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Um dos romances clássicos do século 20, "Os Thibault", de Roger Martin du Gard, acompanha a decadência de uma família burguesa durante a Primeira Guerra e a desilusão com a religião e o socialismo
A IMAGINAÇÃO DO DESASTRE
José Maria Cançado
especial para a Folha
Já em 1955, Albert Camus defendia a
permanência e a forma romanesca
de "Os Thibault", dizendo, com Gustave Flaubert, que as grandes obras
são "como os animais", parecendo
"tranquilas". Já então, este romance (que
no Brasil começou a ser publicado em
1941), suscitava incredulidade: como se a
sua índole confiantemente realista, o seu
desígnio de ser fiel ao que a história do
século 20 criou no coração e nas ações
humanas e ao que estas criaram na história do século 20, e a sua forma, que aspira
ter a escala, o andamento e as conflagrações da realidade histórica, não se sustentassem mais.
A desconfiança faz sentido: a história
do século passado, com as duas guerras,
o mal absoluto dos campos de extermínio nazistas, a bomba nuclear, os totalitarismos e a lógica do imperialismo, parece ter rompido, do seu lado, sua correspondência com a forma do romance, irmão siamês e meio desavindo do indivíduo. E o próprio romance, apanhado por
historicidades mais elípticas, desconhecidas do romance realista do século 19,
também parece ter rompido o jogo.
Contudo, 80 anos depois da publicação
na França dos primeiros volumes da série ("O Caderno Gris" e "A Penitenciária", ambos de 1922) e a cada nova leitura, juramos que o romance de Roger
Martin du Gard (1881-1958) não só continua imperturbável na sua força mas
também sentimos que essa força é também a nossa. Mais: sua forma, seu travejamento amplo, que vai da origem individual de classe dos personagens às trincheiras enlameadas da Primeira Guerra,
essa imantação misteriosa entre história
e trajetória individual, constituem muito
da nossa sensibilidade, da nossa rede de
compreensão, nossa ordem de adesões e
recusas e mesmo a nossa moral. Difícil se
separar do mundo de Roger Martin du
Gard sem nos separarmos do que temos
de melhor.
Filho da bem-composta burguesia
francesa do século 19, de uma família de
magistrados e financistas, o mundo de
Roger Martin du Gard é um destes que podia até não estar interessado na história, mas que veio a perceber que a história estava interessada nele, até para extingui-lo. Seu primeiro romance, "Devenir!", de 1908, já é a exposição, numa vida individual, à adversidade anônima dos
outros e do enredo recalcado, mas decisivo, do mundo social.
"Jean Barois", de 1913, romance de
uma alma que quer provar a si mesma,
abandonando a fé religiosa em nome da
ciência, e escrito quase como o documentário de uma subjetividade e de uma
época, é como que o último instantâneo
de uma era que iria desaparecer nos anos
seguintes da guerra. Nenhuma exultação
aí: Roger Martin du Gard não é desses escritores autoliquidacionistas que davam
de barato sua origem de classe, o mundo
em que se formaram, os valores e mesmo
as ilusões deste. Apenas os via atingidos
na configuração social, política e histórica com que os conheceu.
Conflagração histórica
"Os Thibault" é essa configuração levada ou exposta ao máximo: o máximo da forma e da índole do romance realista e o máximo de conflagração histórica. Nele, o que no início se respira é o ar da burguesia
católica francesa do início dos novecentos, representada na figura tão xaroposa
quanto institucional, tão balofa quanto
normativa (própria daquele catolicismo
auto-satisfeito), do Père Thibault. Em seguida a esse ar, essa arrumação devota,
mas intolerante, da fé, da vida, dos Evangelhos, e que são os do velho Thibault,
Roger Martin du Gard nos coloca diante
dos episódios da sexualidade (no caso do
filho caçula, Jacques, cujo homossexualismo de reformatório para adolescentes
é sugerido de maneira magistral pelo autor) e da paixão naturalista, científica, exploratória, do filho mais velho, Antoine,
recém-formado em medicina.
Esse catolicismo instituinte do pai, a
sexualidade de Jacques, que é tomada
não pelo lado do que é, mas do que provoca, e o élan de emancipação pela razão
e o conhecimento de Antoine estavam lá,
nesse mundo social de antes da guerra de
14 -não foram inventados. Esse o sentido do realismo de Roger Martin du Gard.
E a sua fidelidade a isso, uma fidelidade
que não é devocional, mas humana, torna-o capaz de compreensão de tudo o
que não é isso. Esse o sentido e a origem
da sua "imaginação do desastre": sabia
que aquele mundo estava ameaçado e
entrevia o que o ameaçava.
Não há grande romancista sem essa
"imaginação do desastre". É no quadro dela que
vão se mover, sobretudo a
partir do início da guerra
(período que corresponde, na série, ao terceiro, ao
quarto e ao último volumes, todos com o título
comum "Verão de 1914"),
o Père Thibault, Jacques,
Antoine e mais quase uma dezena de outros -como Jenny, que virá a sentir por
Jacques uma paixão seca, ardente, nada
condescendente nem com ela nem com
Jacques nem com a sua própria paixão, e
na qual o amor vai ganhar essa feição
quase intransitiva e rígida do sublime
amoroso.
O velho Thibault reencontra a sua fé
para lá do Deus que foi o seu -e tardiamente. Jacques vai presenciar os socialistas, de quem se aproximara pelo caminho do pacifismo, capitularem diante
dos senhores da guerra e traírem a revolução: assim, ele, que chegara a esta pelas forças do êxtase, sente que não poderá
suportar o que não for esse êxtase e não
suportará também a vida depois disso.
Roger Martin du Gard sabe que isso pode ser uma bela morte, mas nem sempre
é boa política: é esse dilema, contudo
-essa hesitação que não hesita, essa natureza anticálculo dos personagens de
um gênero que nasceu justamente na sociedade mercantil-, que faz a grandeza
do romance, e deste aqui de forma inconfundível.
E por fim, Antoine, o
homem não do êxtase da
revolução, mas da vida e
da cura, vai morrer pelo
efeito devastador dos gases de mostarda aspirados
no campo de batalha. Mas
isso não sem antes reencontrar na memória o
único episódio da sua vida de que é o exclusivo depositário: o sexo clandestino e consumado uma única vez com a "pequena argelina". É abraçado a essa recordação, a esse episódio de que ele é o único guardião, vinheta só inteligível na sua
memória e aninhada só no seu corpo,
que não existe para mais ninguém, que
ele decide se matar. Num romance multitudinário, de tantos personagens, cuja
matéria movente é a história, Antoine
decide ser isso, só isso. Essa individuação
absurda é comovente.
Épica da solidão
Provavelmente sentimos a força dessa individuação, da
fidelidade absoluta de Jacques a algo que
o trairá, do signo rigidamente sublime
em que se move a vida de Jenny e de outras tantas coisas que nos parecem hoje
meio desorbitadas porque nós as lemos
em alguns romances como os de Roger
Martin du Gard. De fato ele criou uma
modalidade épica feita de solidão e pertencimento, de perda da esperança e esperança, de adversidade da história e de
ação humana na história. Mas, mesmo
que não as reencontremos em nenhum
lugar senão nestes romances, elas serão
menos verdadeiras e constituidoras de
um mundo além do qual teremos dificuldade de enxergar.
José Maria Cançado é jornalista e autor da biografia de Carlos Drummond de Andrade "Os Sapatos de Orfeu" (ed. Scritta).
Os Thibault
R$ 85,00 (a caixa com cinco
volumes) de Roger Martin du Gard. Trad.
Casemiro Fernandes. Globo (av.
Jaguaré, 1.485, CEP 05346-902,
SP, tel. 0/ xx/11/ 3362-2000).
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