São Paulo, domingo, 28 de abril de 2002

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Imobilidade.
Aquele cérebro que, dia e noite, durante quase três quartos de século, não cessara um instante de associar, uns aos outros, pensamentos e imagens, deixara de funcionar, para sempre. O coração também. Mas o cessar do pensamento parecia empolgar de diferente maneira a Jacques, que tantas vezes se queixara, como de um sofrimento, da atividade ininterrupta de seu próprio cérebro! (Mesmo à noite, desligado pelo sono, ele o sentia, àquele cérebro, como um motor louco, a rodar, a rodar em seu crânio, a amontoar precipitadamente aquelas incoerentes visões de caleidoscópio, a que chamava "sonhos" quando sua memória, de passagem, lhe retinha alguns fragmentos.) Um dia, por felicidade, esse trabalho exaustivo cessaria de todo. Um dia, ele também ficaria livre do tormento de pensar. Viria o silêncio, finalmente; o repouso no silêncio!... Lembrou-se daquele cais de Munique onde certa vez passeara, até altas horas, uma fascinante tentação de suicídio... Uma frase, como uma reminiscência musical, cantou-lhe de repente na memória: Descansaremos... Era a frase final de uma peça russa que vira representar em Genebra; guardava ainda no ouvido a voz da artista, uma eslava de rosto de criança, com olhos cândidos e febris, que repetia balançando a cabecinha: Descansaremos... Uma entonação sonhadora, um som alongado como um acordeon, acompanhado de um olhar fatigado, onde havia, na verdade, muito mais de resignação que de esperança: Não tiveste alegrias na vida... Paciência, tio Vania, paciência... Descansaremos... Descansaremos...

Trecho extraído do segundo volume de "Os Thibault", de Roger Martin du Gard, em tradução de Casemiro Fernandes.


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