São Paulo, domingo, 28 de abril de 2002

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A ENGRENAGEM DA DOMINAÇÃO


EM "JÚLIO CÉSAR", QUE SAI NESTA SEMANA PELA ED. ESTAÇÃO LIBERDADE, LUCIANO CANFORA REFAZ A REDE DE INTRIGAS QUE LEVARIA O FUTURO DITADOR ROMANO AO PODER


por Maria Sylvia Carvalho Franco

As coisas belas são difíceis", diz o adágio grego. "Júlio César - O Ditador Democrático", de Luciano Canfora, inscreve-se nesse horizonte. A multifária apreensão de sentidos e a crítica dos textos antigos e modernos, o recorte das fontes e seu agenciamento visando a focos interpretativos, sem estrito encadeamento linear, resultam em uma exigente experiência de leitura. Mas, à medida que nela se avança, a narrativa clara, não raro encantadora, atrai naturalmente a atenção necessária. Colabora para sustentá-la a fina tradução de Antonio da Silveira Mendonça, que não raro surpreende com a palavra exata capturando um veio irônico ou tom insólito. "Júlio César" pode ser lido em diferentes níveis: no plano do acontecer, a reconstrução histórica recolhe a dramaticidade própria à concepção teatral da política, e a crítica literária nutre a exposição historiográfica; no plano dos problemas pensados, a síntese dos caracteres particulares e universais os aproxima de nossa atualidade; no plano teórico, vemos constituir-se, in fieri, a trama do poder pessoal e das práticas autoritárias, abrangendo ampla gama de relações e vários prismas do imaginário. Todos esses registros aparecem modulados pelas atividades da consciência, pelo sistema socioeconômico e pelas formas da cultura, definindo processos estranhos às concepções deterministas e -problema central no livro- à necessidade, em certas situações históricas, do Um e da ditadura. A própria riqueza da pesquisa obriga-me a escolher apenas algumas situações para comunicar ao leitor os alvos de Canfora. Já de início, os diversos ângulos da investigação concretizam um episódio que, de outro modo, poderia limitar-se à crônica. Durante as represálias do ditador Sila, o jovem César (100? a.C.-44 a.C) opta por sair de cena e dedicar-se a estudos em Rodes, sendo, porém, na viagem, capturado por piratas. Quando refém, faz contatos cordiais com os sequestradores (oferece maior quantia que a exigida, dirige seus exercícios, compõe e lê poesias e discursos, trata-os jocosamente).

Astúcia de Ulisses
Pago o resgate, sua liberação dá-se com astúcia "digna de Ulisses": os piratas, induzidos a banquetear-se, embriagam-se; César os mata e recupera seu dinheiro. Consegue essa soma e os recursos para perseguir os sequestradores com o recolhimento de pecúnia pública, mas na qualidade de cidadão privado: supre e comanda navios sem estar investido de nenhuma função que o autorize a tanto. Ademais, César manda executar os prisioneiros, afrontando um alto mandatário romano presente na área, ávido por vendê-los como escravos; também, contra ele, defende a causa dos bitínios, alegando antigos vínculos de amizade, viga mestra da política romana: abandonar os clientes implicaria "grandíssima infâmia".
Esse episódio é reconstruído pelo autor de modo a evidenciar, na trama social e na conduta de César, técnicas de controle político que irão se desenvolvendo ao longo de sua carreira: astúcia e cálculo racional em situações conjunturais ou projetos de longo alcance; práticas demagógicas de sedução visando ao domínio despótico; mistura, em proveito próprio (particular e político), de vida privada e coisa pública; violência nos meios repressivos; corrupção pelo dinheiro e favores; montagem da rede de contraprestações e dominação pessoal.
De volta a Roma, a estratégia de César, comprometido com os populares, visa a restaurar as linhas de poder destruídas pelo tirano (como restituir aos tribunos da plebe suas prerrogativas), assentando as bases do próprio mando. Com esse alvo, exerce postos constitucionais e usa componentes simbólicos nucleares na representação tradicional e nas figuras emblemáticas dos políticos aniquilados por Sila. Canfora expõe o campo imagético explorado por César -o elogio fúnebre de sua tia materna, mulher de Caio Mário, venerado pelo povo-, ressaltando o significado crucial dessa "laudatio", a autoglorificação: se Júlia descendia de Anco Márcio, rei de Roma, e os Júlios, de Vênus, César sintetizava, em sua estirpe, "o caráter sagrado dos Reis (...) e a santidade dos deuses".
O sentido desse discurso completa-se com a crítica de sua transmissão por Suetônio, empenhado em salientar a ânsia de realeza colada à figura corrente de César como "aspirante desde sempre ao regnum". Nessa leitura, o contexto político, a ação individual e a exegese de fontes se enlaçam quase imperceptivelmente, constituindo, a um só tempo, o rigor da pesquisa e a polida forma literária.
Nos episódios acima nota-se o fulcro das interpretações de Canfora: o vaivém do sistema cultural aos contextos singulares, conjugados às atividades sensíveis, volitivas e racionais de indivíduos. Esse perpassar colhe, na biografia, a essência da política romana, dirigindo-se para o ponto nodal da discussão, a autocracia, sua necessidade ou contingência. Nesse entrecho é decisivo o conflito entre César e Pompeu, em que o leitor encontrará também, em substância, o apelo para refletir sobre nosso tempo: as alianças político-pragmáticas de César, ligado aos populares, com o chefe dos optimates; o peculato e o uso perverso do cargo por meio de "grandes obras" de impacto eleitoral; a coalescência entre público e privado. Nesse complexo situam-se, por exemplo, os espetaculares jogos de gladiadores organizados por César em memória do próprio pai, explorando a "primazia desses trágicos combatentes no imaginário violento do público romano".
Os custos dessas propagandas comprometeram a fortuna de César, depois refeita graças às guerras de conquista e à administração das Províncias. Endividou-se mais ainda com as práticas políticas dos potentados romanos, proporcionando donativos e favores, inclusive empréstimos a juros baixos ou nulos, à ampla corriola. Não se trata aí de mera dissipação de riqueza, constatando-se "uma lógica e um fio condutor em toda essa torrencial movimentação de dinheiro".
A campanha eleitoral para o primeiro consulado já evidencia, no candidato, os dotes e condutas pessoais conformes aos padrões vigentes. Assim, intuindo as chances abertas pelo mais fraco dos candidatos, o riquíssimo Luceio, César propôs uma coalizão: seu concorrente "compraria os votos nas centúrias em nome dos dois, pagaria sozinho e pediria os votos em nome de ambos". Alarmados, os optimates recorreram às mesmas armas, oferecendo quantias iguais ou maiores.


Nessa via, desenha-se o perfil ditatorial: domínio dos comportamentos de massa, oportunismo nas alianças, clemência astuciosa e dureza implacável


Consultado sobre tal atitude, o "integérrimo Catão (...), suprema consciência moral da coligação das "pessoas de bem", disse que (...) aquele mercado de votos era legítimo porque realizado de acordo com o interesse do Estado". O rigoroso varão e seu austero sobrinho Bruto apresentavam (como hoje) a imagem de impecáveis, encobrindo políticas viciosas e valendo-se, para tanto, das instituições cívicas. A corrupção política, endêmica em Roma, cobra ânimo na reconstituição de Canfora e surge diante de nossos olhos nos dramas desempenhados por seus atores. Se as alianças de parentesco eram correntes na sociedade romana, o autor atinge seu âmago ao deslindar o tráfico entre relações familiares e interesses políticos, nada menos, por exemplo, que nas tratativas do pacto triunviral. Sendo indispensável, nesse passo, consolidar as relações entre César e Pompeu, este acabou por tornar-se tributário do primeiro, casando-se com sua filha Júlia. Esta, para desposar o aliado do pai, deixou seu marido, cuja indignação foi aplacada por Pompeu, que, por seu turno, deu-lhe em casamento a própria filha, a qual, por sua vez, era esposa de um filho de Sila. Tais barganhas bem serviram aos pactários: significativamente, Pompeu rompeu uma aliança com o ditador para vincular-se ao arquiteto do triunvirato; César cumpriu sua parte casando-se com a filha de um futuro cônsul a ser eleito por meio de acordos estabelecidos pelos triúnviros. Se eram usuais as transações político-familiares nos grupos dirigentes romanos, nesses casos as permutas exacerbaram-se num emaranhado de violência afetiva e cálculo oportunista, em que as mulheres aparecem como puro meio de troca, transmissoras de poder e riqueza.

Atravessar os estereótipos
As evidências trazidas por Canfora atravessam camadas de estereótipos, atingindo expressões que se tornaram proverbiais, como "não basta à mulher de César ser honesta, é preciso que o pareça", ditado que nos habituamos a julgar como exigente apelo ao decoro. Tal frase assume sentido inverso no contexto político que a suscitou, relativo ao controle das massas urbanas e a um de seus agitadores, Clódio. Este, talvez numa aventura galante, imiscuiu-se na casa de César, recém-eleito pontífice máximo, durante a celebração de uma festa religiosa exclusiva para mulheres. Estas o expulsaram, correndo a notícia de que tentara atos sacrílegos. Acusado de impiedade por um dos tribunos, os senadores sustentaram essa denúncia, enquanto o povo o apoiou diante dos jurados, temerosos da multidão. Nesse enredo, César repudiou sua esposa, Pompéia, mas, chamado para depor em juízo, disse nada saber das coisas imputadas a Clódio. "Como sua fala pareceu estranha, o acusador lhe perguntou: "Por que então repudiaste a esposa", e ele: "Porque pensava que nem mesmo a suspeita deve roçar minha mulher'". (Plutarco, "César",10). A conduta de César visa a livrá-lo de situação perigosa: simpatizante epicurista, conhecia o peso do controle teológico-político e, por isso mesmo, tornou-se "Pontífex Maximus"; além disso, estava ligado aos populares e ao próprio Clódio, tribuno da plebe eleito com a sua ajuda. Nesse inflamável campo de forças -de um lado, um crime religioso, e, de outro, um aliado político incômodo-, César encontrou escapatória repudiando a esposa e pretextando ignorância: nesse passo, a exigência de moralidade revela-se ardil político. A emergência da autocracia no cenário de crises e corrupções políticas é acompanhada por Canfora desde a conjuração de Catilina, passando pela carreira militar e política de César, pelas alianças e confrontos com Pompeu, pelas vicissitudes e efeitos do triunvirato. Nessa via, desenha-se o perfil ditatorial: perspicácia na exploração do imaginário, domínio dos comportamentos de massa, atenção aos limites da política popular, oportunismo nas alianças, audácia e cautela, clemência astuciosa e dureza implacável. A longo prazo, seus atos consolidaram o poderio de Roma e o seu próprio despotismo; no plano imediato, afastando seu colega consular,"César governou sozinho e a seu talante". A conquista e colonização da Gália foi uma escolha hábil: permitiu-lhe mobilizar o aspecto emblemático das vitórias de Caio Mário, prenhes no imaginário popular; autorizou-o a estabelecer clientelas provinciais e a implementar sua propaganda; ofereceu-lhe a liderança na expansão romana no Ocidente, associando a imagem do chefe de partido à do guerreiro e comandante inigualáveis. A Gália foi "instrumento e base para o aspirante a "princeps'", mudando o referente social de sua política: "As massas militares em lugar da massa urbana". Junto ao carisma de César, a repressão aos vencidos, num paroxismo genocida e escravizador de multidões, repercutiu em Roma: o Senado "concedeu em honra da carnificina de César uma "supplicatio" colossal". O "Livro Negro" dessa empresa imperialista traz à lembrança os extermínios modernos e sua função na política interna e nas relações exteriores das potências atuais. A figura militar e política de César tornou-o capaz de medir-se com Pompeu, seguindo-se, no livro de Canfora, as lutas e manobras que levaram à instauração da ditadura. Nessas análises, a expansão imperialista e a guerra civil constituem deliberada escolha política, remédio para as catástrofes socioeconômicas e desfecho dos dilemas de César. O poder ditatorial é gestado em subversões de largo escopo, em projetos e atos conscientes, definidos pelos protagonistas. As crises dramáticas em que ruiu a velha "res publica" aristocrática são minuciosamente reconstruídas sem teleologias, destacando-se a política populista, o uso dos Exércitos, a longa expansão planetária da guerra e do clientelismo, a corrupção do poder pessoal, a mistura entre público e privado, as aspirações à tirania, as alianças eleitorais, a propaganda, a fabricação do inimigo interno, a violência potencial das massas armadas e outros problemas candentes, então como hoje. No centro desse vórtice está César, cuja carreira sangrenta, contida entre duas conjurações e uma interminável guerra civil, "representa adequadamente o sofrimento com que a república aristocrática e imperialista cedeu o passo, vendendo caro ao poder pessoal a própria pele".

Trombeteiro gigantesco
O subtítulo do livro ("O Ditador Democrático") colhe esses aspectos, sintetizados no momento em que, ameaçada por acidentes, dúvidas e hesitações, é decidida a passagem do Rubicão. César teria, na ocasião turva e incerta, usado um estratagema prodigioso, capaz de provocar o ímpeto de suas tropas, recorrendo a um trombeteiro gigantesco que, súbito, prorrompeu no toque de batalha. Nessa atmosfera excitada, César pronunciou o audacioso "atire-se o dado". Essa encenação, lembra Canfora, pode ser imitada de Pisístrato, que, voltando a Atenas para restabelecer a tirania, colocou no carro uma jovem bela e altíssima, suposta Atena conduzindo-o à cidade. "Somos tentados a pensar que César conhecia bem a célebre história desse tirano democrático" ("demotikótatos", cf. Aristóteles, "Constituição de Atenas",14, 4), cujo perfil apresenta traços que o aproximam do romano.
O longo fio que atravessa os tempos é apanhado pelo autor sem nenhum tom anacrônico. O convite à reflexão sobre a nossa própria época imperialista, violenta, ditatorial, escravizadora, corrupta, é deixado para que o leitor o aceite ou decline: "De te fabula narratur" (a fábula fala de ti). O Júlio César de Luciano Canfora dirige-se tanto ao pesquisador quanto ao cidadão empenhado em compreender e ajuizar o mundo onde vive. Aparece entre nós em momento oportuno, em uma conjuntura eleitoral em que suas análises fazem pleno sentido. É leitura imprescindível pela magnitude dos problemas propostos e pela mestria em tratá-los.


A obra
"Júlio César", de Luciano Canfora. Tradução de Antonio da Silveira Mendonça. Ed. Estação Liberdade (r. Dona Elisa, 116 , CEP 01155-030, SP, tel. 0/xx/11/3661-2881). 512 págs., R$ 48,00.

Maria Sylvia Carvalho Franco é professora titular de filosofia da Universidade Estadual de Campinas e autora de, entre outros, "Homens Livres na Ordem Escravocrata" (ed. Unesp).


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