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Diferenças genéticas
Fascinação pelo mundo vivido marcou o pensamento de Bento por toda a vida
JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI
COLUNISTA DA FOLHA
E
legante no pensar e no
trato, rebuscado no
vestir, Bento Prado Jr.
[1937-2007] colocou
uma gravata-borboleta no blusão de seus colegas filósofos e no terno de seus amigos literatos. Mas o que parecia
no exterior dessueto casava-se
perfeitamente com sua incansável procura pelo pensamento
refinado.
Aliás, refinamento muito especial, avesso a sistematizações, a essa mania de colocar as
idéias no lugar como se elas
ainda pudessem, cartesianamente, ser encadeadas numa
longa série de razões. Daí a dificuldade de encontrar o pensamento do filósofo Bento, pois
ele aparece apenas nas entrelinhas dos arranjos que montava
com textos de autores escolhidos a dedo.
Não é surpreendente que, no
início de sua carreira, lá pelos
anos 50, tenha, como todos
nós, se fascinado pela fenomenologia. Mas havia fenomenologia para todos os gostos. Fui
um dos primeiros a descobrir
que ela não se resumia às lições
de Heidegger, muito malvistas,
já que tinham sido apropriadas
pela direita paulista mais reacionária, mas tinha encontrado
nos primeiros livros de Husserl
a continuidade daquela lógica e
daquela epistemologia que estava trabalhando com Gilles-Gaston Granger.
Bento chegara à fenomenologia pela via da literatura, sobretudo por Sartre, cujo conceito de imaginação trabalhava
incansavelmente. Por certo os
mais racionalistas, como Gérard Lebrun e eu mesmo, o
considerávamos um psicologista, aquele que mistura lógica
com psicologia.
E quando Sartre publicou
sua "Crítica da Razão Dialética", por nós considerada o cruzamento do psicologismo com
o marxismo humanista, Bento
fez uma aliança com Michel
Debrun, outro professor francês em nosso departamento de
ultramar, para resistir a nossos
ataques logicistas.
Essa diferença marcou um
diálogo que durou toda a vida,
às vezes muito compreensivo e
amistoso, outras áspero, até
mesmo malcriado, mas sempre
respeitoso. Uma diferença que,
vista de hoje, me parece inscrita em nossas cargas genéticas.
Pois, já em 1958, quando voltava de minha primeira estada na
Europa e começávamos a nos
reunir para estudar "O Capital", de Marx -grupo de estudos que se transformou em mito-, Bento e eu armamos um
pampeiro na tentativa de explicar o primeiro capítulo.
É sabido que é um dos trechos mais difíceis desse livro
-Marx o redigiu várias vezes e
advertia o tradutor francês para não se preocupar muito com
a tradução dos termos técnicos
da lógica hegeliana, esta não
sendo palatável ao fino gosto
dos franceses. No entanto, ambos estávamos intoxicados pela
fenomenologia e, como era natural, procurávamos encaixar
nossas manias no texto de
Marx.
Bento insistia que por trás
das análises da mercadoria, cujo primeiro movimento formal
resulta na categoria de dinheiro, havia uma concepção muito
particular do homem, posto como ser genérico ("gattungswesen"), o que deixava as análises
de Marx na dependência de
uma antropologia fundadora.
Antes de entender o que era
valor seria preciso, pois, colocar a questão: o que é o homem.
De minha parte, defendia um
logicismo fenomenológico, segundo o qual o próprio movimento das ações humanas -no
caso, movimento de ajuizar os
valores- seria responsável pela transformação do valor de
uso, a coisa tal como é prezada
pelos agentes, em valor de troca, primeiro momento para a
criação de um critério para as
trocas possíveis, isto é, o dinheiro.
Essa fascinação pela vivência
e pelo mundo vivido marcou o
pensamento de Bento por toda
a vida. É bem verdade que o
conceito lhe facilitava o caminho que sempre pretendeu
abrir entre filosofia, literatura
e psicanálise, mas creio que lhe
valeu, sobretudo, para indicar
um solo da práxis cotidiana de
onde as significações poderiam
ser depuradas.
Muito próximo, portanto, do
conceito de mundo da vida que,
nos últimos trabalhos de Husserl, lhe servia para pensar a
geometria como idealização
das práticas de agrimensura e
assim por diante.
Mas, sem essa idealização,
essa passagem das práticas psicológicas para uma intuição de
essência, o processo se escoa
para o infinito. Não é à toa que
Bento se encantou com Gilles
Deleuze, Jacques Derrida e outros luminares do Olimpo parisiense.
O amigo adversário
Sua morte é penosa para todos, da minha parte interrompe a última fase do mesmo diálogo. No esforço de nos libertar
das armadilhas de uma filosofia
da consciência, mergulhamos
nos trabalhos de Wittgenstein,
numa lógica da linguagem que
pode nos levar a entender melhor no que consiste o movimento criador e pensante da
ação humana.
Logo, porém, as dissensões
se armaram. E sobre um conceito tão cabeludo quanto indispensável que é o conceito de
mundo, Bento continuou a
pensar que o mundo da vida é o
terreno cujos elementos precisam ser empregados para que
se formem jogos de linguagem.
No final das contas, para que
o pedreiro e o aprendiz se entendam na troca de serviços,
ambos precisam estar no mundo onde reconhecem desde logo tijolos, areia e outros materiais. Não nego esse aspecto do
conceito de mundo, mas não
abro mão de situá-lo como um
conceito lógico, isto é, um conceito que serve para descrever o
funcionamento de um jogo de
linguagem.
Se por certo a pedra está no
mundo, seu nome se dá como
uma figura ambígua que, de um
lado, fala de uma coisa, de outro, é um elemento necessário
ao exercício de um jogo de linguagem. Sob esse aspecto, "pedra" é um conceito lógico, descreve o funcionamento dele.
Sua morte interrompe esse
diálogo e me priva de um amigo
adversário. Visto que em geral
só penso na contramão, uma
parte de mim mesmo foi-se
embora.
JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI é professor emérito
da USP e coordenador da área de filosofia do
Centro Brasileiro de Análise e Planejamento. Escreve na seção "Autores".
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