São Paulo, domingo, 28 de abril de 2002

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Em "Quebra da Fé", John Cornwell aborda os dilemas da Igreja Católica, como o celibato e o sincretismo

A ameaça da adulteração

Antonio Marchionni
especial para a Folha

Entre jornalístico, doutrinário e aparentemente panfletário, o livro "Quebra da Fé - O Papa, o Povo e o Destino do Catolicismo", escrito por John Cornwell, autor de "O Papa de Hitler", merece ser lido, ainda que algumas ironias do autor possam indispor algum leitor "tradicionalista". Se não convence, o livro pelo menos constitui uma suma de questões entre as mais relevantes na Igreja Católica. Agradável em seu estilo jornalístico e munido de vasta bibliografia, o estudo articula três categorias de fundo: a agressiva divisão dos católicos em progressistas e conservadores, a adulteração do culto e da doutrina, o desequilíbrio entre o centralismo romano e o desejo de descentralização decisória na igreja. A profunda divisão entre conservadores e progressistas no catolicismo é um drama que, se não for resolvido, significará o colapso da fé católica. O livro dá sinais inequívocos de estar ao lado das teses progressistas contra o conservadorismo encabeçado pelo papa João Paulo 2º num Vaticano inquisitorial. As duas frentes, carregadas pelas rápidas mudanças culturais em curso, cerram fileiras, cada qual ao redor de seus próprios instrumentos: congressos, editoras, emissoras rádio-televisivas, associações, movimentos. Multiplicam-se as facções entre bispos e entre leigos sobre temas conhecidos: a aplicação do Vaticano 2º, ortodoxia, autoridade papal, nomeação dos bispos, papel das mulheres e dos leigos, moral sexual e matrimonial, "obediência zero" à hierarquia, pluralismo religioso. O papa, indubitavelmente sinal e garantia de unidade na igreja, sofre um desgaste crescente na adesão dos fiéis ao seu ensinamento. Sobreviverá a Igreja Católica como a mais antiga, mais universal, mais coesa e mais numerosa instituição da humanidade? Conseguirá a Igreja Católica deter a diluição da crença, não obstante mostre atualmente um imenso dinamismo de ação social em temas de esperança, amor, justiça? O livro não sabe se e como tal divisão será resolvida. Prudentemente, Cornwell torce em favor da tese do cardeal Martini de Milão: um novo concílio. O autor, jornalista inglês descendente de irlandeses, declara-se católico para todos os efeitos: seminarista até a filosofia num primeiro tempo, agnóstico por 20 anos, praticante atualmente. Nos primeiros capítulos do livro, após ter enfileirado "as trevas" nas quais a "agonia" do papado reinante mergulhou a igreja, entre as quais o encolhimento das vocações sacerdotais e a diminuição da frequência aos sacramentos, o autor reafirma com vigor sua intenção de crítica construtiva em prol da "nossa igreja". "Reafirma", pois, o livro anterior sobre a política filo-nazista do papa Pacelli -que levara alguns conservadores a defini-lo "católico de mentirinha".

"De baixo para cima"
Mesmo parecendo impiedoso com os tradicionalistas, o livro apresenta páginas apaixonadamente doutrinárias, lamentando com os conservadores aquilo que chama "a grande adulteração". Discursa sobre as imagens pré e pós-conciliares da igreja, mostra a transição abortada de uma igreja "de cima para baixo" para uma igreja "de baixo para cima", cujo emblema foi a teologia da libertação, apresenta a denúncia da teologia feminista a respeito da linguagem institucional centrada no homem. Mas a grande adulteração se deu na deterioração do culto católico: nostálgico da solenidade sóbria do culto e dos corais litúrgicos substituídos por "Kumbayá" e "Miguel, reme o barco para a margem", o autor sente-se num deserto cultual e estético: missas em mesa de bar, missas com dançarinas, missas sentimentalóides como terapia de auto-ajuda, missas de crianças nas quais o sacerdote se veste de mágico, padres católicos concelebrando com ministras luteranas, missas como brinquedo de seus celebrantes. Quanto ao sincretismo no catolicismo popular mundial, com mistura de espíritos locais, anjos e demonologias, Cornwell afirma e pergunta: a inculturação deve existir, mas... até onde? O autor nota também uma "diluição de crença" nos textos de catequese, muitos dos quais combinam mais com cursos de responsabilidade cívica e sociologia do que com religião.

Autodeterminação
A erosão da autoridade papal é vista pelo autor sobretudo no fosso entre a doutrina oficial e a prática dos católicos em matéria de moral sexual e matrimonial. A inflexibilidade do novo catecismo católico não dá conta das novas gerações, que tendem para um "catolicismo aberto", com direito de autodeterminação quando os temas são relações pré-matrimoniais, anticoncepção, aborto, sacramentos aos divorciados recasados, vida amorosa dos homossexuais católicos.
Diante das aflitivas estatísticas de abusos sexuais por alguns padres, da calamitosa queda nas ordenações sacerdotais, da dificuldade de viver o celibato, da crescente presença de padres gays, o autor, mesmo sabendo que os conservadores atribuem tudo isso à diminuição da mística, não vê outra solução imediata senão a coexistência na Igreja Católica de padres casados e mulheres padres com padres celibatários.
É aqui que se nota o maior descolamento entre o centro romano misógino-androcêntrico e a periferia eclesial. A instituição clerical ainda trata como irmãos menores os leigos e as mulheres na igreja. João Paulo 2º fechou a questão, mas esta voltará a infernizar futuros papados. Cornwell espera que o novo papa seja um "papai".
Até aqui o autor. Restaria, todavia, uma outra chave de leitura menos gerencial e mais "pneumática": e se o Espírito Paráclito, zeloso por sua igreja, estiver com a firmeza de João Paulo 2º, preparando para si, após a tormenta materialista, uma "esposa" mais bela e viçosa?


Antonio Marchionni é doutor em filosofia, mestre em teologia e professor da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP).


Quebra da Fé
318 págs., R$ 40,00 de John Cornwell. Trad. Marcos Santarrita. Ed. Imago (r. Santos Rodrigues, 201-A, CEP 20250-430, RJ, tel. 0/x/21/502-9092).



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