São Paulo, domingo, 28 de abril de 2002

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Um dos romances clássicos do século 20, "Os Thibault", de Roger Martin du Gard, acompanha a decadência de uma família burguesa durante a Primeira Guerra e a desilusão com a religião e o socialismo

A IMAGINAÇÃO DO DESASTRE

José Maria Cançado
especial para a Folha

Já em 1955, Albert Camus defendia a permanência e a forma romanesca de "Os Thibault", dizendo, com Gustave Flaubert, que as grandes obras são "como os animais", parecendo "tranquilas". Já então, este romance (que no Brasil começou a ser publicado em 1941), suscitava incredulidade: como se a sua índole confiantemente realista, o seu desígnio de ser fiel ao que a história do século 20 criou no coração e nas ações humanas e ao que estas criaram na história do século 20, e a sua forma, que aspira ter a escala, o andamento e as conflagrações da realidade histórica, não se sustentassem mais.
A desconfiança faz sentido: a história do século passado, com as duas guerras, o mal absoluto dos campos de extermínio nazistas, a bomba nuclear, os totalitarismos e a lógica do imperialismo, parece ter rompido, do seu lado, sua correspondência com a forma do romance, irmão siamês e meio desavindo do indivíduo. E o próprio romance, apanhado por historicidades mais elípticas, desconhecidas do romance realista do século 19, também parece ter rompido o jogo.
Contudo, 80 anos depois da publicação na França dos primeiros volumes da série ("O Caderno Gris" e "A Penitenciária", ambos de 1922) e a cada nova leitura, juramos que o romance de Roger Martin du Gard (1881-1958) não só continua imperturbável na sua força mas também sentimos que essa força é também a nossa. Mais: sua forma, seu travejamento amplo, que vai da origem individual de classe dos personagens às trincheiras enlameadas da Primeira Guerra, essa imantação misteriosa entre história e trajetória individual, constituem muito da nossa sensibilidade, da nossa rede de compreensão, nossa ordem de adesões e recusas e mesmo a nossa moral. Difícil se separar do mundo de Roger Martin du Gard sem nos separarmos do que temos de melhor.
Filho da bem-composta burguesia francesa do século 19, de uma família de magistrados e financistas, o mundo de Roger Martin du Gard é um destes que podia até não estar interessado na história, mas que veio a perceber que a história estava interessada nele, até para extingui-lo. Seu primeiro romance, "Devenir!", de 1908, já é a exposição, numa vida individual, à adversidade anônima dos outros e do enredo recalcado, mas decisivo, do mundo social. "Jean Barois", de 1913, romance de uma alma que quer provar a si mesma, abandonando a fé religiosa em nome da ciência, e escrito quase como o documentário de uma subjetividade e de uma época, é como que o último instantâneo de uma era que iria desaparecer nos anos seguintes da guerra. Nenhuma exultação aí: Roger Martin du Gard não é desses escritores autoliquidacionistas que davam de barato sua origem de classe, o mundo em que se formaram, os valores e mesmo as ilusões deste. Apenas os via atingidos na configuração social, política e histórica com que os conheceu.

Conflagração histórica
"Os Thibault" é essa configuração levada ou exposta ao máximo: o máximo da forma e da índole do romance realista e o máximo de conflagração histórica. Nele, o que no início se respira é o ar da burguesia católica francesa do início dos novecentos, representada na figura tão xaroposa quanto institucional, tão balofa quanto normativa (própria daquele catolicismo auto-satisfeito), do Père Thibault. Em seguida a esse ar, essa arrumação devota, mas intolerante, da fé, da vida, dos Evangelhos, e que são os do velho Thibault, Roger Martin du Gard nos coloca diante dos episódios da sexualidade (no caso do filho caçula, Jacques, cujo homossexualismo de reformatório para adolescentes é sugerido de maneira magistral pelo autor) e da paixão naturalista, científica, exploratória, do filho mais velho, Antoine, recém-formado em medicina. Esse catolicismo instituinte do pai, a sexualidade de Jacques, que é tomada não pelo lado do que é, mas do que provoca, e o élan de emancipação pela razão e o conhecimento de Antoine estavam lá, nesse mundo social de antes da guerra de 14 -não foram inventados. Esse o sentido do realismo de Roger Martin du Gard. E a sua fidelidade a isso, uma fidelidade que não é devocional, mas humana, torna-o capaz de compreensão de tudo o que não é isso. Esse o sentido e a origem da sua "imaginação do desastre": sabia que aquele mundo estava ameaçado e entrevia o que o ameaçava. Não há grande romancista sem essa "imaginação do desastre". É no quadro dela que vão se mover, sobretudo a partir do início da guerra (período que corresponde, na série, ao terceiro, ao quarto e ao último volumes, todos com o título comum "Verão de 1914"), o Père Thibault, Jacques, Antoine e mais quase uma dezena de outros -como Jenny, que virá a sentir por Jacques uma paixão seca, ardente, nada condescendente nem com ela nem com Jacques nem com a sua própria paixão, e na qual o amor vai ganhar essa feição quase intransitiva e rígida do sublime amoroso. O velho Thibault reencontra a sua fé para lá do Deus que foi o seu -e tardiamente. Jacques vai presenciar os socialistas, de quem se aproximara pelo caminho do pacifismo, capitularem diante dos senhores da guerra e traírem a revolução: assim, ele, que chegara a esta pelas forças do êxtase, sente que não poderá suportar o que não for esse êxtase e não suportará também a vida depois disso. Roger Martin du Gard sabe que isso pode ser uma bela morte, mas nem sempre é boa política: é esse dilema, contudo -essa hesitação que não hesita, essa natureza anticálculo dos personagens de um gênero que nasceu justamente na sociedade mercantil-, que faz a grandeza do romance, e deste aqui de forma inconfundível. E por fim, Antoine, o homem não do êxtase da revolução, mas da vida e da cura, vai morrer pelo efeito devastador dos gases de mostarda aspirados no campo de batalha. Mas isso não sem antes reencontrar na memória o único episódio da sua vida de que é o exclusivo depositário: o sexo clandestino e consumado uma única vez com a "pequena argelina". É abraçado a essa recordação, a esse episódio de que ele é o único guardião, vinheta só inteligível na sua memória e aninhada só no seu corpo, que não existe para mais ninguém, que ele decide se matar. Num romance multitudinário, de tantos personagens, cuja matéria movente é a história, Antoine decide ser isso, só isso. Essa individuação absurda é comovente.

Épica da solidão
Provavelmente sentimos a força dessa individuação, da fidelidade absoluta de Jacques a algo que o trairá, do signo rigidamente sublime em que se move a vida de Jenny e de outras tantas coisas que nos parecem hoje meio desorbitadas porque nós as lemos em alguns romances como os de Roger Martin du Gard. De fato ele criou uma modalidade épica feita de solidão e pertencimento, de perda da esperança e esperança, de adversidade da história e de ação humana na história. Mas, mesmo que não as reencontremos em nenhum lugar senão nestes romances, elas serão menos verdadeiras e constituidoras de um mundo além do qual teremos dificuldade de enxergar.


José Maria Cançado é jornalista e autor da biografia de Carlos Drummond de Andrade "Os Sapatos de Orfeu" (ed. Scritta).


Os Thibault
R$ 85,00 (a caixa com cinco volumes) de Roger Martin du Gard. Trad. Casemiro Fernandes. Globo (av. Jaguaré, 1.485, CEP 05346-902, SP, tel. 0/ xx/11/ 3362-2000).



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