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+ brasil 503 d.C.
O último dom da vida
Jurandir Freire Costa
Abril Despedaçado" tem o toque
inconfundível dos trabalhos anteriores de Walter Salles: excelência artística e delicadeza humana. O filme, baseado no romance homônimo de Ismail Kadaré [publicado no
Brasil pela Companhia das Letras], trata
dos crimes de honra comuns a culturas
rurais. O cenário original da trama, a Albânia, é transposto para o sertão nordestino e serve de matéria às permanentes
interrogações do diretor: por que a cegueira em relação ao próprio sofrimento
e ao sofrimento do outro? Por que consentimos na violência se podemos ser solidários?
Não estamos falando, entretanto, de
um comentário visual dos desastres da
guerra e da opressão noticiados diariamente nos jornais. Podemos, sem dúvida, projetar o filme no "écran" da realidade atual e vê-lo como um alerta contra
a intolerância e o desvario dos poderosos. Na tela, o assunto é o Brasil, mas poderia ser os Bálcãs, o Oriente Médio, o
Afeganistão, a Caxemira, a Irlanda do
Norte ou qualquer região miserável da
América Latina, da Ásia ou da África.
O diretor, porém, não se contenta com
o já sabido. O que, pergunta ele, detona a
medonha violência que copia a si mesma
e só pára com o sacrifício de inocentes
"vítimas expiatórias", como disse René
Girard? O que, na futilidade da vingança,
resiste ao poder do perdão? Em suma, o
que, no gozo humano, para falar com Lacan, nos predispõe ao Mal?
Ascese do conhecimento
É essa inquietação que fascina em seu cinema.
Walter Salles parte da perplexidade freudiana com o mal-estar da cultura, mas
continua, por assim dizer, com Nietzsche, ao tentar ver as coisas como se fosse
a primeira vez. Façamos, propõe ele,
uma ascese do conhecimento. Ponhamos entre parênteses a camada de estímulos, conforto, saberes e explicações
que nos separam de algumas das mais
rudimentares experiências. Quem sabe
ali, onde tudo é escasso, possamos ver
melhor algo de nossa nudez primordial.
Donde a preferência por paisagens desoladas, vidas à margem, crianças e naturezas brutas. A simplicidade, no filme,
não é um maneirismo estético; é a maneira de chegar mais rápido às primeiras
perguntas. Os personagens, por isso, habitam um universo onde se "fala de boca
calada" e se age com sentimentos e gestos mínimos. A câmara ilumina ao máximo essa pouquidade e nos faz ver o
"mais" que brota do "menos".
Em uma cena, por exemplo, o garoto,
ao observar a mãe lavando a camisa do
irmão morto, diz: "Mancha de sangue
não sai". A pequena frase resume e revela
o fundamental da narrativa: o hábito é a
marca da maldade.
"Abril Despedaçado" fala do Mal e da
redenção. Mas de um Mal sem dentes ou
garras. A crueldade, no mais das vezes,
não é uma assombração disforme, como
nos sustos das sessões da tarde ou nas
enormidades metafísicas à Lovecraft. É
um veneno capilar que invade as rotinas
do que chamamos hábito. Vivemos nos
hábitos e, por fazermos da vida um hábito, nos tornamos fantoches da compulsão à repetição. A vida presa ao hábito é,
por certo, eficiente. Mas de uma eficácia
das moendas, por onde só entra cana e
sai bagaço. Criada para lidar com o mesmo, a roda do hábito, diante do diverso,
emperra, se despedaça e fere de morte os
que a põem em marcha.
"A inclinação da humanidade para dar
valor a seus pecados não se deve à paixão, mas ao hábito", disse santo Agostinho. Hannah Arendt deu a essa máxima
religiosa a mais forte expressão leiga: o
Mal é banal. Banalidade, porém, não é
apenas mesquinhez em pele de obediência. O Mal é banal, principalmente, por
fazer da ação humana uma sequência
calculável de eventos da qual a espontaneidade é expulsa. No filme, a morte em
cascata não vem de impulsos assassinos
imprevisíveis e descontrolados; vem do
pacto com os mortos, da incansável obrigação imposta aos vivos de pagarem
uma dívida cuja origem ignoram, mas
que devem considerar como deles porque "assim manda o hábito".
Apego à própria ruína
Walter Salles pensa diferente. O sentido dos deveres éticos não pode contrariar o movimento da vida. O Bem nem é extra-humano nem pode ser desumano. Ele existe por nós e para nós. Um Bem reduzido
aos automatismos do hábito vai contra o
valor da existência que devia assegurar.
Como afirmou Dewey: "Cada indivíduo
que vem ao mundo é um novo começo".
Frear esse curso para atender a nostalgia
do passado é fazer de rituais de morte
imitação da vida.
O que nos leva a investir na vontade de
viver é saber que nada é permanente, que
tudo pode ser refeito e que somos os artífices da nova construção. Os hábitos breves são uma virtude prática porque recapitulam a história bem-sucedida de algumas ações; os hábitos inertes são a vida
em atraso consigo, apegada a seus próprios rastros ou ruínas.
Mudamos, logo somos, disse Bergson.
E, porque mudamos, estamos sempre
escolhendo e fabricando outros futuros.
A tradição é apenas a imagem do mundo
segundo a força e o talento dos ancestrais. Fixá-la em um esqueleto de regras e
princípios é despojar a vida de seu ímpeto criador. O Bem da vida está sempre
"on the road"; sempre de passagem,
sempre na área transicional entre o "não
mais" e o "não ainda".
O hábito é só o fóssil do que, um dia,
cresceu e se multiplicou.
Walter Salles entendeu isso. Ele sabe
que a Redenção da vida nunca está onde
o hábito a espera. É preciso, então, seguir
em frente. É preciso ir até sertões, favelas,
exílios e infâncias sem rumo para mostrar como a vida se renova com o pouco
que lhe resta. É no lugar do abandono,
no qual quase nada é dado e quase tudo é
retirado, que a vida usa o impensável e o
improvável para manter vivo seu último
dom, a esperança.
Costuma-se dizer que a distância é a
condição da crítica. Walter Salles toma
outra direção. A grande arte, a seu ver,
quer estar próxima do que não conhece;
quer pisar em terras estrangeiras; quer
suar o suor do outro; quer provar de suas
dores e alegrias; quer, enfim, presenciar a
variação inédita da vida para colher no
humano, ao modo de Nietzsche, o melhor do pior, o adulto do infantil, o sublime da fealdade. Desse cinema poderíamos dizer o que Marcel Réja disse de si
mesmo: "E eu viajo para conhecer a minha geografia".
"Abril Despedaçado", em conclusão,
encanta sem hipnotizar, comove sem
choros fáceis e faz refletir sem frieza e
sem cinismo. Ou seja, é um filme de Walter Salles. Ponto, é tudo.
Jurandir Freire Costa é psicanalista e professor
de medicina social na Universidade do Estado do
Rio de Janeiro. É autor de, entre outros, "Sem
Fraude nem Favor" e "Razões Públicas, Emoções
Privadas" (Rocco). Escreve regularmente na seção
"Brasil 503 d.C.".
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