São Paulo, domingo, 28 de abril de 2002

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+ brasil 503 d.C.

O último dom da vida

Jurandir Freire Costa

Abril Despedaçado" tem o toque inconfundível dos trabalhos anteriores de Walter Salles: excelência artística e delicadeza humana. O filme, baseado no romance homônimo de Ismail Kadaré [publicado no Brasil pela Companhia das Letras], trata dos crimes de honra comuns a culturas rurais. O cenário original da trama, a Albânia, é transposto para o sertão nordestino e serve de matéria às permanentes interrogações do diretor: por que a cegueira em relação ao próprio sofrimento e ao sofrimento do outro? Por que consentimos na violência se podemos ser solidários? Não estamos falando, entretanto, de um comentário visual dos desastres da guerra e da opressão noticiados diariamente nos jornais. Podemos, sem dúvida, projetar o filme no "écran" da realidade atual e vê-lo como um alerta contra a intolerância e o desvario dos poderosos. Na tela, o assunto é o Brasil, mas poderia ser os Bálcãs, o Oriente Médio, o Afeganistão, a Caxemira, a Irlanda do Norte ou qualquer região miserável da América Latina, da Ásia ou da África. O diretor, porém, não se contenta com o já sabido. O que, pergunta ele, detona a medonha violência que copia a si mesma e só pára com o sacrifício de inocentes "vítimas expiatórias", como disse René Girard? O que, na futilidade da vingança, resiste ao poder do perdão? Em suma, o que, no gozo humano, para falar com Lacan, nos predispõe ao Mal?

Ascese do conhecimento
É essa inquietação que fascina em seu cinema. Walter Salles parte da perplexidade freudiana com o mal-estar da cultura, mas continua, por assim dizer, com Nietzsche, ao tentar ver as coisas como se fosse a primeira vez. Façamos, propõe ele, uma ascese do conhecimento. Ponhamos entre parênteses a camada de estímulos, conforto, saberes e explicações que nos separam de algumas das mais rudimentares experiências. Quem sabe ali, onde tudo é escasso, possamos ver melhor algo de nossa nudez primordial. Donde a preferência por paisagens desoladas, vidas à margem, crianças e naturezas brutas. A simplicidade, no filme, não é um maneirismo estético; é a maneira de chegar mais rápido às primeiras perguntas. Os personagens, por isso, habitam um universo onde se "fala de boca calada" e se age com sentimentos e gestos mínimos. A câmara ilumina ao máximo essa pouquidade e nos faz ver o "mais" que brota do "menos". Em uma cena, por exemplo, o garoto, ao observar a mãe lavando a camisa do irmão morto, diz: "Mancha de sangue não sai". A pequena frase resume e revela o fundamental da narrativa: o hábito é a marca da maldade. "Abril Despedaçado" fala do Mal e da redenção. Mas de um Mal sem dentes ou garras. A crueldade, no mais das vezes, não é uma assombração disforme, como nos sustos das sessões da tarde ou nas enormidades metafísicas à Lovecraft. É um veneno capilar que invade as rotinas do que chamamos hábito. Vivemos nos hábitos e, por fazermos da vida um hábito, nos tornamos fantoches da compulsão à repetição. A vida presa ao hábito é, por certo, eficiente. Mas de uma eficácia das moendas, por onde só entra cana e sai bagaço. Criada para lidar com o mesmo, a roda do hábito, diante do diverso, emperra, se despedaça e fere de morte os que a põem em marcha. "A inclinação da humanidade para dar valor a seus pecados não se deve à paixão, mas ao hábito", disse santo Agostinho. Hannah Arendt deu a essa máxima religiosa a mais forte expressão leiga: o Mal é banal. Banalidade, porém, não é apenas mesquinhez em pele de obediência. O Mal é banal, principalmente, por fazer da ação humana uma sequência calculável de eventos da qual a espontaneidade é expulsa. No filme, a morte em cascata não vem de impulsos assassinos imprevisíveis e descontrolados; vem do pacto com os mortos, da incansável obrigação imposta aos vivos de pagarem uma dívida cuja origem ignoram, mas que devem considerar como deles porque "assim manda o hábito".

Apego à própria ruína
Walter Salles pensa diferente. O sentido dos deveres éticos não pode contrariar o movimento da vida. O Bem nem é extra-humano nem pode ser desumano. Ele existe por nós e para nós. Um Bem reduzido aos automatismos do hábito vai contra o valor da existência que devia assegurar. Como afirmou Dewey: "Cada indivíduo que vem ao mundo é um novo começo". Frear esse curso para atender a nostalgia do passado é fazer de rituais de morte imitação da vida.
O que nos leva a investir na vontade de viver é saber que nada é permanente, que tudo pode ser refeito e que somos os artífices da nova construção. Os hábitos breves são uma virtude prática porque recapitulam a história bem-sucedida de algumas ações; os hábitos inertes são a vida em atraso consigo, apegada a seus próprios rastros ou ruínas.
Mudamos, logo somos, disse Bergson. E, porque mudamos, estamos sempre escolhendo e fabricando outros futuros. A tradição é apenas a imagem do mundo segundo a força e o talento dos ancestrais. Fixá-la em um esqueleto de regras e princípios é despojar a vida de seu ímpeto criador. O Bem da vida está sempre "on the road"; sempre de passagem, sempre na área transicional entre o "não mais" e o "não ainda".
O hábito é só o fóssil do que, um dia, cresceu e se multiplicou.
Walter Salles entendeu isso. Ele sabe que a Redenção da vida nunca está onde o hábito a espera. É preciso, então, seguir em frente. É preciso ir até sertões, favelas, exílios e infâncias sem rumo para mostrar como a vida se renova com o pouco que lhe resta. É no lugar do abandono, no qual quase nada é dado e quase tudo é retirado, que a vida usa o impensável e o improvável para manter vivo seu último dom, a esperança.
Costuma-se dizer que a distância é a condição da crítica. Walter Salles toma outra direção. A grande arte, a seu ver, quer estar próxima do que não conhece; quer pisar em terras estrangeiras; quer suar o suor do outro; quer provar de suas dores e alegrias; quer, enfim, presenciar a variação inédita da vida para colher no humano, ao modo de Nietzsche, o melhor do pior, o adulto do infantil, o sublime da fealdade. Desse cinema poderíamos dizer o que Marcel Réja disse de si mesmo: "E eu viajo para conhecer a minha geografia".
"Abril Despedaçado", em conclusão, encanta sem hipnotizar, comove sem choros fáceis e faz refletir sem frieza e sem cinismo. Ou seja, é um filme de Walter Salles. Ponto, é tudo.


Jurandir Freire Costa é psicanalista e professor de medicina social na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. É autor de, entre outros, "Sem Fraude nem Favor" e "Razões Públicas, Emoções Privadas" (Rocco). Escreve regularmente na seção "Brasil 503 d.C.".


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