São Paulo, domingo, 28 de abril de 2002

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O ÚLTIMO PROMETEU

por Simon Schama

Associated Press
Os líderes Stálin (União Soviética), Roosevelt (EUA) e Churchill se reúnem em Teerã (Irã), em 1943, para traçar um plano de combate às forças alemãs



"CHURCHILL", PUBLICADO NOS EUA, REVITALIZA A IMAGEM DO LÍDER INGLÊS QUE UNIFICOU SEU PAÍS CONTRA A AMEAÇA NAZISTA E RECUPERA SUA DIMENSÃO PESSOAL, AO MESMO TEMPO EGOÍSTA E GENEROSA


A última coisa que o escritor George Orwell publicou, em maio de 1949, foi uma resenha do segundo volume das "Memórias da Segunda Guerra Mundial" [no Brasil foi publicada uma edição condensada em um volume pela Nova Fronteira], de Winston Churchill, "Their Finest Hour". Poder-se-ia esperar que ele fosse alérgico a esse patriotismo de bater no peito, com seus vôos de retórica inflamada; mas não. Os textos de Churchill, observou Orwell, fazendo o cumprimento mais significativo possível, eram "mais de um ser humano que de uma figura pública". Embora em 1939 Orwell tivesse suspeitado da retórica beligerante de Churchill e de seu potencial ameaçador para um culto à própria personalidade, quando escreveu "1984" não foi ao Big Brother que chamou de Winston, mas ao infeliz renegado, "o último homem".
Churchill (1874-1965) pode ter nascido no palácio de Blenheim, mas Orwell teve razão ao lhe atribuir o dom da simplicidade. Quando o primeiro-ministro percorreu as ruínas calcinadas de Bristol depois de um ataque aéreo especialmente infernal em abril de 1941, uma mulher que tinha perdido tudo e estava banhada em lágrimas de ódio, ao ver o rosto rechonchudo e o charuto parou de chorar e acenou com o lenço, gritando com voz rouca: "Hurra, hurra!". Assim como milhões de seus compatriotas, Orwell acreditava que, mais do que seus dons políticos ou militares, era a exuberante humanidade de Winston -egoísta, imprevisível, histriônico-, assim como sua longa carreira de guerreiro de palavras, o que conquistava as pessoas, fazendo-as trepidar e tornando-as camaradas em armas (1).
Uma parte dessa humanidade decorria da grande capacidade de Churchill para zombar de si mesmo. Orwell também reciclou a história segundo a qual Churchill acompanhou o "lutaremos nas praias" com "atiraremos garrafas nos fdp..., é quase tudo o que nos resta", mas esse cândido acréscimo foi eliminado em tempo pela mão ágil do censor da BBC. A história era apócrifa, mas a questão era a própria existência dessa churchilliana. Nenhum líder que fizesse piadas sobre si mesmo correria grande risco de se tornar um ditador.
Na mesma linha, Clement Attlee (1993-1967), o líder do Partido Trabalhista que serviu em seu Gabinete de Guerra e que era às vezes um crítico feroz, comentou pouco após a morte de Churchill que ele era um "mortal supremamente afortunado", mas que "a coisa mais simpática nele era que nunca parava de dizer isso" (2).
Mas o comediante e o trágico viviam dentro da mesma pele surpreendentemente delicada. O desafio de toda biografia acrescentada às prateleiras repletas de histórias sobre Churchill é de certa forma fazer plena justiça à personalidade prometéica de seu sujeito, a sua carreira ricamente vivida (para não dizer glutonicamente devorada), sem jamais se escravizar à sua mística. Um simples esboço do personagem bastante fácil, no caso de Churchill, não bastaria. O difícil é demonstrar exatamente como a enorme personalidade de Churchill, tão truculenta, impulsiva, muitas vezes profundamente teimosa, tornou-se na sombria primavera de 1940 exatamente o que era necessário para a sobrevivência nacional. Não há dúvida de que Roy Jenkins, em "Churchill" (Farrar, Straus and Giroux), cumpriu esplendidamente esse desafio, conseguindo muito melhor que diversos biógrafos anteriores trazer à vida o animal político em Churchill, cujo apetite impaciente pelo poder e cujos esforços extenuantes para mantê-lo muitas vezes se escondem sob a grande ópera de seus discursos. Ele era fumaça, certamente, mas também espelhos.
Seu grande livro surge em um momento duplamente interessante. A popularidade das biografias de líderes heróicos, mas impecavelmente democráticos, de ambos os lados do Atlântico deve algo, evidentemente, à atual premência do público por confiança e educação política. A tentação é responder ao chamado de Karl Rove [um dos principais articuladores políticos da campanha de George W. Bush, em 2000, e também do atual governo] e fazer uma anatomia do carisma, desmembrado em partes intercambiáveis, disponível para canibalização seletiva e reconstruído para enfrentar a "crise da semana", a verdadeira matéria (como Churchill poderia ter dito) desse mais egrégio desperdício de tempo e dinheiro: seminários de liderança.
Embora lorde Jenkins seja um político perenemente arguto (mesmo, ou melhor, especialmente em seus 80 anos), também sabe que o tecido de que Churchill foi cortado é profundamente inadequado para imitações modernas (quem hoje em dia escreve seus próprios discursos ou tem coragem para começar um com: "A notícia... é muito ruim"?). Assim, ele preserva e celebra Churchill em toda a sua peculiaridade titânica e irreproduzível; as tempestades de fúria petulante desabam com sorrisos de querubim. O ângulo de visão de Jenkins é o da apreciação criticamente inteligente, desiludida, sabiamente informada por sua própria vida de experiência no governo, nem adulatória nem hipercética.
Sua biografia também coincide, porém, com um momento em que o revisionismo de Churchill dá sinais, talvez bem-vindos, de estar perdendo o vapor.


É um crédito de Churchill que, diante das alternativas de se agarrar aos farrapos do império, por cortesia de Hitler, ou combater até o final, ele tenha optado sem hesitação pela última


O gênero começou com o livro mais cumulativamente poderoso e perspicaz já escrito sobre o assunto, "Churchill - Four Faces and the Man" [Quatro Rostos e o Homem], publicado em 1969 (3), apenas quatro anos após sua morte, quando o mármore branco no pequeno cemitério da igreja de Bladon ainda estava reluzente. Essas compilações geralmente sofrem da síndrome do ovo do padre, com alguns pedaços bons e outros ruins; não, porém, quando seus autores são A.J.P. Taylor (sobre o estadista), Robert R. James (sobre o político), J.H. Plumb (sobre o historiador), Basil Liddell Hart (sobre o líder guerreiro) e Anthony Storr (sobre o "Cão Negro" maníaco-depressivo).
Para Plumb (apesar de ele ter trabalhado na revisão do quarto e último volume de "A History of the English-Speaking Peoples" [Uma História dos Povos de Língua Inglesa, (1956-1958)"), as histórias que deram a Churchill o Prêmio Nobel de Literatura em 1953 eram simplesmente fracassos anacrônicos de aventureiro, a pompa de Edward Gibbon [1737-94, historiador inglês] combinada com a insularidade complacente de Thomas Macaulay [1800-59, historiador inglês".
Liddell Hart achou que ele foi excessivamente criticado por desastres da Primeira Guerra, mas não o suficiente pelos da Segunda Guerra, principalmente porque ele havia reescrito sua história de modo tão seletivo.
E A.J.P. Taylor salientou, com sua típica agudeza impiedosa, que o homem que na década de 30 havia tão obstinada e ruidosamente resistido ao fim do império, especialmente na Ásia, de fato garantiu seu colapso em 1941 ao privar suas defesas de aviões de caça, navios de guerra e poder humano em favor do teatro da África do Norte e -o que é menos perdoável- pela tentativa catastrófica de atacar os alemães em Creta.
Associated Press
Churchill chega a Zurique, na Suíça, em 1946


Enquanto surgiam os vários volumes da Churchillíada de Martin Gilbert nos anos 70 e 80, uma espécie de maciço Stonehenge biográfico, os revisionistas, como que em resistência, tornaram-se correspondentemente mais audaciosos.
O livro de Robert Rhodes James, "Churchill - A Study in Failure, 1900-1939" [Um Estudo do Fracasso] (4), defendeu a justa teoria de que, se o táxi que atingiu Churchill na Quinta Avenida em 1930 o tivesse acertado com força letal, na verdade sua carreira teria sido julgada com base em seus erros impulsivos (os Dardanelos em 1915) e sua devoção quixotesca a causas merecidamente condenadas -o padrão-ouro, o Raj britânico na Índia [domínio britânico no país, entre 1858 e 1947], a viabilidade constitucional do rei Eduardo 8º.


Desde a época em que foi a Cuba, em 1896, até suas aventuras na Índia, no Sudão e na África do Sul, Churchill reinventou o correspondente de guerra como combatente e escritor


Da mesma forma, a boa história acadêmica de Paul Addison sobre a carreira de Churchill na política interna e no governo (5) ressalta sua tendência a preferir soluções precipitadas para problemas difíceis -chamar as tropas em 1911 e 1926 para lidar com greves industriais, por exemplo. Um passo definitivamente grande demais, porém, foi dado por John Charmley, cujo "Churchill - The End of Glory" [O Fim da Glória, 1993] (6) foi a mais ambiciosa tentativa já feita de derrubar o gigante de seu pedestal, mas que só conseguiu fazer todo o seu peso desabar sobre o autor. Partindo da visão de Taylor de que o mais intransigente defensor do Raj ironicamente terminou sendo um instrumento inadvertido de sua queda, Charmley acrescentou novas pesquisas sobre as hesitantes sugestões feitas no Gabinete de Guerra por lorde Halifax nos dias sombrios do final de maio de 1940, quando a França estava à beira do colapso, para uma abordagem por meio de Mussolini para descobrir quais poderiam ser os termos de Hitler.

Glória ou liberdade
A premissa desse tipo de negociação foi a proposta levantada ainda em 1937 por Von Ribbentrop [1893-1946, ministro das Relações Exteriores da Alemanha nazista, posteriormente condenado pelo Tribunal de Nuremberg] numa conversa particular com Churchill, quando este era apenas um parlamentar, de que Hitler estaria disposto a deixar intactos a soberania insular da Grã-Bretanha e seu império em troca de liberdade para agir na Europa Oriental. Em 1940 essa hegemonia se estenderia por todo o continente, e a reação de Churchill, comentada de modo superlativo em "Five Days in London, May 1940" [Cinco Dias em Londres] (7), foi a mesma de três anos antes: rejeição categórica e indignada. Charmley, apelando (como fazem invariavelmente os revisionistas autonomeados) para o cálculo do interesse nacional em vez da moralidade "emocional", argumentou que, se a política britânica era a autopreservação imperial, para não falar na independência econômica e militar dos Estados Unidos no pós-guerra, talvez fosse melhor aceitar o trato. Mas, como indica a excelente e concisa nova biografia de Geoffrey Best (que teve a infelicidade de ser publicada na mesma época que a de Jenkins) (8), mesmo supondo que a independência nacional britânica, por cortesia do Terceiro Reich, tivesse melhor destino que a francesa, especialmente no que se refere à pequena questão de salvar os judeus das câmaras de gás, existe um ar de paroquialismo estranhamente ingênuo na suposição de Charmley de que o Raj (já exposto por Gandhi como intrinsecamente ingovernável) teria conseguido alguma forma de validade graças à suástica e ao Sol Nascente. É de fato um crédito de Churchill que, diante das alternativas de se agarrar aos farrapos do império, por cortesia de Adolf Hitler, ou combater até o final, por mais que isso pudesse aumentar os prejuízos a longo prazo para o poderio britânico, ele tenha optado sem hesitação pela última. Mesmo para seu mais conspícuo defensor, é muito melhor o "fim da glória" que o fim da liberdade. O que então levou lorde Jenkins, numa época de sua vida em que almas menos compulsivamente prolíficas estariam em suas espreguiçadeiras nas Bahamas, a entrar nessa polêmica agitada? Segundo sua própria confissão desconcertante, ele foi menos movido por um ímpeto gladiatório ou pela descoberta de novas informações do que pelo desejo de evitar um anticlímax em seu currículo literário, depois do merecido sucesso de "Gladstone" (9). Também parece ter havido o desejo de decidir se Churchill foi ou não realmente o melhor primeiro-ministro, uma decisão tomada no final do livro, quando Jenkins merecidamente lhe concede lugar de honra no panteão. Quaisquer que sejam os motivos, as qualificações de Jenkins são indiscutíveis. Assim como Churchill, ele foi muito como um gato que caminha sozinho. Ambos foram mantidos por muito tempo à distância da liderança de seu partido por suspeitas sobre sua lealdade aos princípios fundamentais. Ambos também colocaram as idéias acima da fidelidade ao partido, e na verdade elas eram os ideais semelhantes do liberalismo antimarxista e da reforma social patrocinada pelo Estado, combinação antes considerada uma anomalia na luta polarizada entre capitalismo e trabalho, mas que, um século depois de seu nascimento no início do século 20, realmente parece se tornar, pelo menos na Europa, o rei do "Zeitgeist" [espírito do tempo]. Churchill foi um reformador penal; Jenkins, um dos primeiros a fazer campanha contra a pena capital. Ambos sofreram nas mãos dos membros mais velhos e puritanos de seus respectivos partidos, por sua celebração sem culpa dos prazeres da mesa e da adega. É difícil não acreditar que Churchill não tivesse ficado satisfeito com sua biografia mais epicurista, em cujas páginas nenhuma garrafa memorável fica com a rolha. Mas uma afinidade, mais que todas as outras, parece ligar o autor ao tema: suas carreiras entrelaçadas de historiadores e políticos, o que elimina a diferença entre história como evento vivido e história como relato desse evento. Tampouco, em ambos os casos, tratou-se de um caso de vocações alternativas; a escrita usada como compensação tanto psicológica quanto pecuniária pela perda do cargo e do poder (assim como ocorreu com Clarendon). A carreira de Jenkins como um historiador político ponderado, de texto elegante, remontava a quase 50 anos. Como estudante no final dos anos 1950 eu li e admirei sua biografia de Charles Dilke, o imperialista radical do século 19 que se autodestruiu num escândalo sexual, e seu brilhante relato sobre o ataque do governo liberal à Câmara dos Lordes [câmara alta do Parlamento inglês], "Mr. Balfour's Poodle", antes de conhecer muito sobre Jenkins como um político trabalhista em ascensão. Virtualmente todos os seus livros (até este) foram de alguma forma comentários sobre uma das duas questões que mais o envolveram na vida pública: o relacionamento complexo e às vezes torturado entre a democracia liberal e a justiça social e a relação entre a Grã-Bretanha e a Europa. A escrita enriqueceu a carreira e vice-versa. O mesmo aconteceu com Churchill. Antes de 1945, raramente um político havia aproveitado sua reputação para lançar uma carreira literária; ocorria mais o contrário. Desde a época em que ele foi a Cuba, em 1896, até suas aventuras na fronteira noroeste da Índia, no Sudão e na África do Sul, explorando desavergonhadamente suas conexões sociais e as de sua mãe para se colocar na linha de frente sob as objeções dos comandantes locais, Churchill reinventou o correspondente de guerra como combatente e escritor. E quanto mais ele redigiu seu destino, mais heróico e conveniente ele se tornou, culminando com sua fuga de um campo de prisioneiros de guerra bôer em Pretória [na África do Sul, entre 1899 e 1902], seguida de uma travessia do veld para a liberdade, antes de se realistar, é claro.

Lamentos românticos
Os textos fluíam de sua pena para jornais britânicos populares, como "The Daily Graphic", e então foram ampliados para três livros substanciais em que Churchill, avaliando perfeitamente seu público leitor, conseguiu combinar aventuras emocionantes com lamentos românticos pelos nobres inimigos abatidos (ele se comoveu num protesto indignado quando, depois da batalha de Omdurman, na qual participou da famosa e quase suicida carga da 21ª Brigada de Lanceiros, soube que o comandante, lorde Kitchener, havia violado a tumba do líder derrotado do Jihad Islâmica, Mahdi, mutilado seu corpo e usado o crânio como tinteiro).
Reconhecendo um colega e escritor compulsivo, Jenkins não pode deixar de se impressionar pela determinação com que Churchill cuidou de contratos e royalties e a habilidade com que transformou sua personalidade rebelde em capital político. Mas, quando ele retorna à obra posterior de Churchill, é mais para registrar sua perícia de empreendedor, dirigindo batalhões de pesquisadores e fazendo gordos adiantamentos pela casa de campo em Chartwell, do que para avaliar com grande interesse sobre como a história moldou profundamente seu senso de objetivo político.
Nenhum estadista britânico desde William Pitt, o Velho (1708-1778), foi mais profundamente marcado por uma visão tão favorável do passado de sua nação e, por extensão, pela convicção de que sua própria vida política deveria servir para perpetuá-lo.


Jenkins tende a endossar o poder de fogo da oratória de Churchill, um casamento único, às vezes quase shakespeariano, entre o grandiloquente e o irreverente


É costume, para não dizer obrigação, na historiografia crítica séria atacar a história parlamentar inglesa como uma teleologia "whig" muito "elitista" e auto-elogiosa. Mas, quando Churchill recorreu repetidamente ao confronto maniqueísta entre liberdade e tirania -e aos momentos canônicos do passado britânico, quando o despotismo havia resistido (a Armada em 1588; o Camp de Boulogne em 1803)-, essas convicções eram contagiosas, não apenas por serem articuladas tão heroicamente, mas porque de fato não eram falsas. Se as pessoas querem saber exatamente por que estamos lutando, ele disse a seus ouvintes, em 1941, que desistam da guerra e logo descobrirão! A serviço dessas evidentes -para Churchill- verdades históricas, ele podia recorrer a atos ultrajantes de casuística, caracterizando por exemplo o terrível isolamento da Grã-Bretanha depois da queda da França como a "honra" que coube à Grã-Bretanha de ser o "principal inimigo" da Alemanha. Sua estratégia era cumprimentar os ouvintes, fosse na BBC ou na Câmara dos Comuns, sempre supondo que todos compartilhavam esse grande ideal, quando para muitos milhões o principal objetivo da guerra era sair dela inteiro, de preferência sem ter sua casa entre as ruínas. A adulação funcionou (assim como com FDR [Franklin Delano Roosevelt], que foi cooptado por correspondência como um companheiro defensor da democracia). Imediatamente o público britânico realmente acreditou que de sua determinação dependia não apenas a sobrevivência nacional mas também o destino da democracia. É essa generosidade fundamental churchilliana, meio calculista, meio instintiva, a única explicação possível por ter deixado de dizer a verdade em suas memórias de guerra sobre as profundas divisões no Gabinete de Guerra quanto a entrar nela sozinho ou sondar o "Signor Mussolini". Em 1948, com Neville Chamberlain morto, Churchill poderia facilmente ter levado o crédito pessoal por sufocar o último suspiro dos pacifistas, mas preferiu fingir que, no fundo do coração, eles sempre estiveram a seu lado. A narrativa ágil de Roy Jenkins raramente faz uma pausa para reflexões desse tipo, muito menos para dar à eloquência de Churchill o tipo de análise cuidadosa oferecida, por exemplo, no esclarecedor prefácio de David Cannadine à edição Penguin dos discursos, ou no extraordinário ensaio de Isaiah Berlin intitulado "Mr. Churchill in 1940", que nem sequer aparece na bibliografia de Jenkins. "Se alguém me perguntasse o que exatamente Winston fez para ganhar a guerra", escreveu Clement Attlee, "eu diria: "Falou sobre ela"." E, embora tenha sido importante que Churchill tenha providenciado os navios, aviões e homens que derrotariam o Eixo, ele também foi o único líder que conseguiu usar a logorréia maníaca do Führer para limpar o chão. Jenkins tende a endossar o poder de fogo da oratória de Churchill, um casamento único, às vezes quase shakespeariano, entre o grandiloquente e o irreverente, mesmo que essas obras-primas orais fossem o produto de inúmeras horas de trabalho (seu amigo F.E. Smith brincava dizendo que Winston passou a melhor parte da vida preparando discursos improvisados). Como escritor ele podia ter pé chato, mas, quando estava entoando, era imbatível. Quem mais teria descrito o colapso das velhas monarquias em 1918 como uma "chuva de impérios caindo pelo ar"? Em Harrow, Churchill escreveu em seu admirável e muito engraçado "My Early Life" (Minha Mocidade, 1930), "tenho nos ossos a estrutura básica da frase comum britânica, que é algo nobre". Mas Jenkins às vezes revela um mau ouvido para a simplicidade sucinta que, mesmo em seus momentos mais teatrais, produzia, como Orwell reconheceu, uma verdadeira linguagem do povo. Comparem-se os dois sobre sua participação na guerra cubana em 1895. Churchill escreve: "Estamos sobre nossos cavalos, de uniforme; nossos revólveres estão carregados. À meia-luz do entardecer, longas filas de homens armados e carregados se arrastam em direção ao inimigo". Jenkins escreve que Churchill estava "sob fogo leve" em seu 21º aniversário: "Ele considerou isso uma concatenação muito satisfatória".

Pai opressor
Tampouco lorde Jenkins ficaria impassível na companhia de psicobiógrafos, por isso não procurem aqui especulações sobre o apego de Churchill por roupas íntimas de seda, sua invenção do terno de veludo, essencialmente, como relataram testemunhas surpresas, macacões de bebê em tamanho gigante, a fixação oral do charuto, aceso ou apagado, ou a extenuante compensação (como Theodore Roosevelt) pelo peito de 75 centímetros desprovido de pêlos ou ainda o esforço na oratória como uma campanha de superação da gagueira e da língua presa.
Enquanto Jenkins nota devidamente a influência negativa do pai de Churchill, o irritadiço e amargo lorde Randolph, sobre o menino inseguro e fisicamente frágil, ele omite a história que revela de modo mais dramático a patética intensidade dos esforços de Churchill para provar que era digno diante de seu pai insuportável.
Escrevendo da Academia Militar Real de Sandhurst (para onde foi enviado por ser considerado estúpido e preguiçoso para conseguir qualquer coisa no direito), Winston confessou, num estado de terror abjeto, que tinha destruído o relógio de ouro que seu pai lhe dera, não uma vez (quando outro cadete se chocou com ele) mas duas (quando caiu de seu bolso num lago).
Prevendo corretamente a canhonada de fúria, as acusações de incompetência, irresponsabilidade e inutilidade total que viriam em sua direção, Winston montou uma desesperada operação de salvamento com a mesma energia maníaca com que mais tarde conduziria as guerras mundiais, mobilizando uma companhia de infantaria, depois um carro de bombeiros para dragar o lago, finalmente desviando as nascentes até recuperar o relógio enlameado, irreparavelmente estragado.
Tudo o que ele pôde fazer foi prostrar-se diante da ira paterna em uma das cartas mais tristes que escreveu. Diante da implacável acusação de seu pai -"Eu não podia acreditar que você fosse um jovem tão estúpido. É claro que não se pode confiar em você"-, Winston balbuciou: "Por favor, não me julgue totalmente com base no relógio. Estou muito triste por isso".
Mais de 60 anos depois, após seu Prêmio Nobel e sua biografia elaboradamente hagiográfica de lorde Randolph, ele continuava tentando justificar sua vida para o prepotente com olhos de inseto. Uma das últimas peças que publicou mencionada por Jenkins foi "The Dream" [O Sonho, 1940], em que um lorde Randolph fantasma se materializa na frente de Winston enquanto ele pinta uma tela, com seu pai atônito pela inexplicável afluência da casa do perdulário, até que o filho orgulhosamente narra a história de sua prodigiosa carreira.
Isso ainda deixa muito da vida frenética de Churchill para que Roy Jenkins escreva maravilhosamente sobre ela -e sem dúvida ele o faz. Poucos autores sabem mais sobre os dias inebriantes dos grandes governos liberais reformadores de 1906-1916 do que o autor de uma boa biografia anterior de H.H. Asquith [primeiro-ministro britânico no período", e Jenkins descreve de maneira lúcida a deserção de Churchill dos "tories" [conservadores], seguida de sua ascensão meteórica pelas fileiras ministeriais, de um subsecretário colonial para a Câmara de Comércio, à Secretaria do Interior e finalmente ao Almirantado. Jenkins dá ao iniciante o crédito adequado, juntamente com seu amigo e mentor Lloyd George, por conseguir aprovar uma série de reformas progressistas, intercâmbios trabalhistas, seguro-desemprego, melhorias na inspeção de minas.
Mas, assim como Robert Rhodes James e Geoffrey Best, ele indica acertadamente que, mais de uma vez em sua carreira no governo, Churchill foi autor de políticas que depois criticou como míopes. Por três vezes ele foi o apaixonado defensor da redução do orçamento para armamentos, como "tory", liberal e novamente "tory", e mais três vezes (na corrida naval imediatamente anterior à Primeira Guerra Mundial, na década de 1930 e na Guerra Fria) ele defendeu entusiasticamente o rearmamento. Embora tenha levado a parte do leão da culpa (não totalmente sem razão) pela catastrófica tentativa abortada de cruzar os Dardanelos em 1915, de alguma forma ele escapou às críticas pelo quase igualmente terrível fiasco da campanha norueguesa em 40.
Uma das muitas razões para sermos gratos ao ótimo livro de Roy Jenkins é que ele nos lembra a decência fundamental de Churchill, a qualidade que fez George Orwell perdoar seu anti-socialismo e seu imperialismo sentimental.


Embora limitado em educação, Churchill não tinha dificuldade para traduzir seu sentimento romântico de nacionalidade para as aspirações de outras culturas


Embora limitado em educação e experiência social, Churchill não tinha dificuldade para traduzir seu próprio sentimento romântico de nacionalidade para as aspirações de outras culturas. Para ele foi natural, portanto, acabar sendo amigo de Michael Collins assim como de F.E. Smith, de Chaim Weizmann e do emir (mais tarde rei) Abdullah, e ver que uma solução de dois Estados, tanto na Irlanda quanto na Palestina, era a única maneira de satisfazer as igualmente legítimas ambições por uma terra própria.
Nisso, assim como em vários outros aspectos do século 20, Churchill foi muito mais clarividente do que costumam admitir os clichês sobre sua senilidade de octogenário. Indiscutivelmente, os melhores capítulos do livro de Jenkins são os finais, que tratam das décadas de 40 e 50, depois que o líder guerreiro vitorioso foi recompensado com uma dolorosa derrota eleitoral em 1945.
Sua última causa, motivada pela certeza de que todo tipo de intercâmbio nuclear seria um presságio do fim da história humana, foi a campanha diplomática que levou adiante tenazmente entre 1953 e 1955, mas que resultou infrutífera, para desfazer a Guerra Fria.
Seu último discurso na Câmara dos Comuns antes de se aposentar como primeiro-ministro, ostensivamente dedicado a um Memorando sobre a Defesa, foi preparado com extremo cuidado e estava cheio de visões sombrias habilmente iluminadas por lampejos de otimismo, o "relâmpago em ziguezague" que Asquith identificou como o símbolo de seu gênio. Sua peroração entoada ritmicamente fazia soar, como tantas vezes antes na retórica churchilliana, seu poderoso refrão de apelo à perseverança: "Nunca recuem; nunca se esgotem; nunca se desesperem". É uma conquista do livro de Roy Jenkins permitir-nos ouvir mais uma vez essa voz; libertar o homem do mausoléu.


Notas
1."The Collected Essays, Journalism and Letters of George Orwell", Sonia Orwell e Ian Angus (org.), vol. 4, "In Front of Your Nose, 1945-1950", Harcourt, Brace, 1968, págs. 491-495;
2.Clement Attlee, "The Churchill I Knew", citado in "Churchill by His Contemporaries", Londres, Hodder and Stoughton, 1965, pág. 35;
3.Londres, Allen Lane; Dial, 1969;
4.World Publishing Company, 1970;
5.Paul Addison, "Churchill on the Home Front, 1900-1955", Londres, Jonathan Cape, 1992;
6.Londres, Hodder e Stoughton;
7.Yale University Press, 1999. Ver resenha de M.F. Perutz, "What If?", em "The New York Review", 8/3/2001;
8."Churchill - A Study in Greatness", Londres, Hambledon, 2001;
9.Random House, 1997.

Onde encomendar
"Churchill" (Farrar, Straus and Giroux, 1.002 págs., US$ 40) pode ser encomendado, em SP, na Fnac (tel. 0/ xx/ 11/ 3097-0022) e, no Rio, à livraria Leonardo da Vinci (tel. 0/ xx/21/ 2533-2237).

Simon Schama (1945) é historiador inglês, professor na Universidade Columbia (EUA). É autor de "Paisagem e Memória" (Cia. das Letras) e "Rembrandt's Eyes" (Penguin). A íntegra deste texto foi publicada no "New York Review of Books".
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.


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