São Paulo, domingo, 28 de abril de 2002

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RETRATO DE UMA SENHORA


DEDICADO A VIRGINIA WOOLF, "RAINHA VITÓRIA", DE LYTTON STRACHEY, CAPTA A CONSOLIDAÇÃO DA MORAL VITORIANA EM SUA OBSESSÃO PELA ETIQUETA E PELO PUDOR


por Peter Burke

A biografia escrita por Lytton Strachey (1880-1932) sobre a rainha Vitória, que governou a Grã-Bretanha de 1837 a 1901, foi publicada pela primeira vez na Inglaterra em 1921. Cerca de 5.000 exemplares do livro foram vendidos nas 24 horas seguintes à sua publicação, portanto "Rainha Vitória" deve ter surgido no lugar certo e na hora certa. Na verdade, Virginia Woolf, a amiga de Strachey a quem o volume é dedicado, confessou ter sentido certa inveja desse êxito.
Um motivo para a rapidez do sucesso foi a reputação do autor, estabelecida três anos antes por seu "Eminent Victorians", uma coletânea de quatro minibiografias de personagens vitorianas. Os eminentes vitorianos descritos, para não dizer dissecados, nesse livro são o educador Thomas Arnold (1795-1842) -virtualmente o inventor da tradicional "escola pública" britânica-, o cardeal Manning (1808-92) -um intransigente defensor da doutrina da infalibilidade papal-, a reformadora dos hospitais Florence Nightingale (1820-1910) e o general Charles Gordon (1833-85), que morreu defendendo o domínio britânico no Egito contra os milenares rebeldes muçulmanos liderados pelo Mahdi, uma espécie de Antônio Conselheiro egípcio.
O que atraiu a atenção do público para o livro de Strachey, além de sua prosa viva, fluente e inteligente, foi a abordagem irreverente. Esses quatro dignos vitorianos foram virtualmente ídolos em suas épocas, mas a abordagem que Strachey fez deles é radicalmente iconoclasta. Seus ensaios-biografias, ou retratos literários, tinham muito a dizer sobre as fraquezas de seus sujeitos.
De fato, a ênfase do livro é mais para a fraqueza do que para a grandeza, as paixões privadas dessas figuras públicas. Assim como outros membros da rede de intelectuais, artistas e escritores liberais de esquerda hoje conhecida como Grupo Bloomsbury (Virginia Woolf entre eles), Strachey conhecia bem a obra de Freud e usou eficazmente idéias freudianas em suas pequenas biografias. Sua intenção era subversiva: zombar e assim destruir o "vitorianismo", um sistema de valores que ele, o grupo Bloomsbury e alguns outros rebeldes consideravam rígido e repressor.
Ocorrendo no final da Primeira Guerra Mundial, que havia abalado ou mesmo destruído o tradicional sistema social britânico, o ataque de Strachey ao vitorianismo foi oportuno e ainda mais eficaz porque partiu de dentro. O próprio Strachey foi um vitoriano que tinha 21 anos quando a velha rainha (1819-1901) morreu. Poder-se-ia dizer que foi um vitoriano antivitoriano.
"Rainha Vitória" seguiu as linhas mestras de seu antecessor. O livro foi ainda mais ousado em sua intenção porque a crítica pública da monarquia ainda era virtualmente tabu na Grã-Bretanha, mesmo nos irreverentes e hedonistas anos 20. Porém Strachey foi um pouco mais tímido em sua execução do que fora em "Eminent Victorians". O autor mais tarde explicou que seu objetivo tinha sido conduzir o que ele chamou de "rumo correto entre discrição e indiscrição".
O que é considerado discrição ou indiscrição depende, é claro, da cultura e da época em questão, e em 2002 tanto os leitores britânicos quanto os brasileiros provavelmente pensarão que o autor foi discreto demais (na década de 30 Strachey também veio a pensar assim). Por isso, talvez seja válido chamar a atenção para algumas pistas e alusões que provavelmente surpreenderam ou chocaram os primeiros leitores de "Rainha Vitória", habituados ao estilo hagiográfico dos retratos oficiais da rainha.
Em primeiro lugar, a irreverência relativamente discreta de Strachey se expressa em suas referências ao "egoísmo" da rainha e especialmente nos relatos de sua vida emocional. A palavra "sexo" não é usada, mas um espaço considerável é dedicado ao interesse da jovem Vitória por belos jovens, sua paixão pelo príncipe Albert e, na maturidade, sua relação especial com o criado escocês John Brown (herói de um recente filme de sucesso britânico).
O "desagrado marcante pelo sexo oposto" de Albert é registrado (uma característica que o próprio Lytton Strachey compartilhava com o príncipe consorte). As discussões de Vitória com Albert não são esquecidas, incluindo a ocasião em que ele se trancou no quarto, furioso, e ela bateu com raiva na porta. "Quem está aí?", perguntou ele. "A rainha da Inglaterra", foi a resposta. A porta continuou fechada até que Vitória deu a resposta "certa": "Sua mulher, Albert". O biógrafo se permite zombar delicadamente de sua heroína. Vitória e Albert, que os britânicos de modo geral acreditavam formar um casal ideal, foram tranquilamente removidos de seus pedestais.
Em segundo lugar, Strachey ao mesmo tempo enfatiza e, pelo menos nas entrelinhas, critica o que a sra. Thatcher (cuja personalidade não é muito diferente da de Vitória, pelo menos em suas piores facetas) gosta de chamar de "valores vitorianos". A obsessão de Vitória pela hierarquia e a etiqueta é ilustrada por diversas anedotas vívidas. Aos 6 anos, ela disse à sua colega de brincadeiras lady Jane Ellice: "Eu posso chamá-la de Jane, mas você não deve me chamar de Vitória". Aos 18, ela desejou dançar com o conde Waldstein, mas não pôde, porque ele não sabia dançar quadrilha "em minha posição"; como disse a jovem princesa, era impossível valsar. Durante a maior parte de seu reinado ela não permitiu que os primeiros-ministros se sentassem em sua presença, mesmo quando um deles estava se recuperando de uma doença grave e recente.
Outra obsessão da rainha era a pontualidade. Outra ainda era pela pureza moral e a propriedade. Se alguém dissesse alguma coisa imprópria em sua presença, "os lábios reais descaíam nos cantos, os olhos reais ficavam fixos", e seguia-se a frase inevitável: "Não estamos achando graça". Vitória não inventou o vitorianismo, mas certamente o encarnou. Strachey não dedica muito


Às vezes, de fato, a biografia lembra um romance, especialmente os dos anos 20, como "Ulisses", de Joyce, ou "Sra. Dalloway", de Virginia Woolf


espaço à disseminação dos valores vitorianos, mas o que ele diz é ao mesmo tempo inteligente e perspicaz.
Ao descrever o triunfo da "indústria, da moralidade e da domesticidade" na década de 1840, por exemplo, ele comenta que "até as próprias cadeiras e mesas tinham assumido, com uma singular prontidão, formas de pudica solidez". Lembremos o que Gilberto Freyre (1900-1987) escreveria alguns anos depois sobre os móveis ingleses: "Essas linhas anglicanamente secas".
Ou a brilhante descrição do século 19 em termos da disseminação do frio e da umidade com que Virginia Woolf abriu o quinto capítulo de seu "Orlando" (1929): "Os homens sentiam o frio em seus corações; a umidade em suas mentes".
Diversos livros mais informados e acadêmicos sobre Vitória e seu reinado surgiram nos cerca de 80 anos passados desde a publicação da biografia de Lytton Strachey. No entanto este se tornou um clássico inglês, que bem merece sua recente publicação no Brasil, com um prefácio de Luciano Trigo que recoloca o livro em seu contexto original. Se o autor teria ficado satisfeito ou chocado com o seu sucesso é difícil dizer; provavelmente um pouco de cada. Em todo caso, ainda vale a pena ler "Rainha Vitória". Não tanto como obra histórica (embora o autor tenha efetuado uma pesquisa séria), mas por conta de suas vívidas caracterizações, das anedotas reveladoras, de sua sensibilidade para o bizarro e o cômico e sobretudo por sua narrativa fluente, comparável à dos romances clássicos.
Às vezes, de fato, a biografia lembra um romance, especialmente os dos anos 20, como "Ulisses", de Joyce, ou "Sra. Dalloway", de Virginia Woolf. Ela termina com uma passagem maravilhosa (que teria sido escrita antes do resto do livro), em que Strachey, narrando a morte de Vitória, imagina seus últimos pensamentos "nas câmaras secretas da consciência... revendo, através da nuvem dos anos, lembranças cada vez mais antigas"; até "o rosto de Albert sob a lâmpada verde... e o arcebispo de Canterbury de joelhos ao amanhecer... e as plumas de sua mãe caindo na direção dela... e um tapete amarelo... e as árvores e a grama em Kensington".


A obra
"Rainha Vitória", de Lytton Strachey. Tradução de Luciano Trigo. Ed. Record (r. Argentina, 171, CEP 20921-380, RJ, tel. 0/xx/21/ 2585-2000). 384 págs., R$ 40,00.

Peter Burke é historiador inglês, autor de "Variedades de História Cultural" (Civilização Brasileira) e "O Renascimento Italiano" (Nova Alexandria). Escreve regularmente na seção "Autores", do Mais!.
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.


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