingo, 27 de dezembro de 1998

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O enforcamento final


"Fera de Macabu" conta o último episódio da pena de morte ocorrido no Brasil


MARILENE FELINTO
da Equipe de Articulistas

Na história do Brasil, foram poucos os condenados à morte de famílias mais ou menos abastadas, conforme conta o livro "Fera de Macabu", do jornalista Carlos Marchi: "Em geral, os executados eram negros ou, quando muito, pobres sem âncora familiar, mas em todos os casos os parentes abandonaram o sobrenome do enforcado, fosse ele chefe de família ou não. O que mandava era o peso de carregar um nome maldito; importava sublimar a vergonha".
Em 5 de agosto de 1855, o rico fazendeiro Manoel da Motta Coqueiro foi enforcado como mandante do assassinato de toda uma família de colonos brancos, não escravos -pai, mãe e cinco filhos. O enforcamento de Coqueiro foi o primeiro grande erro judiciário decorrente da aplicação da pena de morte no país: ou, pelo menos, o primeiro que virava notícia e seria página importante dos compêndios de estudos do direito penal dali por diante.
"A "Fera de Macabu' (município do Rio de Janeiro), como ficou conhecido, sempre jurou inocência, mas foi condenado pelos jurados de Macaé, no Rio de Janeiro. Tempos depois, ficou provado, pela confissão de dois escravos, que havia sido a mulher de Coqueiro, por ciúme, a verdadeira mandante do crime. Tarde demais. A partir desse episódio, todas as condenações à morte foram comutadas pelo imperador Pedro 2º" (Luís Francisco Carvalho Filho - "O Que É Pena de Morte").
O livro de Carlos Marchi é a narrativa detalhada do episódio e da vida de Manoel da Motta Coqueiro. O autor adverte para o fato de ter criado alguma ficção ("para descrever melhor as ambiências e compor os personagens") no primeiro e no 11º capítulos. O mérito da narrativa, no entanto, é seu caráter de biografia e documento histórico. Nesses casos, quanto menos ficção, melhor.

A OBRA

A Fera de Macabu - Carlos Marchi. Ed.Record (r. Argentina, 171, CEP 20921-380, RJ, tel. 021/585-2000). 408 págs. R$ 26,00.



Para escrevê-lo, Marchi realizou pesquisas nos processos instaurados contra Coqueiro, nos principais arquivos documentais brasileiros, cartórios, igrejas, em correspondências particulares de moradores do norte fluminense, em anotações pessoais do imperador Pedro 2º, muito bem caracterizado no livro como o humanista para sempre arrependido de ter negado clemência ao condenado Coqueiro.
O livro é também um significativo estudo, de leitura cativante, sobre um período interessantíssimo da história do Brasil: o do início da extinção da escravatura, da resistência dos fazendeiros brasileiros ao fim do tráfico de escravos, dos transtornos que o fato traria para a economia da colônia e das alterações nas relações sociais vigentes até então. É o período da ascensão social do mestiço, do mulato, cafuzo, mameluco etc.
O texto também põe em cena os primórdios da criação de uma legislação penal brasileira, além de se constituir em exemplar discussão sobre a validade da pena de morte. "O livro é atualíssimo", diz o consagrado jurista Evandro Lins e Silva no prefácio, "a despeito de narrar um fato ocorrido no século 19. Leva à reflexão os desavisados que ainda acatam argumentos a favor da pena de morte e prova que, além de dolorosa e inútil, ela é frequentemente injusta".
"Caso emblemático", como bem define Carlos Marchi, a tragédia do fazendeiro Coqueiro levanta questões profundas sobre as relações desiguais entre privilégios de classe social e Justiça em nosso país: "Na primeira vez em que um rico supostamente inocente foi enforcado, o erro judiciário contribuiu para extinguir a pena de morte no Brasil. Cabe perguntar: se naquele tempo até pessoas ricas e poderosas podiam ser condenadas à morte sem provas ou certezas, quantos miseráveis inocentes teriam sido estupidamente pendurados numa corda antes que a pena de morte acabasse?".



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