São Paulo, domingo, 28 de abril de 2002

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Relançamento das histórias literárias do romântico Joaquim Norberto e do marxista Nelson Werneck Sodré repõem em discussão duas linhas centrais da crítica

Nostalgia incompleta e revolução discreta

Antonio Arnoni Prado
especial para a Folha

Distanciados no tempo, nas relações com a cultura e no próprio modo de conceber a crítica, dois historiadores da nossa literatura voltam agora às livrarias valorizados por edições renovadas que trazem ao debate duas trajetórias até certo ponto isoladas e controversas no panorama das nossas letras. O primeiro deles, Joaquim Norberto de Sousa Silva (1820-1891), que reaparece num minucioso trabalho de edição interessado em recompor e dar unidade à planejada história literária que ele deixou incompleta ("História da Literatura Brasileira e Outros Ensaios"), tem sido lembrado com certa constância e não poucas reticências pelos estudiosos mais recentes da literatura colonial brasileira. Já o segundo, Nelson Werneck Sodré (1911-1999), cuja "História da Literatura Brasileira" completa, com esta, sua décima edição desde que foi lançada em 1938, pouca atenção tem merecido da crítica, justificando-se mesmo a observação de André Moisés Gayo, que assina o "Posfácio", de que seria em vão procurarmos qualquer "análise de fôlego" que se tenha realmente interessado pela obra que agora se reedita. Um dos continuadores de Gonçalves de Magalhães na revista "Minerva Brasiliense" e depois no Instituto Histórico Brasileiro, Joaquim Norberto ao menos conserva o mérito de ser reconhecido como uma das figuras mais expressivas da crítica romântica, dado o seu trabalho incansável de editor, de crítico erudito e de antologista dos textos poéticos da Colônia. No entanto, sobre a sua figura pioneira de estudioso e de biógrafo, mais que de poeta, tradutor ou homem de letras, ainda persiste a sombra da conciliação ideológica que vem do imperador dom Pedro 2º e passa pelo projeto de consolidar a cultura nacional sob a égide do mecenato da coroa, como já assinalou Alfredo Bosi. Além disso, a ênfase na natureza, na terra e nos costumes parece ter reduzido o alcance de suas fontes a certos aspectos extremos em que Antonio Candido vislumbrou a nostalgia impensável de um Brasil desenvolvido a partir da evolução dos seus habitantes primitivos, pretensamente desvinculados da colonização portuguesa e detentores de uma tradição tão elevada quanto improvável de "uma literatura ossianesca, reluzente de autenticidade brasileira, livre das deformações barrocas ou neoclássicas". É talvez recortada pela expansão de exageros como esses que a idéia de reeditar os capítulos de sua "História da Literatura Brasileira" se volte agora para os lineamentos de seu esboço original, incorporando a eles os estudos dedicados às "sínteses historiográficas genéricas" de que Sílvio Romero foi o primeiro a dar notícia quando sublinhou a dimensão da incompletude na obra crítica e historiográfica de Norberto. Digo isso porque, ao assumir com empenho essa árdua tarefa, Roberto Acízelo de Souza -que organiza o volume- sabe dos riscos e do alcance duplamente controverso de sua empreitada. Não por desejar recompor o legado de um crítico que o próprio Sílvio Romero julgou decisivo para a história literária do período, mas acoimou de "pouco fecundo em recursos de análise e apreciações literárias"; e sim por tentar integrar num conjunto fechado as marcas intelectuais de um registro histórico que talvez ficassem melhor na indefinição circunstancial e episódica própria de intervenções pioneiras como as de Norberto, que se esgotam na precariedade do contexto em que se movem, sem jamais se converter, como notou José Veríssimo, em crítica sistematizada. Esta última se ajusta melhor ao pensamento que organiza a "História" de Nelson Werneck Sodré, um livro que veio sendo renovado a fundo ao longo dos anos, à proporção que as suas hipóteses passavam a depender cada vez mais da compreensão do processo mais amplo em que o autor ia amadurecendo o sentido


O repúdio de Norberto ao despotismo colonial levou-o a exaltar no nosso "bardo do deserto" a mesma voz que Sodré transfere ao sertanejo


da formação histórica do país, articulando-a ao da sua própria transformação revolucionária. Sob esse aspecto, vale ainda hoje como reflexão consistente acerca do peso da colônia no atraso da nossa afirmação cultural, coisa aliás que o próprio Norberto discutiu, mesmo estando nos antípodas da cosmovisão de Sodré. Aqui, como numa daquelas aproximações imprevistas com que o primeiro João Ribeiro costumava ensaiar a sua "paralaxe dos pontos extremos", o localismo indianista de Norberto não apenas nutre como justamente se completa na consciência do sertanismo da ficção romântica, que Sodré definiu como "um formidável esforço da literatura para superar as condições que a subordinavam aos modelos externos". Lembremos a propósito que o repúdio de Norberto ao despotismo colonial (e aos processos da Inquisição) levou-o a exaltar no nosso "bardo do deserto" a mesma voz embrutecida que Sodré, sobretudo a partir de Taunay, depois transfere ao sertanejo e ao homem que trabalha a terra, integrados à exuberância do cenário e já maduros, nessa primeira etapa da prosa romântica, para exprimir o dom de revelar um outro Brasil em meio aos entraves da opressão que os submetia. "Aquilo que em Bernardo Guimarães e em Franklin Távora", nos diz ele, "é procurado nos costumes, Taunay encontrava no pitoresco, e principalmente no pitoresco da paisagem. Vai além, entretanto, e torna-se um precursor daqueles que buscaram o pitoresco na língua, esforçando-se por trazer ao romance a maneira coloquial de contar (...) e denunciando a preocupação linear e básica de decalcar a realidade, em fornecer-lhe, na ficção, uma correspondência simétrica".

Lugar instrumental
Curioso que o excesso de sistematização e de simetrias, em Sodré, mesmo o distanciando radicalmente das projeções críticas de Norberto (pensemos na irredutibilidade da fundamentação teórica, no papel decisivo do modo de produção colonial, no ciclo da transplantação cultural, no descarte do biografismo e mesmo da análise formal ou concreta de um texto de autor), não evita a relatividade do lugar discreto ou meramente instrumental que ambos hoje ocupam no quadro histórico das nossas letras. Sob esse aspecto, e apesar de revigorados por edições que agora os devolvem à convivência de novos leitores, não seria exagero dizer que valem para a descomedida sistematização de Sodré as mesmas instâncias que cercam a incompletude do legado crítico do infatigável Norberto.
Se este, com todos os retoques que lhe aplica o excessivo desvelo de Acízelo de Souza, parece não ir além de um esboço preliminar a ser depois fecundado pela crítica de um Sílvio Romero ou de um José Veríssimo, Sodré tampouco permanece como um pressuposto metodológico ponderável na obra dos estudiosos marxistas, mais refinados e inventivos, que se seguiram a ele e que vêm contribuindo -como Roberto Schwarz- ao redefinir, por exemplo, o peso histórico da prosa de Machado de Assis para aprofundar as dimensões sociais do estético na literatura bem como na cultura de um modo geral.

Antonio Arnoni Prado é professor de literatura na Universidade Estadual de Campinas e autor, entre outros, de "1922 - Itinerário de uma Falsa Vanguarda" (ed. Brasiliense). É atualmente "fellow" da Fundação John Simon Guggenheim, junto da Lima Library, em Washington (EUA).


História da Literatura Brasileira e Outros Ensaios
424 págs., R$ 40,00 de Joaquim Norberto de Sousa e Silva. Zé Mário Editor (r. Visconde de Inhaúma, 58, sala 203, CEP 20091-000, RJ, tel. 0/xx/21/2233-8718).



História da Literatura Brasileira
728 págs., R$ 70,00 de Nelson Werneck Sodré. Graphia Editorial (r. da Glória, 366, grupo 1.001, CEP 20241-180, RJ, tel. 0/xx/21/2224-4454).



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